«A polémica com as aplicações móveis para rastreamento digital de contactos continua com a recente proposta de tornar a sua instalação obrigatória. A intenção do Governo tem tanto de inaceitável como de compreensível. Perante o aumento de casos, e a mais que previsível sobrecarga dos serviços de saúde, o Governo esgota todas as alternativas. Não para evitar o que parece inevitável, mas provavelmente para justificar e preparar a população para um novo estado de emergência. Quanto estivermos novamente confinados, com tudo o que isso significa em termos económicos e sociais, o Governo poderá sempre dizer que a instalação massiva da app teria evitado um mal maior.
Tal como escrevi aqui em Maio, o principal obstáculo às aplicações covid-19 não é a segurança ou a privacidade, mas sim a sua utilidade numa lógica de cidadania. Uma aplicação que se instala sem ter qualquer interactividade não permite que os utilizadores criem um bom modelo mental sobre o seu funcionamento. O célebre episódio de Rui Rio tornou pública a dúvida que persiste em grande parte das pessoas, incluindo as que acham que a instalação do StayAway Covid é um acto de cidadania digital. Todos criamos modelos mentais a partir das nossas crenças e usamos esses modelos para nos orientarmos no mundo que nos rodeia. Os computadores usam modelos mentais de ficheiros, pastas, tampos de secretária e baldes de lixo para permitir que as pessoas possam lidar facilmente com conceitos complexos dos sistemas informáticos como sistemas de ficheiros, permissões, dispositivos de armazenamento, etc. Infelizmente, as app de rastreamento não desenvolvem qualquer modelo mental. Ficam suspeitamente ligadas (ou não) até que algo aconteça!
As apps de rastreamento digital foram desenvolvidas com base em duas premissas erradas. Primeiro, que o principal objectivo seria servir as autoridades de saúde ajudando-as a refazer os processos tradicionais de rastreamento. Segundo, foram desenvolvidas por equipas de engenharia muito competentes nos algoritmos de segurança e privacidade, mas sem qualquer competência em interacção. O resultado é uma aplicação tecnicamente impecável, mas completamente incompreensível para o comum dos cidadãos (e admito que para os próprios profissionais de saúde). Ao desenvolver uma solução focada na autoridade de saúde criaram-se expectativas erradas sobre a sua eficácia. Ao não apostar na adopção, na interactividade e no feedback aos utilizadores (tal como fazem as aplicações de exercício físico), alimentam-se todo o tipo de especulações e aproveitamentos políticos.
Provavelmente, o grande contributo destas apps será o debate público sobre a cidadania digital. Esta questão fez-me lembrar a célebre frase de Bruno Latour (sempre ele) sobre a agência dos objectos inanimados: “La technologie est la société rendue durable.” No exemplo clássico de Latour, é o chaveiro pesado que se encontrava em muitos hotéis e que induzia os hospedes a deixar a chave na recepção. O chaveiro de Latour é assim um exemplo de um objecto inanimado que transporta simbolicamente uma regra. O desconforto de carregar um pesado chaveiro para fora do hotel é muito mais eficaz do que qualquer mensagem escrita. O valor desta inovação é claro, mas naturalmente tem um preço. Primeiro, o hotel tem que se aliar a quem consegue produzir a inovação que, por sua vez, se tem que aliar a quem sabe fazer chaveiros pesados e desconfortáveis. Segundo, a regra “deixe a chave na recepção” deixa de ser uma regra para passar a ser um acto muitas vezes não intencional nem consciente dos clientes.
O que torna o exemplo de Latour interessante é que antes da introdução da inovação apenas o gerente do hotel estava interessado em que os clientes deixassem a chave na recepção. Com a introdução das chaves pesadas e desconfortáveis, o gerente e os clientes passaram a concordar que o mais conveniente para todos seria que as chaves ficassem na recepção. Ao contrário do exemplo de Latour, as apps de rastreamento digital acabam por não servir as intenções do Governo e das autoridades ao não criarem o movimento necessário para que os cidadãos, por conveniência ou utilidade, decidam contribuir sem serem obrigados.
P.S.: Uma palavra de apreço à equipa do INESC-TEC pelo esforço e competência e ao Rui Oliveira pela coragem de assumir que não concorda que a aplicação seja tornada obrigatória.»
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico; Presidente do Instituto de Tecnologias Interativas do LARSyS
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