«A comunicação social adora vencedores. Porque, ao
contrário do que parece, adora o poder. Adora sentir que anunciou a mudança antes de acontecer. E é assim que se impõem as profecias autorrealizadas, apresentando um candidato que nunca fez uma campanha, e de quem quase nada sabemos, enquanto vitorioso inevitável. Isto, apesar das tantas surpresas que a vida política nos tem reservado e de o voto nunca ter estado tão solto.
Sim, é verdade que tudo está a favor de Henrique Gouveia e Melo. A farda em tempos de orfandade de autoridade política. O papel na pandemia, que beneficiou todos os envolvidos, uma originalidade doméstica num país de idosos. A ausência de currículo político, considerado cadastro num tempo de descrença. O vazio ideológico, que o permite escolher o seu lugar.
Os primeiros passos do almirante mostraram a sua volubilidade: quando percebeu que as pessoas não reagiam bem a cortes sociais para investimento na defesa, recuou; quando percebeu que o regresso do Serviço Militar Obrigatório não era tão popular como parecia, deu o dito por não dito. A firmeza do estilo não se traduz em consistência programática.
Os apelos a uma união nacional em torno de um homem providencial, a quem a farda emprestou uma autoridade aparentemente apolítica, não se comparam, como é evidente, ao ódio divisivo espalhado pela extrema-direita. Mas, historicamente, uma coisa é consequência da outra. São dois condimentos do mesmo caldo político. O discurso da grandeza perdida também.
Pouco interessa em que lugar político se coloca Gouveia e Melo, que diz estar entre o socialismo e a social-democracia (o mesmo que estar entre o vermelho e o encarnado). São cálculos de conveniência eleitoral, sem grande reflexão. Interessa o que ele significa, neste tempo. Em quem não tem estrutura doutrinária ou percurso político, interessa mais a personalidade enquanto líder.
SABER ESCREVER AS SUAS GLÓRIAS
Gouveia e Melo chegou ao topo de um processo de vacinação que tinha tudo para correr bem – já tínhamos a experiência de um muitíssimo eficaz Programa Nacional de Vacinação e sabíamos da pouquíssima resistência popular às vacinas –, depois de uma campanha política contra o coordenador anterior, vinda dos bastonários dos médicos e dos enfermeiros (ambos do PSD), num momento inicial e mais sensível, quando ainda escasseavam vacinas.
Tentando livrar-se do cerco, Costa escolheu o militar que já fazia parte da equipa, que seria solidariamente responsável pelo que tivesse corrido mal. Sentiu, com razão, que um militar sem ambições políticas seria menos interessante como alvo. E assim foi. Apesar do registo de queixas se ter mantido, assim como os procedimentos perante abusos, os casos desapareceram das televisões. Instituiu-se, pouco tempo depois do caso do roubo de armas em Tancos, que os militares cumprem melhor as funções dos civis.
Gouveia e Melo soube transformar uma mera operação logística numa extraordinária campanha de autopromoção, com a multiplicação de entrevistas e aparições mediáticas, talento que lhe veio do tempo em que era relações públicas e porta-voz da Marinha. Não há memória de um cargo como este ter dado tanto protagonismo. O seu competente sucessor foi, pelo contrário, militarmente discreto.
Há comportamentos pouco militares no almirante que ajudam a avaliar a única coisa que, até ver, nos tem para oferecer: o seu tipo de liderança. Sem nada, à partida, contra Gouveia e Melo (apenas uma irritação com a forma como Costa resolvia todas as dificuldades e uma resistência ao fascínio pelas fardas), dois episódios deixaram-me de pé atrás.
O primeiro foi durante a pandemia, quando Gouveia e Melo foi ao Centro de Vacinação de Monte Abraão, onde havia dificuldades. Chamou as televisões para atacar os profissionais que ali estavam, acusando-os de falta de pontualidade e deixando claro que os tinha posto na ordem, usando, sobre eles, termos como “colinho dá a mamã em casa”. Tivesse sido um político a fazer tal coisa e teria sido trucidado por sindicatos, ordens e oposição. Mas foi, para ele, um grande momento mediático, fazendo esquecer filas no resto do País.
O segundo foi já como Chefe do Estado-Maior da Armada, onde chegou pisando algumas cabeças e graças à inútil e desesperada tentativa de Costa e Marcelo impedirem a sua candidatura presidencial. Gouveia e Melo chamou as televisões para, à distância, mas à frente delas, destratar os insurretos militares do navio Mondego. Um caso em que critiquei a indisciplina, mas que, para além de parecer ter sido mal resolvido (Gouveia e Melo perdeu em tribunal, que considerou ilícitas as sanções que impôs), me fez notar o que parece ser um padrão de liderança: o de rebaixar publicamente os seus subalternos. É coisa a que sou bastante sensível. Também o são os militares que conheço.
O APELO DA FARDA SEM POLÍTICA
O problema não é Gouveia e Melo ser independente. Até acho que essa é uma condição para ser eleito, desta vez. O problema é, num momento perigoso para o nosso regime democrático constitucional, elegermos um militar operacional, habituado a mandar, mas sem qualquer experiência institucional civil, para ocupar o mais político dos cargos.
O problema não é Gouveia e Melo ser militar, apesar de essa particularidade ser marcante, numa Europa onde é pouco comum. É ser a farda que, aos olhos dos portugueses, lhe dá autoridade. Diz muito sobre o estado da nossa democracia e do nosso país. E do que muitos eleitores esperam, com ou sem razão, de um Presidente. Expectativas a que o próprio almirante parece querer corresponder, propondo-se objetivos impossíveis com os poderes constitucionais que tem. A não ser, claro, que forme um partido para casar a Presidência com o poder executivo e legislativo.
O problema não é Gouveia e Melo ser radical. Apesar de a estética da apresentação da sua candidatura ter um odor inconfundível do passado, corresponde ao mainstream da nossa política, que não nasceu virgem em 1974, mantendo intacta quase toda a iconografia da perdida grandeza imperial. O almirante será um moderado e, ao contrário de outros, nunca presumi que viesse a ser o candidato da extrema-direita. É do centrão puro, como atesta a forte presença de todos os poderes fácticos nacionais, das sociedades secretas aos empresários de comunicação social, passando pelo assessor de Sócrates, Luís Bernardo. Isso não quer dizer que não seja um autoritário. O centro nacional está pejado desse apelo, de que Cavaco foi exemplo. É mais cultural, numa democracia insegura com uma sociedade civil frágil, do que ideológico. E é pela suspeita que seja autoritário que é popular.
QUEM SERÁ O CONTRA-ALMIRANTE?
Perante tantas incógnitas, seria perigoso deixar o almirante sozinho numa corrida que a imprensa já quer transformar num plebiscito a um quase desconhecido. Porque sem opositores severos não haverá escrutínio. Será eleito às cegas.
Olhando para a galeria de apoiantes, confirma-se a avaliação política que faço de Gouveia e Melo: com algumas excepções quase anónimas, os mais notáveis estão no centro-direita e na direita conservadora, de Isaltino Morais a Ribeiro e Castro, passando por Rui Rio, que aproveita o almirante para uma vingança interna ao PSD, e pelo possível apoio de Ventura, que não se quer medir com um homem com um chamamento irresistível para os eleitores do Chega. E é à direita que o espaço está sobrelotado: com a candidata da IL, Mariana Leitão, que poderá vir a ser uma surpresa, pela frescura contrastante nesta disputa; e com Marques Mendes, que a cada dia perde mais espaço político.
Como se vê por novos programas televisivos, há quem tenha decidido matar a esquerda para cristalizar o último resultado eleitoral. Mas, mesmo assim, e não sendo certo que esse resultado represente uma divisão sociológica estabilizada (basta recordar eleições recentes), a esquerda representa cerca de 35% dos eleitores, o maior bloco político contra Gouveia e Melo.
Sendo certo que a candidatura de António José Seguro está a léguas de fazer o pleno dos socialistas que não votarão no almirante, e que parece ter mais popularidade junto de eleitores que odeiam Costa, a esquerda tem um dilema: só deveria ter um candidato e esse candidato não pode ser Seguro, que deixará boa parte do PS e o resto da esquerda órfã.
Como defendi quando escrevi sobre Elisa Ferreira e Sampaio da Nóvoa, deve ser um candidato abrangente, preferencialmente independente, livre de amarras partidárias, com poucos anticorpos e capaz de contrapor à autoridade militar outro tipo de autoridade cívica e profissional. É no terreno positivo que poderíamos encontrar em Gouveia e Melo que a disputa pode ser feita – autoridade sem autoritarismo, independência com conteúdo. Nunca o regime e os partidos contra a novidade inexperiente, como tenta Marques Mendes. Por mais justa que seja, é perdedora. Desse ponto de vista, António Vitorino seria tão ineficaz como Marques Mendes.
Quanto ao PS, terá de escolher: apoiar Seguro e transformar estas presidenciais num trágico ajuste de contas com o seu passado vitorioso; apoiar outro candidato, atirando Seguro para um espaço sobrelotado; ou ficar neutro, de novo, não arriscando mais uma derrota, mas contando cada vez menos.
Um candidato forte na disputa ao almirante não é apenas relevante para os resultados eleitorais. É, mesmo que a sua vitória seja inevitável, fundamental para impedir uma caminhada triunfal sem escrutínio, especialmente incompreensível num tempo perigoso e com um candidato de quem sabemos tão pouco.
Só a tempestade de uma campanha disputada revelará o líder. Não queremos descobrir, depois de eleito, de que massa é feito um político que antes de o ser eleito já o era. Até porque, como se viu neste ciclo, a Presidência da República pode transformar-se num importante foco de instabilidade.»