«Donald Trump associa a violência desumanizadora a uma visão empresarial da política. Associa a forma como trata os imigrantes que deporta (como outros deportaram), exibindo-os de mãos e pés algemados, ao sonho de transformar Gaza numa nova Riviera ou às suas ambições para a Gronelândia. Para Trump não há história, não há povos, não há soberania alheia. Há uma excelente parcela de terra à beira-mar e o acesso às rotas para norte e às matérias-primas que os EUA precisam. Há negócios. Sendo uma potência imperial desde a passagem do século XIX para o século XX, nada disto é uma novidade para os EUA. Ontem foram ocupações, hoje são tarifas. Também não me parece que Israel alguma vez tenha olhado para os palestinianos de forma diferente de Trump. Mais uma vez, é o colorido que muda. Onde uns veem espaço para expandir o seu território e construir colonatos, outro vê um negócio imobiliário. Para os dois, o povo de sub-humanos que ali vive há séculos é um obstáculo a ser removido, sem que tenha sequer o direito moral à resistência.
Se juntarmos à lógica empresarial de Trump a sua aliança com a oligarquia tecnológica, concluímos que ele não é uma excrescência do sistema, é o ponto a que o sistema chegou. Ele representa, com excessos folclóricos, o pensamento hegemónico num mundo onde as criptomoedas e a inteligência artificial sem regulação darão um novo impulso ao caos. Não é por acaso que teve o apoio de Silicon Valley. O problema nunca são os avanços tecnológicos. É o contexto institucional em que eles acontecem. E, neste contexto, restará pouco espaço para a democracia.
Reagan e Thatcher também causaram choque, à sua época. A política deslocou-se de tal forma que hoje quase parecem centristas. O incómodo com Trump vai passar e, com menos espetáculo, a sua forma de ver o mundo e o Estado tenderá a tornar-se mainstream. Porque é a mais próxima do capitalismo emergente. É verdade que guerra tarifária, usada como estratégia de terror para conquistar melhores condições, lhe parece contrária. Mas a ideia do mercado global aberto nunca passou disso mesmo — uma ideia. A mesma Europa que perora sobre as desvantagens deste tipo de confrontos impôs, há poucos meses, pesadas tarifas aos carros elétricos chineses para manter os europeus agarrados aos motores de combustão interna, onde domina e cujo fim adiou para depois de 2035. As regras sempre foram adaptáveis porque, no essencial, não é a ideologia, mas os interesses que determinam o comportamento dos Estados. Por isso, todas as supostas regras liberais foram sendo destruídas por supostos liberais. Na prática, vivem bem com a concentração monopolista (económica e cultural), aplaudem derivas securitárias e não se indignam quando um empresário que adoram tem acesso a poderes internos ao Estado. Por isso, não é estranho partilharem com Trump um grande entusiasmo com Javier Milei, um lunático neoliberal de perfil autoritário. Ele é a síntese do lugar político para onde se encaminham. Um lugar onde a importação de reclusos pode ser um negócio, como El Salvador mostrou a Marco Rubio.
Poderíamos perguntar se faz sentido manter uma aliança militar com uma potência que ameaça usar a força para tomar um território de um aliado e promete uma guerra tarifária contra quase todos os membros da NATO. Mas a pergunta partiria do princípio que a Europa existe, enquanto entidade exterior às suas fronteiras. Alguém acredita que a Alemanha e a França, depois das próximas eleições, estarão em condições de manter um braço de ferro comercial com Trump? Basta ouvir Mark Rutte, que anda a pedir aos Estados-membros para aumentarem o investimento numa defesa comum com os EUA, fingindo que está tudo na mesma, para perceber que a negação dará lugar à cedência negociada.
Depois do primeiro susto, teremos os acordos desejados, como aconteceu com o Panamá, e, no meio de foguetório, mentiras e contradições, Trump voltará a conseguir o que quer. Porque o que ele representa já venceu fora da política. E é por isso que a oposição ao mundo que Trump anuncia não virá do mainstream político e cultural, que já se começou a vergar, mas de uma nova radicalidade. O que está a acontecer desfaz, aliás, a ideia de que assistíamos a uma polarização entre extremos. É exatamente o oposto: faltou o outro polo. Assistimos, desde a queda do Muro de Berlim, a uma rampa deslizante que levou as forças progressistas a assumirem o essencial do neoliberalismo, seja na economia, seja na redução da política a direitos identitários, com a destruição de qualquer ideia coletivista e comunitária. Agora, talvez faça falta uma verdadeira polarização que ajude a puxar as coisas para o meio.»
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