«Como moçambicana migrante, procuro acompanhar os desenlaces políticos no meu país e na região, o que nem sempre é fácil. Das páginas disponíveis on-line, uma das minhas favoritas é Africa is a country [África é um país], um espaço de sátira à persistência de representações coloniais e sobre a diversidade de problemas do continente no presente. Há alguns anos, Binyavanga Wainaina num artigo cáustico desvelou as heranças coloniais presentes em muitas descrições sobre África, sobre um continente com cerca de 1,2 mil milhões de pessoas e culturas muito diferentes entre si, e que são frequentemente tratadas como uma só, como um único país. No campeonato mundial de futebol, a decorrer ainda, participaram várias equipas africanas, representando vários países. Porém, na maioria das análises eram apresentadas como ‘equipas africanas’. Só que a Coreia ou o Japão, selecionados pelo continente asiático, mas não são chamados de ‘equipas asiáticas’.
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Uma discussão sobre as representações de alteridade sugere que se trata de representações políticas, com um largo lastro histórico. O conceito predominante de África é por demais homogeneizante, contendo realidades diversas e bastante heterogéneas. De modo semelhante, não existe uma Europa ou uma Ásia como entidade única.
A história hegemónica de África contem ainda uma forte carga de violência epistémica, fruto da persistência das referências da biblioteca colonial. As omissões, os esquecimentos, as ausências, as fabricações e os estereótipos, que resultam na distorção e negação da historicidade da humanidade africana, impossibilitam uma leitura mais complexa das decisões, intervenções, resistências e autonomias. Falar sobre África significa questionar e desafiar crenças de estimação, pressupostos declarados e múltiplas sensibilidades.
A construção de representações sociais do continente africano é reificada pelo uso de categorias conceptuais como tribo(s) e etnia(s), tradicionalismo(s), doenças endémicas, atraso, subdesenvolvimento, instabilidade política, categorias que exigem uma reflexão sobre o seu conteúdo. Um denominador comum é a pobreza da África na produção de conhecimento. A ‘pobreza’ de África está relacionada, como vários sublinham, com a sua produtividade intelectual. Este facto pode ser avaliado a partir das referencias a África em publicações internacionais (muito alta, mas maioritariamente produzida fora do continente) e os fracos investimentos (por governos africanos) em pesquisa e desenvolvimento. Numa das suas crónicas, o escritor moçambicano Mia Couto referia-se à situação de Moçambique, dizendo que “a maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos”. A pobreza no campo da produção de conhecimento representa um perigo para o futuro de Moçambique, atingindo diretamente a atual geração de moçambicanos e as gerações futuras. Por outro lado, é também verdade que muito tem sido escrito sobre a complexidade social e histórica de Moçambique. Podem os moçambicanos ser ouvidos, também, como agentes ativos de produção de conhecimento sobre o seu país, sobre o continente e o mundo?
O moderno colonialismo atuou simultaneamente como ‘missão civilizadora’ e ideologia baseada numa epistemologia que procura legitimar a dominação e a exploração do ‘outro’. Este projeto assentou na conceção do ‘outro’ não como indivíduo ou parte de uma comunidade - com as suas economias, estruturas de poder e saberes -, mas como uma representação homogénea, imaginada em função dos objetivos políticos e das fantasias dos colonizadores. Esta é a visão dominante sobre ‘África’, reiterada por Nicolas Sarkozi (então presidente de França), num discurso proferido no Senegal, em 2007, onde afirmou que:
A tragédia da África é que o homem africano não entrou ainda o suficiente na história. O camponês africano, que há milénios convive com as estações do ano, cuja vida ideal é estar em harmonia com a natureza, conhece apenas o eterno recomeço do tempo pontuado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e ações. Mesmas palavras.
Pensar o continente africano, como parte do mundo, requer uma outra perspetiva epistemológica, em que a diversidade do continente encontre eco e dê forma ao sentido de ser e sentir África no plural. Este desafio encontra eco nas Epistemologias do Sul, a proposta de Boaventura de Sousa Santos para que se ultrapasse o peso das representações sobre os outros, para que se reconheça o Sul global na sua diversidade. Esta proposta, como o autor sublinha, tem por objetivo permitir que os grupos sociais oprimidos representem o mundo por si mesmo, nos seus termos, pois somente assim serão capazes de mudá-lo de acordo com suas próprias aspirações. A luta pela história, arte, literatura, e outras formas de conhecimentos africanos continua, pois, no século XXI, ecoando o desafio de vários políticos e académicos africanos, pela descolonização mental, pelo reconhecimento do lugar das múltiplas Áfricas no mundo. Significa conhecer as histórias e os desejos dos jogadores das várias equipas nacionais africanas que participaram no campeonato do mundo de futebol de 2018.»
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