António Bagão Félix publicou este texto no Facebook. Claro que os professores o arrasaram em todos os murais em que foi partilhado. Os velhos que paguem a crise…
DE NOVO, OS MAIS VELHOS DISCRIMINADOS
A forma clássica de subverter uma regra é enxameá-la com excepções. Na fase 1 da vacinação contra a Covid-19, excepções não faltam. Excepções à la carte, por “engano”, por casuísmos, por repescagem, por pressão (ou medo) de grupos.
Revela um recente estudo nacional que “a idade é o factor que mais peso tem na mortalidade por Covid-19”. Os dados actuais mostram que as pessoas com 70 ou mais anos que morreram com Covid-19 são 88% do total de óbitos.
Começou, hoje e em força, a vacinação determinada pela DGS no “no âmbito da resiliência do Estado (sic!), dos docentes e não-docentes dos estabelecimentos de ensino e educação (…), de acordo com o plano logístico que será implementado (sic!)».
Citando dados oficiais do Ministério da Educação, a idade média dos docentes varia, conforme os níveis de ensino, entre 46 e 49 anos. E , de acordo com os dados oficiais da DGS reportados a ontem (26/3/2021), no grupo etário da população entre 40 e 49 anos, os óbitos registados correspondem a 0,1% dos infectados (156 mortes para 136 302 doentes), enquanto nas pessoas com mais de 80 anos, o valor é de 16,3% (11 089 óbitos para 68 009 doentes) e nas pessoas entre 70 e 79 anos, é de 6,6% (3568 óbitos para 54 405 doentes).
Como era de esperar, as televisões, no seu frenesim pavloviano, mostraram-nos mais não sei quantos braços e agulhas, desta vez de professores e outros profissionais escolares (eu já acho que conheço umas boas centenas, tantas vezes são repetidas tais cenas!).
Não questiono a necessidade da sua vacinação à frente de outros grupos, ainda que me custe a perceber qual é a intensidade do risco se comparada, por exemplo, com pessoas que exercem a função de caixa nos supermercados ou com o pessoal das farmácias.
Mas, o que de todo não compreendo é subverter a ordem prevista, à frente de muitas pessoas de idade ou com doenças associadas, nomeadamente com mais de 80 anos (e não são poucas), que ainda esperam a sua chamada.
Há menos vacinas disponíveis por um contrato “angélico” que a douta Comissão Europeia firmou com os tudo menos angélicos laboratórios? Sim, é verdade. Então, se há menos vacinas disponíveis, aumentam-se os grupos a recebê-las na fase 1? Eis, assim, em poucas palavras, este paradoxo vacinal em marcha.
Até agora dizia-se que havia falta de técnicos para vacinar e algumas insuficiências logísticas. Com o pessoal das escolas, tudo se modificou e fala-se de “vacinação em massa”. Muito bem, é de aplaudir. Então porque não antes quando se tratava apenas das pessoas mais velhas?
Enquanto os governantes e as autoridades públicas continuam a descobrir aspectos simbólicos para estarem presentes na “festarola” da vacinação (a primeira vacina aqui, a primeira vacina acolá, a vacina número x, a vacina um milhão, a vacina deste grupo ou daquele, etc.), com a companhia de câmaras sempre ávidas para filmar “picas” e dar palco político ao acontecimento, esta perversão feita de atrasos, dificuldades e ultrapassagens é de uma grande afronta para com a população mais velha e necessitada. Um despudor só possível porque os velhos não são força de pressão, não têm sindicatos temíveis, não são um alvo eleitoral (inacreditável como todos os partidos não reagem, certamente olhando utilitariamente para a força do voto de outros grupos…) e a sua morte é encarada, no plano geral, apenas como mais uma estatística anestesiante, acolitada pelo discurso da hipocrisia e pela indiferença da desmemória.
É contra este silêncio acomodatício, contra esta prática discriminatória, contra o resvalar da ética que tem na vida o seu valor supremo, que aqui me insurjo. Não aceito que os governantes e autoridades tratem, de facto, os mais velhos como papalvos ignorantes, acríticos e acomodados.
Duas notas finais:
1.Enquanto as televisões (e não só) nos dão doses inimagináveis de noticiários sobre a pandemia e nos oferecem comentários e opiniões do momento e de toda a espécie, esta situação diferenciadora é noticiada como absolutamente normal, senão mesmo virtuosa. E até se permitem, intencionalmente, ou por ignorância ou preguiça, fazer política capciosa. Dois exemplos: no nosso percurso da vacinação em que, por razões alheias, mas também por motivos próprios, há atrasos e ziguezagues, a notícia é sempre “enriquecida” com o solícito advérbio “já”. Por isso, gostam de nos informar quer “já foram vacinadas x pessoas”, como se, euforicamente, estivéssemos adiantados, em vez de rigorosamente dizerem “foram vacinadas x pessoas”.
2. Quando nos falam do desgraçado Brasil (e de outros países na Europa) induzem-nos a ideia de que, em termos comparativos, estamos bem melhor. Mas, infelizmente não é o caso. Aliás, basta fazer uma simples conta. O Brasil tem 209,5 milhões de habitantes e Portugal tem 10,28 milhões, ou seja os brasileiros correspondem a 20,4 vezes a nossa população. Como temos, à data de hoje, 16 819 óbitos, o número de mortes correspondente à dimensão populacional do Brasil seria de 16 819 x 20,4 = 343 107 pessoas. Como se constata, um valor mais elevado do que as mortes ocorridas no Brasil que são, à data também de hoje, de 307 112.
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