«Em 2018, já morreram mais de mil pessoas na travessia do Mediterrâneo. Desde 1993, segundo o jornal The Guardian, 34 mil pessoas morreram a tentar chegar à Europa. No preciso momento em que o Conselho Europeu se reunia, um pequeno barco de borracha com 120 migrantes a bordo, ia ao fundo, matando 100 pessoas. A Organização Internacional das Migrações denunciou que a Argélia tinha expulsado e abandonado no deserto do Sara mais de 13 mil migrantes, muito do quais morreram (e recordemos as recentes revelações de que nos campos de retenção de migrantes na Líbia se pratica a escravatura).
Seria um sonho que os dirigentes europeus se tivessem reunido para criar um sistema que acabasse com a tragédia humanitária, que debelasse a cumplicidade europeia e tomasse medidas contra os Estados que não têm cumprido as decisões europeias em matéria de solidariedade no acolhimento de refugiados, como a Hungria ou a Polónia, que apoiasse os esforços das ONG que salvam vidas em operações de socorro naval no Mediterrâneo. Pelo contrário, porém, a agenda foi marcada pelas exigências da extrema-direita italiana anti-imigrantes e seus aliados da CSU alemã.
As conclusões do Conselho são um plano, condenado ao fracasso, para por termo aos “fluxos migratórios”, abrangendo todas as rotas, “existentes e potenciais”, em cooperação com os "países de origem e de trânsito” – leia-se Líbia, um Estado dominado por milícias armadas, e os do Magrebe, nomeadamente Marrocos – e sobretudo a Turquia. Apela-se aos navios de socorro das ONG para que não criem dificuldades às “operações da guarda-costeira líbia”. O Conselho destaca o reforço dos meios financeiros no domínio da segurança interna, concentrados na protecção das fronteiras.
No que diz respeito à solidariedade entre países europeus, nomeadamente com a Itália e a Grécia, que recebem a maioria dos refugiados, não foi reafirmado o sistema obrigatório de quotas, mas afirmado que a relocalização e reinstalação funcionam “numa base voluntária”. A questão dos controversos centros de retenção, na Europa ou no Sul do Mediterrâneo - já se viu o horror que podem ser na Líbia - ficou aberta à iniciativa dos Estados.
No fim do Conselho Europeu, ouvimos os líderes da extrema-direita, como Viktor Orbán, declararem vitória. E esta é a mais perturbante conclusão que se pode tirar deste Conselho – pela primeira vez, a extrema-direita deixou de ser uma força sem peso real, na defensiva, nas instituições de decisão da União, para ser uma força na ofensiva, capaz de obrigar os outros Estados a responder à sua agenda. A extrema-direita já não é uma força marginal, uma espécie de eterna derrotada à última hora. Ter em Itália um Governo populista, em que o homem forte parece ser o líder da Liga, Matteo Salvini, tornou a extrema-direita incontornável.
Foi Salvini que voltou a colocar as questões dos refugiados e das migrações no centro da política europeia – mesmo quando os fluxos estão em decréscimo, longe do pico de 2015.
Começou por recusar a obrigação de ajuda humanitária do direito do mar, forçando o Aquarius a navegar em mar alto até ser recebido em Espanha. Depois, organizou um encontro com o seu congénere da extrema-direita, o ministro do Interior austríaco, a que se juntou o ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, da CSU (que ameaça Merkel, líder do seu governo). Esta coligação reaccionária teve o apoio dos governos da Europa Central, Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia.
A realização do Conselho Europeu é em si mesmo uma vitória para os populistas italianos, mesmo que não tenham conseguido a distribuição pela União dos refugiados que chegam a Itália. Se, no essencial, tudo ficou na mesma, a verdade é que os portos italianos continuam fechados e foram criados obstáculos às acções de salvamento das ONG.
Não nos enganemos, o debate não é sobre imigrantes e refugiados. O que está em causa é a União Europeia, são os direitos fundamentais, é o debate entre uma visão da Europa e do mundo centrada nos valores fundamentais da União e os que defendem o que chamam de democracia iliberal, como Orbán e o seu protector Trump.
A extrema-direita (e a sua xenofobia) pode ser vencida, mas para isso é preciso que os líderes políticos que defendem o estado de direito sejam coerentes na defesa dos seus valores. Macron e Merkel, que procuram organizar a frente antipopulista na União, não têm, hoje, uma posição coerente na questão das migrações.
Os países europeus onde os populistas não estão no poder devem começar por assumir que não são as migrações que favorecem o crescimento da extrema-direita – veja-se a sua força em países com poucos ou nenhuns migrantes, como a Hungria ou a República Checa.
Segundo, que a obsessão com o controlo dos fluxos migratórios está condenada ao fracasso e só serve para alimentar a demagogia da extrema-direita.
Terceiro, que é possível criar vias legais de imigração, correspondendo à efectiva necessidade europeia de migrantes, fruto do envelhecimento da população.
Quarto, e mais difícil, assumir um direito internacional à livre circulação, mesmo que, obviamente, deixando aos Estados capacidades para a limitar, de acordo com as suas prioridades.
Quinto, é necessário reformar os acordos de Dublin e federalizar a política de asilo, criando uma fronteira comum exterior entre os países da União que resistem à extrema-direita.
Acima de tudo, é fundamental abandonar todo o discurso securitário sobre migrações, e optar por uma perspectiva que realce os valores da humanidade comum.»
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