«Este era o argumento dos minimizadores de Trump que, ou com manifestações de simpatia envergonhada ou alta ciência académica, diziam que não havia preocupações com Trump, porque aquilo que ele dizia era retórica eleitoral e, quando chegasse lá, seria “moderado”, até porque estava mais preparado do que em 2016 e tinha uma equipa.
Claro que há coisas que ele disse que ia fazer que já se sabia que eram impossíveis, a maioria das promessas para o “primeiro dia” em que seria “ditador”. Outras implicavam tal desordem nacional e mundial que eram também praticamente impossíveis. Mas eu – dou agora um tom pessoal à coisa, porque tive de ter tanta paciência para ouvir os minimizadores de Trump – sempre disse que, mesmo que não fizesse exactamente como prometia, ia tentar e, nessas tentativas, ia fazer enormes estragos. Outras ia fazer mesmo, logo que pudesse.
O que se passa nos EUA é uma verdadeira revolução que não é conservadora, nem reaccionária, nem fascista, a não ser que consideremos que esta é a forma do fascismo no século XXI. Não queria muito ir por aí, porque o remake dessas classificações tende a valorizar o que é semelhante e ocultar o que é diferente, e é ao que é diferente que temos de dar atenção. Mais: se queremos fazer parte da “resistência”, é o que é diferente que temos de combater.
Num certo sentido, é fácil definir o que aconteceu. Numa democracia e, no essencial, com as regras democráticas, Trump, com o seu movimento MAGA, ganhou as eleições de forma significativa para todas as instituições nacionais que vão a votos nos EUA: Presidência, Câmara dos Representantes e Senado. Isso por si só não garantia o quase poder absoluto que Trump tem hoje, se não existisse uma maioria “trumpista” no Supremo Tribunal. Essa maioria foi constituída num processo com muitos aspectos irregulares durante a anterior presidência de Trump, com a nomeação de juízes que mentiram nas suas intenções durante as audiências prévias e foram escolhidos pela fidelidade ao programa político MAGA. Se não fosse assim, Trump nunca teria condições para concorrer a eleições, porque teria sido condenado em vários processos, o que não aconteceu porque o Supremo Tribunal lhe deu imunidade absoluta. Ao fazer isso durante a presidência Biden, bloqueou o funcionamento do aparelho judicial em todas as questões decisivas e abriu portas aos abusos de poder de Trump.
Eleito com uma maioria significativa, não aquela de que ele se gaba, Trump disse ao que vinha – antes, durante, e depois, se houver um depois. O que ele disse põe em causa a democracia americana, o primado da lei e o funcionamento regular de todas as instituições e, se há coisa pela qual ele não pode ser criticado, é por não ter dito ao que vinha. Quem votou nele sabia o que ele ia fazer e, por isso, assume uma responsabilidade directa no que está a acontecer. A ideia de que não se pode criticar as opções populares numa democracia é absurda, quando essa opção põe em causa a própria democracia. Foi assim com Hitler, com Perón, com Milei, com Trump, como com os eleitores da Frente Nacional, da AfD, do Vox, etc., por uma razão muito simples: é que a democracia parte da vontade popular, mas implica o primado da lei, os direitos humanos, a igualdade dos homens e das mulheres, a recusa do racismo. Ou é o pacote completo ou não é democracia. E o que Trump está a fazer nada tem que ver com a democracia.
Há toda uma discussão séria sobre porque é que isto aconteceu, a responsabilidade dos democratas, as imbecilidades vanguardistas woke, que também nada têm de democrático, as características do sistema eleitoral americano, o desprezo elitista pela dignidade dos de “baixo”, os que acham que a imigração não é problema, os abusos do capitalismo do “sistema”, por aí adiante, mas essa discussão, a ter e a haver, não pode servir para ocultar debaixo do manto da culpa o combate ao que está hoje no poder. E é por isso que os minimizadores de Trump, apanhados agora pela realidade do “trumpismo”, fazem parte do problema e não da solução.
Temos por cá vários minimizadores da coisa, embora alguns sejam apenas minimizadores porque têm vergonha de serem “trumpistas”, mas, no fundo, gostam do que ele está a fazer. O grupo mais numeroso é o dos que ficam felizes com a vitória de Trump porque ele amesquinhou e humilhou a esquerda, da esquerda moderada aos radicais woke. Há quem também ache que ele está a fazer o que eles gostariam de fazer, a despedir funcionários públicos, a cortar despesas a eito, a acabar com programas sociais. São os “liberais” de hoje, que gostariam de ter um Elon Musk a mandar, à falta de um Milei. E são os nacionalistas do Chega, que são antiglobalistas e antieuropeus e querem a perseguição dos muçulmanos e dos imigrantes “monhés”. E várias variantes de reaccionários, desde os integristas religiosos aos pais que acham que as escolas depravam as suas crianças com ideias perigosas sobre o sexo. E, por fim, os pró-russos, comunistas e outros, gostam de Trump, e não é pouco, e querem ver a Ucrânia derrotada em toda a linha.
Do Governo, em particular no Ministério dos Negócios Estrangeiros, ao secretário-geral do PSD, do PCP ao CDS, passando pelo previsível Chega, nos comentadores universitários sempre a tentar “teorizar” e racionalizar a coisa, há um amplo leque de minimizadores que hoje deviam dizer que ou estão a favor ou se enganaram, o homem está a fazer o que disse que ia fazer.
Os discípulos de Neville Chamberlain são sempre os mais perniciosos quando há resistência a ter face ao mal agressivo. Não há que ter ilusões: o trumpismo está cá e os minimizores são o instrumento para alargar a sua influência.»