«No dia 21 de Setembro, num comício em Dayton, Ohio, proclamou Donald Trump: “Se Biden vencer, a China vence. Se nós vencermos, vence o Ohio e, com plena justiça, vence a América.” É oportuno perguntar que o pensam os chineses do assunto. Não é saber se Xi Jinping “vota Trump” ou “vota Biden”. É a sua percepção dos quatro anos da presidência de Donald Trump.
Resume Yan Xuetong: “Trump arruinou o sistema de alianças dos Estados Unidos” e deu lugar ao “período de melhor oportunidade estratégica para a China desde o fim da Guerra Fria”. Cito Yan porque é um dos mais escutados especialistas chineses, na Ásia e no Ocidente, decano do Instituto de Relações Internacionais Modernas, da Universidade Tsinghua, de Pequim, e presidente do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy.
Explicitou numa entrevista: “A China tem a oportunidade de reduzir a diferença de poderio em relação aos EUA. (…) O Presidente Trump confirmou claramente que a liderança global é um fardo ruinoso para os EUA.” Note-se que Yan não pensa que Pequim esteja a caminho da hegemonia nos próximos tempos: “Só quando a comunidade internacional reconhecer que a China é um Estado mais responsável do que os EUA, a China será capaz de substituir os EUA na liderança do mundo.”
Diz um documento oficial do Partido Comunista Chinês (PCC): “Apesar de os regimes ocidentais parecerem deter o poder, a sua vontade e a capacidade de intervir nos assuntos mundiais está em declínio. Os Estados Unidos já não podem ser o garante da segurança global e da prosperidade, pelo contrário, prosseguem uma política externa unilateral e inclusive nacionalista.”
Esta opinião não é unânime dentro das elites chinesas. Mas está largamente difundida. “Muitos chineses anónimos desejam que Trump vença, porque pensam que ele destruiu o sistema americano e as suas alianças”, diz à Time Wang Yiwei, director do Instituto de Assuntos Internacionais da Universidade Renmim, de Pequim. “Se Trump continuar a fazer o mesmo pode haver novas oportunidades para a China.”
A percepção chinesa do declínio americano não se deve apenas à errática política chinesa e asiática de Trump. Pequim olha atentamente as vicissitudes domésticas americanas e, em particular, o estrondoso fracasso na luta contra a pandemia da covid-19. Encara os EUA como uma nação dividida, decadente e em risco de crise institucional. Esta percepção não é apenas chinesa. Preocupa também, e muito, os ocidentais. “Por razões de orgulho ou estratégia pode ser correcto entrar em confronto com a China”, escreve Janah Ganesh, analista do Financial Times. O problema é isso coincidir “com a mais fracturante época na vida nacional desde há meio século”. Consequência? “Uma América dividida não pode competir com a China num duelo de superpotências.”
Equívocos estratégicos
A percepção que uma potência tem da força ou fraqueza dos rivais é determinante na sua estratégia. A actual e mais agressiva política externa chinesa reflecte em larga medida a sua análise da América. Ao mesmo tempo que falam no declínio americano, os líderes chineses crêem que os EUA tentarão desesperadamente conter a ascensão da China. Daqui as discussões em torno da chamada “nova guerra fria” e o risco de um choque entre as duas potências.
Donald Trump chegou ao poder propondo-se “meter a China na ordem”, em nome do slogan America First. Ao fim de quatro anos, há uma geral percepção de que os Estados Unidos estão a perder influência, enquanto a China promoveu o seu estatuto internacional. A relação bilateral entre Washington e Pequim é a mais importante do mundo de hoje, não afecta apenas as duas potências mas o futuro da ordem internacional.
O conflito sino-americano não é uma invenção de Xi e Trump, é algo de natureza estrutural e longa duração, que se desenvolve em distintas etapas desde o início do século. Novos líderes não vão alterar a natureza irremediavelmente competitiva da rivalidade entre as duas potências. Mas podem regulá-la. Para a China, continua a ser primacial anular a supremacia americana na Ásia. Para os EUA, isso está fora de causa.
Teóricos de estratégia americanos apontam pesados erros à Administração Trump. Um artigo de Lawrence D. Kaplan no Washington Post, significativamente intitulado “How Trump is losing Asia” ("Como Trump está a perder a Ásia"), resume esses argumentos. Trump abandonou a Parceria Transpacífico enquanto a China acelerava a Nova Rota da Seda; e pôs em causa as garantias de segurança aos seus aliados, em especial o Japão. Não é apenas Pequim que ganha margem de manobra na Ásia, são os aliados que perdem a confiança nos Estados Unidos. Escreve Kaplan: “Pela primeira vez, desde a II Guerra Mundial, o Presidente dos EUA abalou a essência dessa confiança. A China está a promover uma visão, certamente imperfeita e coerciva, enquanto os EUA nada têm para oferecer.” Sem aliados e apoio local, os Estados Unidos não podem permanecer uma potência influente na Ásia.
Diga-se, de passagem, que a grande perturbação lançada por Trump deriva em grande parte dele reduzir a política externa a instrumento da política doméstica. Isto é patente desde a sua campanha eleitoral de 2016 e tem efeitos perversos.
Melhor do que Xi
O sinólogo britânico Steve Tsang, director da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), de Londres, declara ao FT: “Desde que Trump se tornou Presidente, fez mais do que ninguém, incluindo Xi, para tornar a China grande de novo, dando a Xi o que ele desejava para a promoção global da China. A balança de poder no mundo oscilou mais a favor da China.”
Que expectativas há em Pequim sobre o desfecho da eleição americana? Chen Zhiwu, da Universidade de Hong Kong, diz ao mesmo jornal que haverá uma diferença de estilo entre Trump e Biden. “Uma Administração Biden pode facilitar a vida à China durante um ou dois anos, mas a longo prazo levantará desafios mais duros à China.”
O analista Yu Jie, do think tank Chatham House, de Londres, faz uma distinção: “Uma vitória de Trump pode ser temível para a China mas também um presente político para Xi. Quanto mais os EUA demonizarem a China, mais os cidadãos chineses – mesmo os que discordam da liderança de Xi – se unirão à sua volta.”
Sublinhado final: outro problema preocupante é o risco de a China calcular mal a dimensão do “declínio americano”. Mas não é a matéria desta análise. Aguardemos os resultados do 3 de Novembro.»
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