2.8.25
Fotografia de família do Conselho Estratégico do PS
Li a lista dos conselheiros, tenho ali pelo menos um amigo, mas com franqueza: é assim que querem «salvar» o PS?
Não sei se a maioria já tem reumático (ou pior…), leio que mulheres só representam um terço (tudo bem, não sou feminista assanhada), mas JOVENS, JOVENS, quantos? Já não sou muito exigente: abaixo dos 40?
Com aquela espécie de amiba que escolheram para SG, esperavam outra coisa?
Zeca, 96
Zeca Afonso nasceu em 02.08.1929. Porque tudo já foi dito sobre um dos nossos maiores, repesco, em jeito de homenagem, uma bela crónica de Manuel António Pina:
Vampiros e eunucos
«Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda no pinhal do rei", tendo, em tempos afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".
Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam, convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade. Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente mais poético.
O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes; se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos "eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os maiorais".
Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»
Jornal de Notícias, 24.02.2011
Mais gato por lebre
«O nosso Governo jura que todos os seus atos serão determinados "exclusivamente pelo objetivo de servir as pessoas". Di-lo como sendo algo novo, mas todos os governos o disseram. As injustiças e desigualdades, a pobreza e miséria humanas que atravessam a sociedade atual - globalmente mais rica que nunca - são, muito, o resultado de leis e práticas governativas injustas, sempre anunciadas como bondosas. O mundo do trabalho é das áreas onde mais se incrementa o exercício de vender gato por lebre. Assim acontece com o novo pacote laboral.
Nunca se assumiu uma avaliação dos impactos causados pelas alterações introduzidas em 2003 que agonizaram a contratação coletiva e aceleraram precariedades. Também não se avaliaram as alterações relativas ao teletrabalho, feitas em 2021, nem as decorrentes da Agenda do Trabalho Digno de 2023. O Governo move-se por uma agenda política retrógrada, que o contexto nacional e externo sintonizou com grandes interesses do setor financeiro e económico. Quem quiser acreditar na exposição de motivos do anteprojeto, julgar-se-á a caminho de um país mais justo e solidário. Mera ilusão.
A modernização proclamada combina a liberalização dos despedimentos (que retoma velhas reivindicações patronais de recusa da reintegração dos trabalhadores no caso de despedimento sem justa causa), com a facilitação do outsourcing após despedimentos. Recorde-se que o Tribunal Constitucional considerou válido o travão introduzido na lei em 2023. É acentuada a precarização das relações laborais, facilitando o uso dos contratos a termo, temporários e intermitentes e reduzindo o universo dos trabalhadores economicamente dependentes. Um trabalhador era considerado como tal quando o seu rendimento vinha, pelo menos em 50%, da atividade prestada a uma só entidade patronal, agora propõe-se que a fasquia suba para 80%. Daí resultará o aumento do universo dos falsamente independentes.
O Governo quer revogar a maior parte dos critérios para reconhecimento do contrato de trabalho dos trabalhadores das plataformas digitais, introduzidos pela legislação de 2023, propondo critérios de laboralidade favoráveis à "uberização". É a velha receita de normalizar a precariedade para provar que esta não existe.
O atrofiamento da negociação coletiva prossegue com a eliminação de alguns mecanismos travão da caducidade das convenções, sendo revertido o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador no caso do trabalho suplementar e do teletrabalho. Recupera-se o banco de horas individual, permitindo aos patrões contornar as disposições das convenções coletivas. Limita-se a intervenção dos sindicatos onde não têm associados e o direito à greve é atrofiado.
O liberalismo económico e a conceção fascista de que os trabalhadores são seres suspeitos encontram eco no Parlamento. É urgente o combate às bases estruturais das desigualdades, pelo trabalho digno e por condições para a conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar.»
1.8.25
A quem serve esta Europa?
«Assistimos em direto nas televisões durante o fim de semana à capitulação da União Europeia perante os Estados Unidos e à falência da “soberania europeia”, tão proclamada por líderes europeus enquanto anunciavam programas de reindustrialização e de rearmamento.
A subserviência e dependência da Europa em relação aos EUA não são novas, mas fingir ignorar quem é o atual Presidente americano, e a sua ortodoxia política – negacionista da crise climática, persecutória de minorias, belicista, racista, permanentemente ameaçadora – é roçar a indigência política.
O espetáculo de Ursula von der Leyen, seráfica e muda, enfiada numa poltrona, enquanto Donald Trump, ufano, ditava as regras do jogo, foi humilhante. Um gigante de enredo bufo que, do seu saco sem fundo, ia tirando tarifas aduaneiras de 15%, sem reciprocidade para produtos norte-americanos, o compromisso da UE em investir mais 600 mil milhões de dólares nos EUA (três vezes o valor do excedente comercial bilateral), exigências de compra de produtos energéticos no valor de 750 mil milhões, em plena crise climática, mais 350 mil milhões de euros em armamento para alimentar o complexo militar norte-americano.»
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O vazio da social-democracia
«Em pleno cavaquismo, em plena crise política desencadeada pelo bloqueio da Ponte 25 de Abril, José Pacheco Pereira escreveu uma crónica tentando explicar a quem governava o que era a vida de uma família com casa na Margem Sul de Lisboa mas cujos pais trabalhavam no centro da capital. A crónica caiu como uma bomba, porque era uma crítica vinda de dentro, com uma dose de ultrarrealismo. Sinalizava a Cavaco Silva que estava a perder o país.
Trinta anos passados não estamos nem numa crise económica nem na fase final do ‘montenegrismo’, mas estamos com falta de consciências críticas no PSD. Isso explica como o Governo vai mudando a identidade do próprio partido sem que ninguém apareça a fazer perguntas. Isso é muito notório em temas como a imigração e a nacionalidade, mas causa espanto também quando se olha para a proposta de revisão da lei laboral, anunciada há uma semana.
Imagine um casal cuja gravidez não vingou ou que foi obrigado a interrompê-la. Se a proposta do Governo for concretizada, o pai deixa de ter direito aos três dias de luto a que hoje tem direito sem perder rendimento. A mulher manterá esse direito, até por mais dias, mas terá de fazer esse luto sozinha, enquanto o homem vai chorar para o seu posto de trabalho.
Imagine agora uma mãe que veio de Castelo Branco mas arranjou trabalho num hospital em Lisboa. Ela não tem apoio familiar: o marido teve de emigrar, está sozinha com o filho de 3 anos. Se a ideia do Governo for aprovada, essa mãe deixa de poder dizer ao chefe que não pode trabalhar à noite ou ao fim de semana, por não ter quem fique com o seu filho. Ela que se arranje.
São apenas dois exemplos, ainda que existam outras ideias questionáveis na proposta de alteração “profunda” anunciada pelo Governo, no sentido de “flexibilizar” o trabalho e “fazer crescer a economia”. Olhando para elas, em conjunto, vale a pena perguntar o que quer realmente este PSD. Tudo isto aparece de onde e porquê, quando o impacto destas propostas é tão grande em algumas pessoas mas irrelevante nas empresas e inexistente na economia nacional? E também porquê, quando vai em sentido contrário a um dos valores mais importantes do centro-direita, precisamente o da proteção e valorização da família, quando funciona como desincentivo à natalidade, que deve ser partilhada pela mãe e pelo pai, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, como se diz nos tradicionais votos de casamento?
Volto atrás para sublinhar: que o PSD, quando está no poder, ouça as empresas e as suas necessidades, faz parte da saudável alternância política. Que o faça cegamente, sem ter um fio de prumo que lhe permita manter coerência, valores e o interesse estratégico do país é preo¬cupante. Que o faça sem medir o impacto que isso tem na vida real de muitas famílias é um sinal de alarme — muito evidente quando até André Ventura veio avisar que não contem com ele para isso.
Há uns anos, por causa de uma simples e pontual tolerância de ponto (aquando de uma visita do Papa Francisco), um exasperado João Miguel Tavares perguntou numa crónica a António Costa se queria ficar com os filhos dele no Palácio de São Bento, porque não tinha onde os deixar quando fosse trabalhar. Nessa altura, Costa recebeu-os. Talvez fosse mais urgente a Montenegro fazer agora o mesmo e receber em São Bento os filhos ou os pais que está prestes a prejudicar. Talvez percebesse melhor.»
31.7.25
Mais um jarro
Jarro de prata e cobre decorado cromaticamente com técnicas de metais mistos. Museu de Belas Artes, Boston, 1876.
Tiffany & Co.
Daqui.
Fogos: meios aéreos?
Tiago Oliveira sabe do que fala.
31.07.2017 – O dia em que Jeanne Moreau deixou o «tourbillon de la vie»
Com uma carreira longuíssima de actriz, realizadora e cantora, iniciada em 1950, e uma filmografia impressionante com cerca de 130 nomes listados, trabalhou com um rol notável de realizadores, entre os quais Luis Buñuel, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, François Truffaut, Louis Malle, etc., etc.
Já agora, de sublinhar a sua participação em Gebo et l’Ombre, de Manoel de Oliveira (2012), onde faz o papel de Candidinha.
Momentos inesquecíveis? Entre outros, evidentemente, Le Tourbillon, em Jules et Jim de François Truffaut:
Aqui, num belíssimo duo com Maria Betânia:
De quem é o Carvalhal? É de vários grupos hoteleiros!
«Segundo o Expresso, várias praias do concelho de Grândola têm neste momento acesso condicionado. Entre Tróia e Melides, há muitas praias em que nem toda a gente pode entrar, fazendo de Grândola uma vila certamente menos morena, dado que já não se consegue estar sossegado ao sol no areal. Talvez haja uns retoques a dar à letra da canção do Zeca Afonso. “Em cada rosto igualdade” mantém-se, uma vez que toda a gente está igualmente impedida de ir ao areal. Só pode ir quem estiver alojado em certos empreendimentos turísticos, o que não parece ser o caso de muitos grandolenses. E deve ser possível continuar a encontrar em cada esquina um amigo, porque na praia — onde, aliás, não há esquinas — ninguém consegue entrar facilmente.
Devíamos ter desconfiado. Um membro da família Espírito Santo já tinha dito, há uns anos, que gostava de ir à Comporta para viver “em estado mais puro”. “É como brincar aos pobrezinhos”, acrescentou, celebremente. Como é evidente, quando se quer brincar aos pobrezinhos, a primeira regra é não deixar entrar pobrezinhos. Caso contrário, eles ganham sempre, e a brincadeira perde a graça. É como ir brincar aos futebolistazinhos com o plantel do Real Madrid. Nem sequer tocamos na bola.
Na verdade, a criação de praias privadas e exclusivas é uma medida de elementar justiça. A praia é um sítio em que estamos praticamente nus: um fato de banho, e é tudo. Ora, quando estão nuas, as pessoas parecem mesmo iguais, o que é lamentável. Não há um fato italiano a marcar a diferença, um automóvel de gama alta para ajudar a fazer distinções, um relógio de luxo a indicar um estatuto diferente.
O ideal é encontrar um modo de garantir que os pelintras não podem entrar. Não faz muito sentido que quem tem casas melhores, carros melhores e roupa melhor não frequente uma praia melhor. Mesmo a circunstância de o sol brilhar para todos sempre me pareceu injusta. Pode ser que ainda se consiga fazer alguma coisa em relação a isso. Julgo que as reivindicações de igualdade feitas em nome de Grândola são perigosas. Recordo que Grândola, vila morena, é logo promovida a cidade no fim da primeira quadra. Precisaremos de mais provas de que os grandolenses são abusadores? Se lhes dermos acesso à praia não se sabe o que pode acontecer. Cuidado com isso.»
30.7.25
30.07.1974 - «A morte do colonialismo»
Há 50 nos, milhares de pessoas concentraram-se junto ao Palácio de Belém para manifestarem ao Presidente da República a alegria pelo fim da guerra colonial. A manifestação foi convocada pelos três partidos representados no II Governo Provisório: PS, PPD e PCP.
Na véspera, tinha sido assinado, em Argel, o acordo que reconhecia a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Centenas de horas com imagens de fogos nas TVs
𝐀𝐮𝐝𝐢ê𝐧𝐜𝐢𝐚𝐬, 𝐟é𝐫𝐢𝐚𝐬, 𝐢𝐧𝐜𝐨𝐦𝐩𝐞𝐭ê𝐧𝐜𝐢𝐚 𝐞 𝐩𝐫𝐞𝐠𝐮𝐢ç𝐚 𝐧ã𝐨 𝐣𝐮𝐬𝐭𝐢𝐟𝐢𝐜𝐚𝐦 𝐨 𝐪𝐮𝐞 𝐭𝐨𝐝𝐚 𝐚 𝐠𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐬𝐚𝐛𝐞: 𝐚𝐬 𝐓𝐕𝐬 𝐞𝐬𝐭ã𝐨 𝐚 𝐚𝐥𝐢𝐦𝐞𝐧𝐭𝐚𝐫 𝐢𝐧𝐜𝐞𝐧𝐝𝐢á𝐫𝐢𝐨𝐬, 𝐣á 𝐪𝐮𝐞 𝐞𝐬𝐭á 𝐜𝐨𝐧𝐟𝐢𝐫𝐦𝐚𝐝𝐨 𝐩𝐨𝐫 𝐪𝐮𝐞𝐦 𝐝𝐞 𝐝𝐢𝐫𝐞𝐢𝐭𝐨 𝐪𝐮𝐞 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐨𝐬 𝐢𝐧𝐜ê𝐧𝐝𝐢𝐨𝐬 𝐜𝐨𝐦𝐞ç𝐚𝐦 𝐝𝐮𝐫𝐚𝐧𝐭𝐞 𝐚 𝐧𝐨𝐢𝐭𝐞 𝐞 𝐪𝐮𝐞 𝐬ó 𝐩𝐨𝐝𝐞𝐦 𝐭𝐞𝐫 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐨𝐫𝐢𝐠𝐞𝐦 𝐟𝐨𝐠𝐨 𝐩𝐨𝐬𝐭𝐨.
30.07.2007 – O dia em que Antonioni e Bergman nos deixaram
Há 18 anos, com a morte de Michelangelo Antonioni e de Ingmar Bergman, ficaram dois lugares vazios na lista dos grandes do cinema ainda vivos. Mas continuam bem no fundo da nossa memória que ajudaram a moldar.
Em jeito de homenagem, aqui ficam pequenos excertos de «L'Eclisse» e «Blow Up» do primeiro e de «O sétimo selo» e «Morangos silvestres» do segundo.
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Lei laboral: aproveitar a oportunidade para desequilibrar a balança
«O governo propõe uma reforma laboral muitíssimo ambiciosa que desequilibraria a já muito injusta relação entre trabalhadores e patrões. São mais de 110 artigos modificados. Um sexto (quase 90) do Código do Trabalho, mais as várias e importantes alterações a legislação conexa. Um autêntico terramoto.
Apesar da profundidade da mudança, a proposta é apresentada no fim de julho, para ser debatida durante as férias e a campanha autárquica e com o propósito provável de estar fechada antes do Orçamento de Estado. A AD, com a ajuda do Chega e da IL, não pretende dar tempo e espaço à reação dos sindicatos. Quer aproveitar a oportunidade histórica que as ultimas eleições lhe ofereceram. É de esperar, aliás, que depois de chegar às associações patronais a coisa ainda piore um pouco mais.
O caso mais falado tem sido o luto gestacional, talvez por ser tão chocante. O Ministério andou às voltas com justificações, tentando que a miséria humana fosse menos evidente, mas a verdade é que o pai perde, num momento tão traumático, a remuneração pelos dias que falta. Mas deixem-me que escolha alguns exemplos um pouco mais estruturais, para se perceber para que lado se inclina quase tudo o que é apresentado.
Na exposição de motivos da proposta, promete-se “o fomento e dinamização da contratação coletiva, o combate à precariedade laboral e, ainda, uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e privada e a vida profissional”. É extraordinário, por ser tudo ao contrário. Mas a novilíngua é a maior arte deste governo.
ISOLAR O TRABALHADOR
Falemos da contratação coletiva. No que toca à caducidade das convenções coletivas, o poder volta para as mãos dos patrões. Os incentivos para uma negociação equilibrada desaparecem com a eliminação do sistema de arbitragens criado na última revisão laboral para limitar o uso da caducidade pelos patrões. A possibilidade do seu uso arbitrário como pressão para a abdicação negocial regressa em força.
“Remissão abdicativa” significa que o patrão, na hora da despedida e de pagar o que deve ao trabalhador (indemnização, férias, subsídios, créditos de formação, etc.) exige que este, num momento de aflição, aceite as suas contas como condição para receber o dinheiro, abdicando por escrito de quaisquer créditos em falta a que tenha direito. Uma das medidas mais emblemáticas da Agenda do Trabalho Digno foi eliminar esta disposição que facilitava a chantagem patronal, assegurando que o trabalhador não perderia os direitos por qualquer declaração que assinasse no acto do despedimento, excepto por acordo em tribunal. Agora, querem voltar atrás e repor a remissão abdicativa, deixando o trabalhador desprotegido perante a pressão para abdicar de tudo na hora de receber a indemnização.
Outra mudança introduzida na Agenda do Trabalho Digno e que irritara muito as associações patronais e a ministra enquanto juslaboralista fora a proibição de recorrer ao outsourcing para substituir trabalhadores, nos doze meses seguintes, que tivessem sido afastados por despedimento coletivo ou extinção de posto de trabalho. Irritou tanto que a Provedora de Justiça (atual ministra da Administração Interna) recorreu ao Tribunal Constitucional, sem sucesso. Mesmo depois de um acórdão histórico e recente que vale a pena ler, pela sua clareza, também querem revogar esta norma.
Outra alteração para pior é no núcleo reduzido de matérias que o Código de Trabalho ainda sujeita ao princípio do tratamento mais favorável, ou seja, em que nenhuma negociação colectiva pode impor condições menos favoráveis ao trabalhador do que os direitos estabelecidos na lei. Agora, querem retirar do âmbito de aplicação deste princípio o teletrabalho e o trabalho suplementar, abrindo campo aos abusos patronais e à imposição de condições abaixo da lei.
MAIS PRECÁRIOS, MAIS EXPLORADOS
Falemos do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Os bancos de horas podem ser acordados por negociação colectiva ou com um carácter grupal se aplicado a um grupo de trabalhadores de uma empresa (equipa, secção, unidade económica), desde que aprovado por referendo, tendo em conta as necessidades de produção e o direito ao descanso. Com eles, o período normal de trabalho pode ser aumentado dentro de certos limites, e as horas a mais compensadas com redução equivalente do tempo de trabalho, mais férias ou dinheiro. Os bancos de horas individuais, ou seja, por acordo directo entre trabalhador e patrão, estavam eliminados desde 2019. Regressam agora na proposta do Governo, como os patrões também exigiam.
Falemos de combate à precariedade. Os prestadores de serviços, muitos deles falsos “recibos verdes”, eram considerados “trabalhadores independentes economicamente dependentes” se tivessem pelo menos metade dos rendimentos anuais vindos da mesma empresa, o que lhes assegurava mais direitos laborais. Agora, o limite passa para 80%, reduzindo significativamente o universo dos trabalhadores protegidos.
Quanto aos trabalhadores das plataformas digitais, a proposta implica o desmantelamento quase completo do sistema de protecção legal criado na revisão de 2023, revogando quase todo o extenso e conhecido artigo que regulava a presunção de laboralidade, ou seja, a existência de um contrato de trabalho com maiores direitos em comparação com o regime precário da prestação de serviços. A proposta torna muito mais difícil a verificação desta presunção. Boa notícia para as plataformas digitais, péssima para os trabalhadores. As Uber desta vida levam a melhor, depois de muito lóbi e pressão.
Quanto aos contratos a prazo, o primeiro contrato, renovável, podrá durar um ano, quando actualmente não pode exceder seis meses. A duração máxima acumulada dos contratos a termo certo passa a ser de três anos, em vez dos dois actuais e, no caso dos contratos a termo incerto, o limite máximo passa de quatro para cinco anos. Uma das poucas melhorias claras nas condições de trabalho, na última década, foi a redução da precariedade, num dos países com mais precários na Europa. Atirado para o lixo.
A proposta do governo também acaba com a criminalização do trabalho não declarado, o que tem, por exemplo, forte incidência no trabalho doméstico, onde se verificaram, a partir da revisão de 2023, dezenas de milhar de inscrições na Segurança Social. É mais um estímulo ao trabalho dito "informal". A proposta revoga a norma do regime geral das infracções tributárias que desde a revisão de 2023 obrigava os empregadores a comunicarem à Segurança Social a admissão de trabalhadores no prazo de seis meses, sob pena de serem punidos com prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. Um dos vetores centrais desta contrarreforma é um mundo do trabalho precário, de prestadores de serviços, de contratados a termo e de trabalho clandestino, sendo o contrato de trabalho permanente e com direitos um anacronismo que não cabe nesta visão "modernizadora" para o retrocesso.
TUDO PARA O MESMO LADO
Deixo de fora as propostas restritivas do direito de greve e da ação sindical nas empresas, tão populares em quem não percebe que é por fraqueza crescente dos sindicatos que os trabalhadores têm perdido direitos a cada década que passa. Nunca ninguém ofereceu nada a quem não se organiza para exigir o que é seu.
Podemos concordar ou discordar de cada mudança. Mas é impossível não ver que quem deveria governar para todos se empenha em desequilibrar a balança sempre para o mesmo lado. Avisei, desde o primeiro dia do governo anterior, que esta ministra tinha uma agenda radical. O seu trabalho académico era conhecido e não surpreende ninguém. É competente? Sim. A questão é ao serviço de quem está, em exclusivo, a sua competência.
Num país que assiste a fuga de trabalhadores para o exterior, por estarem fartos de salários baixos, ambientes tóxicos e ausência de qualquer horizonte de carreira, o programa desta ministra é mais uma desistência de futuro. A que chama, porque o recuo tem de parecer moderno, “Trabalho XXI”.»
29.7.25
O isolacionismo da CDU
«CDU foi desafiada a liderar coligação de esquerda em Loures, mas comunistas não mostram disponibilidade. “Estarmos juntos contra esta deriva autoritária era muito importante”, defendem partidos.»
29.07.1890 – O dia em que Van Gogh morreu
Tudo se sabe sobre este extraordinário pintor nascido nos Países Baixos, mas prefiro recordar a sua estadia em Arles porque voltei a passar por lá há poucos anos.
Foi em Arles que o pintor se exaltou com a luz do Sul e pintou muitos dos quadros que tão bem conhecemos, desde os famosos girassóis aos ciprestes, à casa amarela onde viveu, ao célebre quarto, ao autoretrato com a ligadura depois de ter cortado a orelha por causa de uma forte zanga com Gauguin – 185 quadros entre Fevereiro de 1888 e Maio de 1889.
Depois do corte da orelha, a população considerou-o cada vez mais louco e exigiu o seu internamento definitivo no Hotel de Deus da cidade, misto de asilo e hospital. O claustro está hoje intacto (foto no topo deste post), tal como ele o pintou. Pediu depois para ser transferido para um hospital psiquiátrico perto de Saint-Rémy-de-Provence e regressou mais tarde aos arredores de Paris.
Se não o tratou bem em vida, Arles tira hoje todo o partido possível da estadia de Van Gogh nas suas terras.
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Educação sem corpo
«Há um estranho consolo em discutir programas escolares em julho. A sala está vazia, os quadros limpos, os corredores silenciosos. E é nesse silêncio que surgem as polémicas mais ruidosas: mudanças no currículo, ameaças ao futuro da juventude, fantasmas ideológicos escondidos em parágrafos. Desta vez, o que se discute é o lugar da sexualidade na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Ou, mais exatamente, o seu apagamento.
Diz o Governo que não se trata de censura, que é só uma pequena reorganização. A sexualidade passará a integrar a área da saúde, dissolvida num domínio mais amplo, mais técnico, mais asséptico.
A reação foi previsível: gritos de alerta, colunas inflamadas, indignação moral de um lado e do outro. Como se a escola estivesse prestes a tornar-se campo de reeducação progressista ou, inversamente, reduto do puritanismo restaurado. Como se uma aula de quarenta e cinco minutos por semana — quando existe — fosse o campo de batalha final da nossa consciência cívica.
É que o problema é esse: a aula muitas vezes não existe. A Fenprof estimou que, no último ano letivo, mais de um milhão de alunos ficaram sem professores em pelo menos uma disciplina. O Ministério não conseguiu desmentir, mesmo depois de ter encomendado um estudo à KPMG queterminou em incógnita. Não sabemos quantos alunos têm professores, mas sabemos que as aulas de Cidadania vão ser reformuladas. Reformuladas, ainda que para muitos não sejam sequer leccionadas.
Discutimos um subgrupo de uma disciplina que estatisticamente não chega à sala. É um debate na torre de marfim, onde se discute com seriedade algo que não existe com regularidade. Não é reforma nenhuma. É distração.
A eliminação da sexualidade deste programa não é um acidente técnico, nem um simples erro de formulação. É um gesto. Um piscar de olho. Uma forma de dizer à extrema-direita que estão estamos atentos aos receios que os atormentam. O Governo, neste caso, prefere evitar o alarme das famílias do que enfrentar o analfabetismo emocional. Prefere agradar a quem se ofende com a palavra “sexo” do que ensinar a diferença entre toque e violência, entre desejo e coação, entre intimidade e vergonha.
Dizer que a educação sexual nas escolas é doutrinação ideológica não é só falso; é perigoso. A sexualidade, enquanto tema educativo, não nasce da agenda woke, dos anti-cristo, nem da militância progressista. Está consagrada, como bem lembrou a Susana Peralta, em tratados internacionais, normas da OMS, estratégias europeias sobre saúde reprodutiva. Desde 1990 que a Convenção sobre os Direitos da Criança exige que os Estados protejam os mais novos através de educação sexual. A Unesco atualizou em 2018 os seus standards, lembrando que ensinar sexualidade não é ensinar comportamento, é ensinar consciência cognitiva, emocional, física, social.
Quando se fala de sexualidade nas escolas, fala-se de prevenir abusos. De ensinar o que é consentimento. De nomear o corpo para que o corpo não se torne tabu. Fala-se de proteger. De informar. De cuidar.
A educação sexual não serve para inculcar ideologia. Serve para impedir silêncio. Onde não se ensina, perpetua-se o risco de ignorância, de violência, de culpa mal dirigida. O risco de crescer sem saber o que é, sem conseguir nomear, sem amparo.
Por isso, o verdadeiro escândalo não é o que está escrito nos novos documentos. É o que não está. Não há professores, não há aulas, não há garantias. Mas há zelo na escolha dos temas de uma disciplina para agradar aos pais de Famalicão e a ideólogos radicais da direita radical. Há prudência calculada. Há medo de desagradar a quem grita mais alto.
A escola pública é, por definição, plural. E essa pluralidade exige coragem de se ensinar o que custa, de nomear o que incomoda, de incluir o que se prefere esquecer.
Apagar a sexualidade das aulas de cidadania, é mais do que uma opção pedagógica, um gesto simbólico que retira o corpo da formação do cidadão. Como se a cidadania pudesse ser ensinada sem desejo, sem limite, sem toque e os alunos fossem espíritos puros a flutuar acima do corpo que habitam.
É sempre mais fácil falar de polémicas que não se concretizam do que resolver os problemas reais que já estão em curso. E é por isso que discutimos o conteúdo de uma aula que ninguém tem. Enquanto isso, no mundo real, os alunos esperam por professores que não chegam. E os seus corpos, esses, não esperam por ninguém.»
28.7.25
Uma bela escadaria
Escadaria do Observatório do Castelo de Abbadie, em estilo neogótico, Hendaia (Pirenéus), França. 1864-1879.
Construído por Eugene Viollet-le-Duc e Edmond Duthoit.
Admirável Timor-Leste
«Numa altura em que se debate o retrocesso do número de países no mundo a serem democracias, pela primeira vez em 30 anos menor do que o de autocracias, Timor-Leste destaca-se pela positiva como um dos 88 países que passaram no crivo do Instituto V-Dem, com sede na Universidade de Gotemburgo. No relatório publicado agora pelo instituto sueco, o pequeno país lusófono destaca-se no contexto do Sudeste Asiático, e está no mesmo patamar democrático que países como a Polónia, o Brasil, a Argentina ou Cabo Verde.
Com 23 anos de independência, a contar a partir de 2002, quando terminou a administração pelas Nações Unidas que se seguiu ao referendo que libertou a antiga colónia portuguesa da ocupação pela Indonésia, Timor-Leste serve também para desmentir a ideia que por vezes existe de que as autocracias são mais eficazes do que as democracias, pois há dias foi anunciado um extraordinário êxito do jovem país: a eliminação da malária. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que constatou que “a cadeia de transmissão autóctone foi interrompida em todo o território nacional, por três anos consecutivos”, tudo resultou de um esforço nacional que vem do primeiro momento pós-independência, apoiado por esforços internacionais. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, uma das agências das Nações Unidas, destacou, num comunicado publicado no dia 24, “forte vontade política, intervenções inteligentes, investimentos nacionais e externos e profissionais de saúde dedicados”.»
Continuar a ler AQUI.
Loures soma e segue
«O gabinete criado pela da Junta de Freguesia de Portela e Moscavide funciona como canal de denúncias para casos como “espaços comerciais transformados ilegalmente em habitação”. Oposição acusa autarca do PS de promover “sentimento de insegurança que não existe”.»
“Não sirvas a quem serviu”
«Nos trinta anos depois da II Guerra, França viveu um boom económico que levou a uma forte necessidade de mão-de-obra. Como sempre aconteceu e acontecerá, esta necessidade resultou em imigração em massa para o território. O que, associado a uma crise habitacional e à falta de planeamento urbanístico, levou ao surgimento de bairros de lata que, em França, ganharam o nome de bidonville. Construídos com material precário, sem água potável, saneamento ou eletricidade, eram bairros informais que se multiplicaram nas periferias de Paris. O bidonville de Champigny era onde havia mais portugueses. Mas não era o único.
Primeiro foram os imigrantes vindos das ex-colónias francesas, sobretudo da Argélia saída da guerra, depois, em fuga da miséria e da guerra colonial, os portugueses. Entre 1957 e 1974, cerca de 900 mil portugueses foram para França. Mais de meio milhão ilegalmente. Os homens trabalhavam na construção civil e nas fábricas, as mulheres limpavam casas. Na altura, como hoje, foram alguns setores da Igreja, ativistas de esquerda e intelectuais, os que recorrentemente são acusados de não conhecerem o “País real”, que prestaram atenção à vida miserável nos bidonvilles.
Em meados da década de 70, o governo francês lançou um programa de demolição dos bidonvilles, incluindo o de Champigny, deslocando os imigrantes para zonas segregadas, o que veio a marcar o péssimo modelo urbano e de integração que, duas décadas depois, Portugal viria a imitar.
Houve protestos contra as demolições, liderados por movimentos sociais (que também terão sido tratados como criminosos), por organizações religiosas e por intelectuais. Aconteceram porque eram desfeitas relações de vizinhança, porque não eram oferecidas alternativas imediatas ou porque as alternativas eram péssimas. Os moradores, que contribuíam, com o seu trabalho, para a prosperidade de França, não achavam que ali estivessem por favor. Achavam que, trabalhando para a riqueza francesa, mereciam respeito e direitos. Os protestos atingiram níveis bem mais vocais do que os liderados pela “Vida Justa”, um movimento que um tristemente célebre autarca “socialista” a Loures tratou, copiando também aqui os tiques da extrema-direita, de tentar criminalizar.
Na CNN, Filipe Santos Costa foi buscar “Allez Paris”, trabalho de António Pedro Ferreira (uma das fotos acompanha este texto). Está no Arquivo Municipal de Lisboa, até setembro, e serve de lembrete para não nos esquecermos de onde viemos.
Hoje, somos “europeus”. Queixamo-nos da invasão de imigrantes que aqui vêm contribuir, fazendo o trabalho que já não queremos, para a prosperidade nacional. Os que aqui chegam sem papéis são criminosos. As barracas que erguem, porque não nos preparámos para o facto indesmentível de precisarmos de mais pessoas, são a prova da sua criminalidade. Os autarcas prometem mão forte. Como estamos mudados, esquecendo o lugar onde já estivemos.
Olhamos de cima para os que nos limpam as casas e os escritórios, tratam dos velhos, erguem os prédios, pavimentam as estradas, colhem os alimentos. Somos, finalmente, “civilizados”. E como quase todos os que subiram há pouco tempo, mas preferem esquecer de onde vieram, somos especialmente cruéis na nossa superioridade. Diz o povo, na sua infinita sabedoria, “não peças a quem pediu, nem sirvas a quem serviu”. O povo é que sabe.»
27.7.25
Nuno Portas
Conheci-o bem, comecei por encontrá-lo no atelier de Nuno Teotónio Pereira no início dos anos 60, seguiram-se tempos em que navgámos em águas de antifascismo semelhantes, fizemos mesmo parte de uma direção épica do Centro Nacional de Cultura.
Tinha 90 anos, vai-se fechando uma geração que tanto marcou este país.
As cinzas de um povo
«Pela manhã, acordamos sufocados com os números obscenos dos mortos em Gaza, trazidos pelas notícias. À noite, adormecemos angustiados com a actualização da desumana destruição deste território. Crianças que morrem de fome, que se esvaem nos braços dos pais por falta de água, comida, remédios, socorro humanitário. Estima-se que morram em média 28 crianças por dia, diz-nos o vice-porta-voz da UNICEF. As imagens televisivas reportam-nos o desespero, os escombros, a morte de um povo. É este o dia-a-dia dos palestinianos que choram os seus estropiados, os seus mortos; o desespero de não terem nem comida nem bebida para os seus, que correm risco de vida quando vão em busca de pão ou de água, nos centros de distribuição. Têm de escolher entre morrer de fome, de sede ou de um tiro, um míssil ou uma bomba direccionados à multidão que geme e grita por um precário auxilio alimentar. Gaza é um cemitério ao ar livre com sangue e cinzas dos seus filhos... Entretanto o responsável por esta situação apocalíptica, o primeiro-ministro israelita tenta convencer (se) da justeza, contenção e racionalidade da sua guerra fratricida contra o povo palestiniano, acusando a ONU, centenas de ONG, jornalistas e organizações internacionais, que trabalham heroicamente no terreno, de serem antissemitas. É a defesa de um fraco que sabe que não tem razão, que a verdade cruel e horrenda chegou já à casa de toda a comunidade internacional.»
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A praia é do povo
«Há um reduto onde os portugueses não prescindem da propriedade pública. Não são os correios, a distribuição energética, a companhia aérea, os caminhos de ferro, os solos urbanos, a floresta ou até a água. Quando chegam à praia, têm consciência de uma verdade para lá dela: que aquilo que a natureza deu a todos só pode ser de alguém por um qualquer roubo original. Que continua sempre a ser tentado, com reação popular. Com as suas reportagens no Expresso, a Carla Tomás transformou o acesso exclusivo a grande parte das praias de Grândola num tema nacional. A reação pública foi tal que o Governo pediu uma fiscalização da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). A conclusão não surpreende: há duas praias de acesso vedado e oito condicionado, excluindo ou dificultando o acesso. Numa, até se exige o cartão do cidadão. E, no entanto, aquelas praias são nossas.
Ao contrário do que acontece em muitos países, a nossa lei não permite praias privadas. Quem andou pelo mundo sabe que a privatização acaba na degradação do areal público, “empurrando” quem pode pagar para as praias privadas, onde se vendem “experiências exclusivas”. Essas praias privadas não são melhores do que as nossas públicas. Longe disso. São melhores do que as praias públicas ao lado, que a segmentação social e o abandono degradam. Privados, nós temos os toldos, as espreguiçadeiras e os bares de apoio, cujos preços variam consoante a seletividade social da zona. Uma solução de compromisso entre a exploração empresarial e o interesse geral, aliviando os custos públicos com a manutenção e segurança. Mas qualquer um pode levar o seu chapéu de sol e consumir o que lhe apetecer, com acesso livre e gratuito.
A praia é central na identidade coletiva de um povo que tem o sol e o mar como bens democráticos e conquistou há pouco tempo o direito ao lazer. E é isso que explica a reação popular à notícia de que não há acesso público ao longo de 45 quilómetros de areal em Grândola. Na verdade, a tentativa de fazer seleção social começou com a concessão da travessia fluvial de Setúbal a Troia a uma empresa com fortes interesses turísticos na península e nenhum interesse que o povo lá chegasse, impondo preços proibitivos. Agora, a vontade de vender paraísos escondidos, o beneplácito da autarquia e o zelo da APA oferecem-nos a pior forma de privatização. Fechando caminhos antes abertos e garantindo praias sem estacionamento numa área de quilómetros, afastam-se as pessoas do que sempre foi seu. As praias para onde o clã Salgado ia “brincar aos pobrezinhos” tornaram-se um clube privado sem os custos correspondentes.
Como reação, o Governo diz que vai impor preços máximos ao que seja vendido nas praias. Se são concessionadas pelas autarquias, a elas caberia definir as restrições e condições. Só que as Câmaras não mostram grande empenho. Há mais de um mandato que a de Grândola se “esquece” de lançar um regulamento para a concessão. Sem ele, vem a renovação automática, sem concurso público, transparência ou imposição de restrição. É aí, na contratualização transparente com privados da gestão de um espaço público, que se definem preços e condições. Depois há a APA. É ela que vai autorizando empreendimentos privados sem estacionamento público. A despesa dos hotéis com o transporte direto dos seus resorts à praia é compensada pela oferta de paraísos seletivos, o que inflaciona os preços de hotelaria. Quem não tem carteira só lá pode chegar por trilhos improvisados nas dunas, uma pressão adicional sobre o ecossistema. Depois de anos em silêncio, a Câmara de Grândola, que nunca construiu um parque de estacionamento de retaguarda, promete milhões de euros num passadiço em terrenos municipais para abrir espaço até às praias. Seja qual for a cor do poder, não há melhor do que a pressão popular.
Apesar da estratificação existir e de todas as tentativas de encerrar tudo entre as paredes herméticas do negócio, a praia é o que nos sobra de mais interclassista. Mais que a escola ou o hospital. Mais do que as cidades e os bairros. Um espaço comunitário que resiste à gentrificação de toda a sociedade. Enquanto o turismo urbano comprime os espaços públicos de socialização, ocupados por grandes cadeias hoteleiras, expulsando coletividades, tascas ou cafés de bairro, matando cidades que são cada vez mais iguais umas às outras, sem diversidade social, vida coletiva e lugar de encontro que as faz lugar de vida, a praia resiste. Porque o povo não está disposto e entregar a ninguém o que é de todos. Lembra-nos que somos mais do que clientes. Somos uma comunidade.»
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