16.12.23

Os perigos

 


«Todas as épocas são perigosas, umas mais do que as outras, umas só para uma geografia, outras para o mundo inteiro. A história é perigosa, imprevisível, num certo sentido não-humana porque está muito para além das relações de causa e efeito a que estamos habituados e tem na sua essência um elemento de surpresa, para os nossos olhos que se habituam depressa quando quem neles manda é a preguiça e acomodação. E quanto melhor se vive, maior é essa acomodação e maiores são os desastres que aparecem de surpresa. E, por fim, ninguém tenha dúvidas que onde melhor se vive é naquilo que se chama “Ocidente” o sistema das democracias do Japão à Europa, passando pela América. E quando digo “onde melhor se vive” é mesmo para os mais pobres, os mais excluídos, os que têm uma vida má.

Dito isto, a obrigação dos humanos no presente, os que estão vivos, é saber isto, mas não actuar na base dessa sabedoria, actuar no pressuposto de que podem mudar alguma coisa e que podem ter a ilusão de que a sua acção pode contrariar a não-humanidade da história. Ou seja, fazer alguma coisa para que os perigos da história sejam mitigados, sejam atrasados, porque cada geração que possa viver sem os seus efeitos leva para a morte uma vida mais razoável. A nossa acção pode valer para os 100 anos de uma vida, mesmo que não altere nada de substancial para os 1000 anos. Esta é uma perspectiva laica, de que a nossa vida é a terrestre, e não a celeste, e, por isso, se se pode fazer alguma coisa, por ínfima que seja, por quem cá está, é melhor. As democracias assentam nessa ideia desde a Revolução Francesa que permitiu a frase de Saint-Just de que a “felicidade é uma ideia nova na Europa.”

Nos anos 30, aqueles que actuaram assim tentaram travar a ascensão do fascismo e do nazismo, e falharam. Nos anos 60, os que actuaram assim tentaram retirar grande parte do mundo da opressão colonial, e tiveram algum sucesso. Nos anos 80, os que actuaram assim lutaram para que o Muro que havia em Berlim caísse, e caiu mesmo, arrastando tudo o que estava atrás. Hoje, os perigos aumentam e não sei se teremos algum sucesso em limitá-los, ou atrasá-los, porque em eliminá-los, duvido.

No terreno das democracias os perigos de hoje têm duas faces que cada vez mais se juntam numa só: Trump e Putin. Trump é o candidato favorito de pelo menos metade dos americanos e Putin o actual autocrata da Rússia. Trump quer ser ditador nem que seja “por uma dia”, arrasta atrás de si uma corte política do mais perigoso que se possa imaginar hoje numa democracia, fazendo da senhora Le Pen uma moderada. Putin conduz uma guerra de agressão à Ucrânia e ameaça, se a perder, recorrer às armas nucleares. E, como nos anos 30, têm seguidores, uns mais desavergonhados, outros com mais vergonha, mas dispostos a fazerem-lhes todos os jogos necessários para lhes abrir caminho porque é do seu interesse. Todos os perigos se realizarão se Trump for reeleito e se Putin ganhar a guerra da Ucrânia, porque a seguir somos nós. E por completa inconsciência destes perigos, a máquina desvalorizadora está a funcionar em pleno na Europa, pela habitual mistura de condescendência, preguiça e demasiada crença de que a nossa “vidinha” (não confundir com vida) vai continuar como até aqui sem sobressaltos.

Já ouviram, leram, viram, o que dizem e querem os republicanos do MAGA, a tropa de Trump, que encarnam um agressivo desejo de vingança sobre os “vermes” que se lhes opõem, procuradores, juízes, democratas, republicanos que ainda são suficientemente conservadores e com valores para lhes arrepiar o que esta tropa está a fazer ao partido de Lincoln? Já perceberam que o impasse americano no Congresso e gente como Orbán na Europa, os camionistas que boicotam a exportação de cereais nas fronteiras da Polónia, Hungria e Eslováquia e a extrema-direita paga por Putin se preparam para entregar a Ucrânia à nova ressurreição da URSS?

Assustem-se, que neste caso faz bem, e mobilizem-se. É que estamos num período demasiado perigoso para dois valores que é suposto “nos fazerem”: a liberdade e a democracia.»

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