«O vídeo feito por Rita Matias, em que identifica o nome e apelido de crianças, revela, antes de tudo, a ausência de limites humanos de pessoas que acham que a política, sendo um jogo, não se relaciona com os valores que vão norteando as nossas vidas. Os juristas dirão se é crime e, se for, deve seguir para o Ministério Público. Parece-me que os dirigentes do Chega estarão convencidos que sim, já que, repetindo a rábula abjeta, André Ventura omitiu, no Parlamento, os apelidos.
A utilização de crianças para o discurso de ódio define a miséria humana de Ventura e Matias. Mas é errado pensar que nada tem a ver com política. A desumanização do outro é tema político. E não julguem que os eleitores do Chega se vão comover. Esta desumanização faz-se aos poucos e não tem fim, como aprendemos há cem anos (e estamos a reaprender em Gaza), o ódio normaliza-se muito para lá do que vimos nas bocas de Matias e Ventura. Nunca poupou os filhos dos que transformamos em sub-humanos.
A indignação é justa e é difícil não reagir, quando se ultrapassam os limites mais básicos da dignidade. Mas o truque é outro. Depois de culpar os imigrantes do colapso do SNS e da crise de habitação, o Chega também os responsabiliza pelo investimento insuficiente e a recusa em criar uma rede pública de creches. A função do Chega é esconder todos os problemas, transferindo para os imigrantes a responsabilidades de erros políticos. O Chega é o antídoto para a incompetência política de qualquer governo. A culpa está sempre em baixo.
Mas o mais relevante, na semana passada, foi uma mudança política radical. Quando se dizia que “não é não”, não se estava seguramente a falar na perigosa influência do Chega em questões fiscais (onde o governo também já se comprometeu a ir ao encontro das suas exigências) ou orçamentais. Ao assumir (e Luís Montenegro assumiu-o) a relação preferencial com a extrema-direita nos temas em que se esperava um verdadeiro cordão sanitário – a imigração e a nacionalidade – desfez todas as dúvidas sobre este tema. Há uma maioria entre o PSD e o Chega, a que o PS será chamado se Ventura trair os compromissos e para aprovar o OE e ficar amarrado.
No que conta para o Chega e no Chega, o diálogo preferencial é com o Chega. Que o mesmo partido que acusava o PS de se aliar ao Chega por votarem juntos o fim de portagens tente negar, quando o entendimento se faz no coração do programa da extrema-direita, é a demonstração de que nem o respeito pelo mínimo de inteligência sobrevive a esta guinada política.
Claro que o Chega iria mais longe na lei da nacionalidade. Irá sempre, mesmo com todas as cedências. Mesmo perante as denúncias de potencial inconstitucionalidade das medidas apresentadas pelo governo, apontadas por Jorge Miranda (retroatividade da lei, discriminação entre portugueses de origem e adquiridos e excesso de discricionariedade na atribuição de nacionalidade), a proposta de retirada administrativa da nacionalidade, sem ser como sanção acessória determinada por um juiz, não passaria a porta da entrada do Tribunal Constitucional. Foi apresentada para ser recusada. O essencial que o Chega defende está na lei.
O Chega precisa de continuar a garantir o seu espaço, mostrando ao país que é determinante para impor a sua agenda, mas não permitindo que os novos consensos lhe retirem a liderança e o palco. Sabendo-se vencedores na agenda da imigração, usou o dia da vitória para ficar sozinho no palco, com algo suficientemente abjeto que levasse a reações e polémicas, mantendo-se na liderança de todo o processo. Radicaliza mais um pouco para não deixar de estar fora quando há o risco da cedência do outro o pôr dentro.
É assim que funciona: o governo cede ao Chega e o Chega faz qualquer coisa abjeta para a cedência parecer apenas a aceitação de mínimos. E nós caímos. A enumeração de nomes completos de crianças, num vídeo, poderá ter de seguir para o Ministério Público. Mas a política tem de falar da aliança entre a AD e o Chega, que se fechou, com mais ou menos conflitos.
Isto está a acontecer porque o PS acredita que pode usar a receita do passado: esperar que o governo se estatele ou que Montenegro seja engolido pelo regresso da Spinunviva, para voltar a existir. Ignora que, se e quando esse momento existir, quem se está a colocar para ser alternativa é o Chega. O “bom comportamento” do PS tem uma única consequência: permitir que o debate se desequilibre de tal forma (a imigração é apenas um dos exemplos), que, em pouco tempo, nem os mínimos de decência terão lugar no espaço público.»

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