22.12.18

Pai Natal? Quem não o entende...


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Coletes Amarelos, ainda



Um dos detido no Marquês é guarda prisional, um dos organizadores do protesto é do PS, isto tudo é muito cansativo e creio que vou ali ao Youtube ouvir o Jingle Bells.
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Saúde: Um veto avant la lettre


«Logo que foi anunciada a aprovação da proposta de Lei de Bases da Saúde pelo Conselho de Ministros, mal colocaram um microfone à frente do Presidente da República foi para avisar os deputados de que vetaria a lei que lhe enviassem se não tivesse obtido o consenso parlamentar. Descodificando, se não fosse aprovada, pelo menos, pelo PS e pelo PSD. As razões não eram se era uma boa lei, servindo os portugueses, respondendo aos desafios colocados pelos novos problemas de saúde, cobrindo as necessidades em saúde, salvaguardando o papel do SNS na protecção da saúde da população. Ao tomar partido por uma das propostas, o Presidente da República não está a fazer um julgamento de valor sobre os dois trabalhos em causa, o da comissão governamental e o da ministra da Saúde, está a criar um facto político: tentar semear a discórdia e procurar estabelecer a divisão dentro do PS, principalmente dentro do seu grupo parlamentar.» 

Cipriano Justo
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Tem 15 anos e calou os grandes



(Legendas em português.)
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O festival de irresponsabilidade



José Pacheco Pereira no Público:

«A manifestação “Vamos parar Portugal” é o primeiro sinal exterior de um populismo larvar que medra pelas redes sociais fora e que era só uma questão de tempo até querer sair delas para a rua. Saiu agora e mostrou a enorme diferença entre os apoios mais ou menos incendiários “dentro” e a escassez de apoios “fora”.

O que se passou com a manifestação dos chamados “coletes amarelos” portugueses é disso um verdadeiro exemplo. Deixemos a parte de leão que têm as malfeitorias dos deputados, dos governantes, dos políticos activos, desde o pequeno truque para ganhar mais uns tostões no fim do mês até à corrupção da pesada. É grave, mas o seu papel não é único, nem tão decisivo como parece.

Há também uma indústria da denúncia da corrupção, verdadeira ou falsa, exagerada quase sempre, que vai desde políticos propriamente ditos que fazem da “luta contra a corrupção” um instrumento de existência e de vantagem eleitoral, muitas vezes com enorme duplicidade entre os “nossos” que são desculpados e os “deles” que são atacados por sistema, até à imprensa e televisão tablóide que é hoje predominante. Os mecanismos de cobertura dos eventos são cada vez menos jornalísticos, “notícias” inverificadas, obsessão pela “culpa”, muitas vezes antes de se saber se ela existe, menosprezo pela descrição dos eventos a favor do comentário conspirativo, tudo isso acentua o discurso populista.

Voltemos ao “Vamos parar Portugal”. Esta manifestação teve excepcionais condições de propaganda para sair de fora do casulo das redes sociais. A ideia de que estas manifestações vivem essencialmente dos apelos nas redes sociais é, para não dizer mais, enganadora. E é claramente um dos mitos actuais, subsidiário do deslumbramento tecnológico, que se repete sem escrutínio desde a “Primavera árabe”, como atestam todos os estudos, mostrando que as redes sociais estão longe de ter o papel que se lhes atribui. Não adianta, é um mito urbano, logo tem pernas para andar.

Esse mito oculta que as manifestações com algum sucesso que nasceram nas redes sociais só ganham dimensão quando passam para as páginas dos jornais e os noticiários da televisão, ou seja, para os media convencionais. Esta é a segunda manifestação em Portugal que tudo deve ao modo como a comunicação social resolveu tratar este tipo de protestos. A primeira foi a manifestação do “Que se lixe a troika”, que beneficiou de uma grande simpatia dos jornalistas (correlativa da antipatia no tratamento das manifestações sindicais), e a segunda foi esta, que suscitou sentimentos contraditórios entre o desejo de que houvesse pancadaria, porque isso dá boa televisão, anima a política e “chateia o Costa”, até à exploração do medo.

Aliás, é interessante ver como foi evoluindo o contínuo media-redes sociais e alguns sectores políticos da direita que não disfarçavam a expectativa da contestação para contrariar a “ditadura” de Costa e da “geringonça”, até à extrema-direita (o PNR teve uma presença importante entre os manifestantes) e a fina alt-right do Observador, que passou do alarmismo para o “fiasco”. Mas faça-se justiça ao Observador, que não esteve sozinho: a cobertura mediática anterior à manifestação foi de muito má qualidade, exagerada, alarmista, desproporcionada e mostrando muito pouco conhecimento sobre o que se passava, sugerindo muitas vezes que da passividade sonâmbula e hipnótica da “geringonça” se iria passar para um país a ferro e fogo.

Esta atitude foi também a do Presidente da República e do Governo, ambos alimentando um alarmismo exagerado, com gestos que seriam completamente contraproducentes, caso existisse mesmo o perigo de as coisas descambarem. O que eles fizeram com passeios “apaziguadores” com camionistas, que pelos vistos não tiveram nenhuma presença destacada no “Vamos parar Portugal”, ou com avisos de que se estava num “alerta vermelho”, foi a melhor propaganda que se poderia fazer para um movimento que nunca deixou de ser débil. O “Vamos parar Portugal” não falhou por falta de propaganda, falhou por falta de pessoas.

O alarmismo irresponsável das autoridades mostra também que não há “inteligência” sobre estes grupos, ou que, se existe, é de muito má qualidade – ou seja, ou não sabiam de nada do que se ia passar, ou então resolveram fazer uma actuação exemplar com antecedência para dissuadir o que se possa vir a passar um dia futuro. Seja como for, é brincar com o fogo.

Eu ouvi um dos “organizadores” dizer que iriam para a rua um milhão de pessoas, o que nos dá a medida da ilusão. Mas seria uma ilusão ainda maior ignorar que há muita gente zangada, há cada vez mais gente que já não pensa em termos democráticos, mas em termos de “nós” (o povo) e “eles” (os políticos) – a essência do populismo, para simplificar – e que o combustível para a zanga e para as ideias que nascem da zanga é cada vez mais abundante. Como é igualmente abundante a completa irresponsabilidade com que se alimenta essa fogueira escondida, como se viu a pretexto destes protestos que nunca pararam Portugal, mas parecem ter parado a cabeça a muita gente.»
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21.12.18

E se hoje é dia de amarelos, venha este




Ainda por cima no dia em que Carlos do Carmo faz 79 anos.
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Cristas não vestiu o coleto, mas teve pena



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Público 2019



No Editorial de hoje, são anunciadas algumas novidades para o ano que em breve começa, entre as quais a seguinte:

«Queremos diversificar a oferta de opinião relevante com novos colunistas. António Barreto, Luis Aguiar-Conraria, Nuno Severiano Teixeira, Paula Teixeira da Cruz e Vasco Pulido Valente passarão a escrever no Público a partir de Janeiro próximo.»

Diversificar? Com estes nomes? Em bom português: é preciso ter lata!
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A derrota dos coletes



Era previsível que uma revolta inorgância de direita, que pedia tudo e mais o céu, neste jardim à beira-mar descansado, não teria grande sucesso. Mas confesso que não esperava tão magérrimo número de participantes. E isso apesar da enorme ajuda dos órgãos de comunicação social, com especial relevo para as TVs (e entre estas para a SIC N) que, sobretudo deste ontem e durante toda a manhã de hoje (e ainda agora, quase às 14h) , não se pouparam a esforços para dar imagem e megafone pelo país fora, a uns tantos gato pingados, que lhes enchessem o tempo de antena e dessem audiências. E não só, e não só...



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A Amazon é o nosso destino



«“Anything. Anywhere. Anytime”: antes era uma prerrogativa de Deus, agora é a divisa da Amazon, segundo o mandamento de Jeff Bezos, criador e mestre de um universo empresarial que conquistou o planeta e já tem um projecto – chamado Blue Origin - de colonização espacial, pensado para o momento em que terá consumado a conquista de cada canto do nosso mundo, quando for preciso ir para além do nosso planeta para não estagnar. A estagnação é o que ele mais odeia. Outra divisa de Bezos, o homem mais rico do mundo, é que “cada dia é o primeiro”, isto é, tudo está sempre no início, a começar, porque se admitisse a lógica da inércia do segundo dia, aí iniciava-se a decadência. Nos últimos tempos, o lado negro da empresa - a condição de escravatura, robotização, precariedade e baixos salários a que submete os seus empregados - tem sido notícia, graças a testemunhos pessoais e reportagens. Ficámos então a saber que cada um dos gestos dos empregados é vigiado e contabilizado, a velocidade com que eles se deslocam nos armazéns é medida. Sobre nós, clientes, a empresa também sabe tudo sobre os nossos usos e gostos. Se comprámos o livro X, então também somos potenciais compradores do livro k, y e z. O algoritmo é o grande feiticeiro do nosso tempo.

Um excelente documentário difundido há pouco mais de uma semana no canal de televisão franco-alemão ARTE, realizado por David Carr-Brown, A Irresistível Ascensão da Amazon, mostra com eloquência e abundância de provas como funciona a Amazon, a sua lógica de crescimento permanente em tal grau que lhe é permitido aspirar a ser a única empresa do planeta. A obesidade e a proliferação cancerosa são a nossa condição histórica, mas neste caso estamos para além dela. Para descrevê-la, é preciso recorrer à linguagem da metafísica, falar no “destino” e na “destinação” da Amazon, mais do que da sua história. E é num sentido quase teológico que podemos ler a palavra “ascensão” que surge no título deste documentário.

Os centros de tratamento das encomendas actualmente existentes têm, no total, uma área superior a 500 vezes o Cental Park. E, cada ano que passa, são construídas novas fortalezas, plataformas de distribuição, que perfazem o tamanho de um Central Park. O seu modelo impôs-se em todo o mundo (todas as cadeias logísticas tentam hoje imitá-lo) e, impondo as suas regras sobre o comércio e o emprego, transforma profundamente a sociedade de maneira incontrolável. Um dos momentos fundamentais do documentário de Carr-Brown é a explicação do modo como a Amazon reinveste os seus lucros no crescimento da empresa: é uma empresa de extracção que aspira o dinheiro para o interior, ciclicamente, de maneira a expandir-se em permanência. Não faz circular o dinheiro para fora do seu círculo. A sua lógica de funcionamento é totalitária. Onde quer que penetra, ela explora os recursos existentes (a totalidade do mercado) e tem como objectivo tornar-se o único fornecedor, assumir o poder do monopólio. E quais são as consequências deste monopólio? No mercado do livro, para evocarmos o exemplo de um sector cheio de subtilezas e fragilidades, uma fatia enormíssima do mercado mundial está sob o seu controlo. O que significa que os próprios editores vão perdendo autonomia. Eles têm que editar para a Amazon distribuir e “satisfazer os desejos dos clientes no mais curto espaço de tempo“, como reza outra divisa da empresa. Colocar-se ao dispor da vontade do cliente é o princípio que serviu para definir a “indústria cultural” e os seus efeitos de homogeneização. Por todo o lado, as livrarias vão fechando e as que restam estão ameaçadas. Ou vão sendo colonizadas pela lógica “amazónica”, que vai retirando autonomia aos leitores e conduzindo-os por caminhos que não são eles a escolher livremente. A pouco e pouco, há espécies bibliográficas que quase nem aparecem à luz do dia ou entram em vias de extinção. Percebemos que a ascensão da Amazon é irresistível quando, sabendo aquilo que ela representa e o destino funesto que ela nos promete, não encontramos meios nem força para prescindir dela. É um monstro que satisfaz os nossos desejos, onde quer que seja, em qualquer lugar. Até que o desejo se extinga e triunfe a “miséria simbólica” que ela cria.»

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20.12.18

Libération


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Dica (839)




«In the 1930s, the plight of migrants and stateless peoples coming from East-Central Europe served as a harbinger of greater atrocities to come. These same dangers haunt European politics today. Although popular sovereignty and the will of the people expressed through democratic elections is important, it is only one side of the democratic coin. The other is the protection of the individual and group rights that give the vote its legitimacy.
Europe has already experienced the dangers of unconstrained democracy once. We must remember those lessons today if we wish to avoid similar outcomes in the future.»
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As «Boas Festas» de Banksy



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Pressas para o Natal, pressas para tudo



«Este ano o Natal começou mais cedo. Mal as praias davam por finda a estação dos banhos (os vigiados, claro está, que os outros dispensam limite no tempo), já surgiam em prateleiras e montras, primeiro a medo e depois com destemor, as primeiras quinquilharias natalícias. E lá vieram as árvores-miniatura, Pais-Natais para todos os gostos, bolas reluzentes e enfeites dourados, azevinho falso e luzes, muitas luzes, em caixinhas a exibir as maravilhas do LED. E também não tardaram os doces. Em Outubro, já espreitavam bolos-rei. E enquanto se iam pendurando pela cidade (e isto foi visível em Lisboa) as iluminações do costume, à espera do dia exacto para accionar as ligações, as lojas misturavam à doçaria habitual os sazonais sonhos, coscorões ou fatias douradas, que, a julgar pelo dia seguinte, tinham já clientela. É talvez fatalidade moderna, esta correria. E nem sequer é de hoje, vem de trás. Nas férias de Verão começa a “despachar-se” o Natal, no Natal já se fala da Páscoa, que num atropelo se sucede ao carnaval e desliza para os Santos Populares, que também se “despacham” a bom ritmo para encher praias e hotéis de gente apressada que anseia pelo Natal – para voltar a completar o infindável circuito das festas movidas a comércio, com reservas cada vez mais antecipadas, talvez na redentora esperança de que, assim sendo, se garanta longevidade. Um bilhete comprado para daqui a um ano dá-nos, ao menos, o conforto de pensar viver até lá; coisa que não preocupa minimamente o vendedor, claro, e daí ter-se generalizado a prática dos seguros para cancelamentos imprevistos: uma viagem, uma doença, coisas piores.

Os espectáculos, em particular os musicais, já vivem num ciclo infindável. Acabado um festival, começa-se logo no dia seguinte a vender bilhetes para o próximo. É só daqui a um ano, mas que importa? Alguns até esgotam com muitos meses de antecedência. Talvez comecem a vendê-los para mais anos, anunciando logo um cabeça-de-cartaz qualquer, ou exibindo apenas a sua própria fama e nome. Por exemplo: o NOS Alive começou a vender bilhetes para o Passeio Marítimo de Algés mal terminou a edição deste ano, agitando o trunfo de “124 actuações em 3 dias esgotados”, o que para início bastava. Agora, já com nomes anunciados (The Cure a abrir e Smashing Pumpkins a fechar), será mais fácil. É só em Julho, mas a julgar pelos anos anteriores, devem vender a bom ritmo.

Não só eles, também os festivais Vodafone Paredes de Coura (Agosto), EDP Vilar de Mouros (Agosto), MEO Sudoeste (Agosto), NOS Primavera Sound (Junho), Bons Sons (Agosto), EDP Cool Jazz Fest (Julho), Monte Verde (Agosto), Laurus Nobilis (Julho) ou Soam as Guitarras (Abril), entre tantos outros que enchem recintos e por aí virão mais uma vez, já abriram a “caça” ao cliente ávido. E há, a par deles, espectáculos avulsos à distância de meses que também já esgotaram, como Michael Bublé, em Setembro, com data extra em Outubro. Daqui não virá mal ao mundo, note-se, mas tal pressa torna-se obsessiva. E o burburinho avoluma-se nesta época, com as empresas a criarem “pacotes de Natal” para o “sapatinho”.

Porém, quando se olha com vagar e lucidamente para a vida, às vezes escrevem-se coisas como esta: “Começo a olhar para as estantes e a notar, com melancolia, as obras que ainda não li e já não vou ter tempo de ler. As ideias que não vou conhecer e outras que não tive tempo de aprofundar. A música que já não vou ouvir e outra que não voltarei a ouvir. Dito assim, parece que tudo isto são apenas palavras. Mas, dentro de mim, tornou-se uma ferida profunda e muito sentida. É a consciência, ao vivo e a quente, de tudo quanto desperdicei.”

É uma pequeníssima passagem do recém-editado Aperto Libro, Páginas de Diário I – 1977-1980 (virão mais!) do escritor e poeta Eugénio Lisboa. Aquelas linhas, escreveu-as ele em Agosto de 1989, quando deparou com a “evidência” de “viver a última etapa” da sua vida. Mas passaram-se quase trinta anos e ele continua activo e lúcido, a escrever e a editar, ainda que certamente sem ler ou ouvir tudo o que queria (como todos nós). Porque a vida, mesmo quando parece longa, é sempre breve para o inatingível horizonte do pleno conhecimento. Talvez por isso devamos deixar, num gesto compensador, as pressas de lado, dando o devido valor a cada momento antes de inevitavelmente (há tempo) passar ao seguinte. Feliz Natal.»

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19.12.18

Natais em exílios e clandestinidades


Nuno Ramos de Almeida resume a sua experiência. Era assim.


«Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher uma pedra.»
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19.12.1924 – Alexandre O'Neill


Alexandre O'Neill faria hoje 94 anos. Bem gostaria de o ouvir sobre os tempos que agora passam, de o ver olhar este país, de perceber se as três sílabas de Portugal ainda são de plástico ou se já foram recicladas. É verdade que ainda «há mar e mar, há ir e voltar» – e ar e ar, com ou sem voar. Em todo o caso, uma coisa é certa: o país continua mais ou menos engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano. 


O País Relativo

País por conhecer, por escrever, por ler...

País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.

País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.

País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.

País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
- Não, não é para mim este país!
Mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?

Entrincheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.

País do cibinho mastigado
devagarinho.

País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.

O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de alegria.

Moroso país da surda cólera,
do repente que se quer feliz.

Já sabemos, país, que és um homenzinho...

País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.

A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.

País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?

País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto de nuvens ideia!

Corre, boleada, pelo azul,
a frota de nuvens pelo país.

País desconfiado a reolhar por cima
dum ombro que, com razão, duvida.

Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania
sem perder tempo nem caligrafia.

Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida!

A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.

País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.

Que Santa Suplicanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!

País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.

Da ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...

Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.

Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!

Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!

Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...

No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.

Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste pra mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!"

Alexandre O'Neill, Feira Cabisbaixa, 1965
 

Programas de Opinião Pública



Só eu é que considero que a maior parte destes programas têm temas completamente disparatados para o fim a que, teoricamente, deviam destinar-se: dar voz sensata à sociedade civil?

Hoje liguei a TV e estavam os meus concidadãos a perorar sobre a polémica da constituição do Conselho Superior do Ministério Público. Que manifestavam perceber do tema? Nada, pouco mais ou menos o que é o meu caso.

Chegada ao carro, apanhei outros em declarações definitivas, sem qualquer «nuance» e com laivos de tecnicidade, sobre culpados e responsáveis pelo acidente do helicóptero do INEM.

Ninguém pára estes dislates, só úteis para atiçar matilhas (o PAN que me desculpe...)?
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Eles andam por aí



«Eles sempre andaram por aí, na verdade, mas as gerações mudam. A extrema-direita tem entre nós uma raiz histórica e uma base social, há alguns anos houve gente suficiente para eleger numa televisão Salazar como a figura portuguesa do século XX. Mas tentativas de fazer renascer uma política fascizante logo após a revolução, nos anos setenta, mesmo quando figuras como Spínola, Champalimaud e tantos outros apareciam a liderar e a financiar os seus grupos armados, tinham sido goradas pela infâmia. Absorvidos pouco depois do 25 de Abril em partidos tradicionais, dadas as circunstâncias do colapso lúgubre do regime ditatorial, essa direita readaptou-se, alguns chegaram a ministros, todos fizeram pela vida. E assim foram passando os anos.

Quatro décadas depois, é uma outra extrema-direita que emerge. Vale a pena discutir essa especificidade, porque esse entendimento é a condição para responder ao risco. O que há de novo é que o espaço político desta nova extrema-direita não é saudade do império, mas a globalização infeliz; não é o desfile das fardas milicianas, mas o esvaziamento democrático; não é o delírio ideológico, mas o efeito profundo da austeridade. Ela vai portanto crescer. E essa novidade faz sistema: repare que nos anos setenta as ditaduras caíam na Europa (Portugal, Espanha, Grécia) enquanto venciam em contra-ciclo na América Latina (Chile, Uruguai, Argentina), ao passo que agora o movimento trumpiano impulsiona mudanças coincidentes em todo o mundo (de Washington a Orban, Le Pen, Salvini, Bolsonaro e o que mais se verá), que tomam ou que condicionam o poder. O seu sucesso pode ser medido, os populistas governam hoje uma parte maior da população mundial do que as democracias tradicionais, ao mesmo tempo que contamina as direitas clássicas, que cedem à tentação da imitação.

Tem sido muito discutida a maravilha tecnológica que abriu as oportunidades da expansão universal ao discurso de ódio, que é essencial para este ascenso da extrema-direita. É facto que as redes sociais constituem uma forma notável para definir uma nova atmosfera em que se respira pavor, ladeando os meios de comunicação social que seriam um ténue filtro do mundo, ao selecionarem as notícias e os comentários com critérios que reclamam uma aura de legitimidade. É também evidente que essa forma de atuação incendiária já era cumprida por alguma imprensa de escândalos (e, há duas gerações, como lembra Karl Kraus, o fascismo e a guerra eram cantados pela imprensa, tempos passados), que naturalmente neste momento se expande no tempo novo do trumpismo. Sem esta tecnologia, a extrema-direita não conseguiria criar o seu universo separado, e precisa dele para se tornar eleitoralmente viável (o risco parece ser uma surpresa para os mais desatentos, quando falei sobre isso há tempos fui atacado em editorial de um jornal respeitável).

Ora, a tecnologia do discurso do ódio é eficaz se tiver quem acredite nele. A questão é que há uma multidão para isso, precisamente as pessoas que sentem o choque entre a promessa deslumbrante de um mundo de néon ou confettis e a realidade do salário baixo, da filha desempregada, da biografia gasta no comboio para os subúrbios, tudo o que a austeridade banalizou e agravou. Se os donos do país se exibem em desfalques, se governantes sorumbáticos explicam que cumprem ordens de uma capital distante, ou se a vida anda para trás, como se diz em bom português, esta tensão torna-se explosiva. Entra então a técnica política, a canalização da frustração com a invisibilidade – Macron chamou-lhes a “gente que não é nada” e Clinton os “deploráveis” - contra algum alvo vulnerável, os migrantes, os mexicanos, os ciganos, os sindicalistas, os homossexuais. Aliás, esse discurso contamina parte da sociedade, durante a campanha brasileira houve esquerdistas lusas capazes de afirmar que o protesto das mulheres contra Bolsonaro o ajudava e que deviam era estar caladas.

O primeiro passo, constituir nutridas listas para a campanha subterrânea por via do WhatsApp, já está avançado. O segundo, por de lado os fascistas folclóricos que andam de saudação romana há anos e anos, também. O terceiro, encontrar o discurso certo para assustar não assustando demasiado, ainda está em ensaios, para já Camilo Lourenço fala com delicadeza de “cheiro a napalm”. O que agora está em causa em Portugal é simplesmente a demonstração de que não haverá recanto do mundo em que este discurso não se instale. Com as sondagens a começarem a descobrir que pode haver uma surpresa no terreno propício das europeias (em que Marinho Pinto teve 7% na última eleição, mesmo que logo depois desbancasse para quase nada), a extrema-direita, que já tentou no passado inúmeros protestos do “milhão” contra “os políticos”, tem pela primeira vez na sua mão a possibilidade de conjugar as espirais de ressentimento nas redes sociais com algum discurso religioso ou apocalíptico que prometa tudo e o seu contrário. Em Espanha, isto só resultou eleitoralmente quando dissidentes do principal partido da direita tomaram conta desse discurso. E, como se vê aqui, o CDS, que esperava que bastasse ficar sentado para captar o descontentamento dentro do PSD, moveu-se logo para imitar envergonhadamente os “coletes amarelos”, pondo Assunção Cristas na estrada a pedir boleia ao descontentamento contra o estado do pavimento e a atacar o “caráter” do primeiro-ministro. Só que, mesmo imitando-o, talvez seja tarde para a velha direita evitar que surja um partido de extrema-direita com expressão eleitoral, o fantasma está mesmo a sair do armário. Eles nunca deixaram de estar aqui e agora vão mostrar-se.

Para o país, o tempo que há é este e a resposta é a mais difícil: a habitação que falta, a punição dos desvarios financeiros, o direito de quem trabalha, o rigor dos representantes e a soberania da nação. Não vale a pena esperar por algum consenso que leve a essa democratização da vida, já se sabe que quem manda se considera ungido de deus, nada se moverá e só ouviremos que o Natal é todos os dias. Resta saber se a esquerda quer ter a ambição de ser tão forte na rua como no voto.»

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18.12.18

Dica (838)



The World Nationalism Made (Liah Greenfeld) 

«China, is different from most other participants in this competition: it belongs to another civilization. Unlike Russia, unlike Arab countries, it has never seen the West as a model. It does not envy the West, and so, ultimately, could never consider itself inferior to it. Its identity is self-sufficient, and its internal dignity does not depend on the respect accorded by the West. For this reason, it can borrow from the West piecemeal, customizing its imports in the process. Neither freedom, nor—more importantly—equality, are of great value in China, where fraternity is possible in their absence, and dignity in its nationalism does not depend on the presumption that “all men are created equal.” The rise of nationalism in China is the central event of our time. With it we truly open a new page in history.»
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La France, c’est la France!




«Com estes números, “a França será o único país” da zona euro que superará os 3%, disse Moscovici, que também observou que a dívida pública é de quase 100% do PIB, fazendo com que as projeções atuais para o próximo ano cresçam. Por isso, insistiu que a partir de 2020 convém reduzir o défice para 3%.»
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Índia 1961 - O primeiro golpe no império



Foi na manhã de 17 de Dezembro de 1961 que tiveram início as operações militares que levaram à ocupação da cidade de Pangim, capital de Goa, na noite do dia seguinte. O «império português» levou então uma grande machadada com a anexação de parte do seu território pela União Indiana. Lembro-me bem da consternação, quase generalizada, que os acontecimentos provocaram no país, mesmo em certos meios da oposição. Houve algum tempo depois uma peregrinação a pé a Fátima (julgo que para que os céus nos devolvessem a «católica» Goa).

Os factos são conhecidos, mas vale a pena recordar o célebre discurso que Salazar fez na Assembleia Nacional, em 3 de Janeiro de 1962 (*). É um longo elogio (de 24 páginas A5) ao «pequeno país» que manteve o seu território «com sacrifícios ingentes», ignorados e combatidos por quase todos e, antes de mais, pela ONU, desde sempre objecto de um ódio muito especial.

Ficam algumas passagens a começar pela primeira frase do texto: «Não costumo escrever para a História e sinto ter de fazê-lo hoje, mas a Nação tem pleno direito de saber como e porque se encontra despojada do estado Português da Índia». Mais: «Não sei se seremos o primeiro país a abandonar as Nações Unidas, mas estaremos certamente entre os primeiros. E entretanto recusar-lhes-emos a colaboração que não seja do nosso interesse directo.» Há que perguntar se vamos no bom caminho «quando se confiam os destinos da comunidade internacional a maiorias que definem a política que os outros têm de pagar e de sofrer».

Amplamente conhecida é a frase que encerra o discurso: «Toda a Nação sente na sua carne e no seu espírito a tragédia que se tem vivido, e vivê-la no seu seio é ainda uma consolação, embora pequena, para quem desejara morrer com ela.»

(*) Estava afónico «com as emoções das últimas semanas» e quem o leu, de facto, foi Mário de Figueiredo.
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Pobres, quase-pobres e marés negras



«Os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e os sininhos de Natal têm chamado a atenção para a situação da pobreza em Portugal. Os pobres e quase-pobres que vivem no nosso país serão um terreno propício às marés negras que vemos algures? É interessante observar como alguns dos que lamentam a pobreza no nosso país nesta altura do ano são os mesmos que repudiam os impostos sobre as grandes fortunas, os altos rendimentos, e as transacções vultuosas, são os mesmos que têm a perspectiva rentista de pôr o dinheiro a salvo e a render seja onde for, são os mesmos que discutem o aumento do salário mínimo, euro a euro, que são “tão bons” que já pagam 630 euros a alguns a quem podiam pagar 580. São os que exigem “menos Estado”. Enfim, são os mesmos que apoiam os filhos para estarem com os sacos à porta dos supermercados, porque isto de dar aos pobres “empresta a Deus” e sempre é melhor ir pagando um seguro para a eternidade para além do seguro de Saúde.

Podia fazer-se um retrato sociológico deste grupo social e da sua representação parlamentar. Ora, a existência de pobreza está na desigualdade social, seja em Portugal, seja em Angola, seja na China. Sem dúvida que o socorro à pobreza vindo das paróquias, das juntas de freguesia, dos bancos alimentares ou do Programa Operacional de Apoio às pessoas mais carenciadas promovido pela Segurança Social têm aliviado a pobreza e têm ajudado à sobrevivência de muitos. Mas como tem dito repetidamente o presidente da Cáritas portuguesa, a solução do problema não está na solidariedade/caridade mas sim na alteração do sistema e na redistribuição de riqueza. Continua a fazer-nos falta a voz do professor Bruto da Costa, que não fez desta mesma posição apenas um sinal emocional de revolta, mas também uma análise científica, como actualmente é feita pelo Observatório das Desigualdades e pelo legado teórico de autores internacionais como o francês Piketty, que acaba de encabeçar uma proposta de combate ao “híper capitalismo”, para protecção dos mais pobres e moderação das grandes fortunas. Nada de revolucionário, mas apenas reformista.

Em relação à solidariedade/caridade, é bom lembrar que quem vai buscar o cabaz ou os sacos, a maior parte das vezes de alimentos não-perecíveis (onde é que está a dieta mediterrânica?), desce abaixo da linha da dignidade que tinha traçado para si próprio, “rebaixa-se”, não tem a segurança alimentar que lhe possa garantir que na próxima semana ou no próximo mês o saco estará lá. E traçada a linha da pobreza, que, embora construída por equações internacionais, tem dados nacionais e é portanto baixa, são muitos os trabalhadores pobres. Consideremos um casal de funcionários hospitalares, como os que eu conheço, actualmente designados como “assistentes operacionais” mas que são invisíveis, como disse um leitor do PÚBLICO, como doente agradecido. Se um casal de invisíveis hospitalares a ganharem 580 euros cada, que é o que eles ganham, tiver o “azar” de ter três filhos, fazem parte dos pobres e de facto não conseguimos imaginar como é que pagam renda ou crédito de casa, água, luz, telefone, deslocações (porque vivem nos subúrbios) e material escolar para os filhos. E se uma enfermeira-chefe, como as que eu conheço, for mãe monoparental de dois filhos menores, esta família também faz parte dos milhões de pobres do país. E de igual modo se pergunta como é possível o dia-a-dia e como responder aos filhos que querem ter o mesmo que as outras crianças que ficam uns degraus acima. Algumas das situações acima descritas resolvem-se com duplos horários, mas sete e sete faz 14 e há três anos oito e oito faziam 16.


17.12.18

Pobre Brasil!




«Damares Alves conta que foi violada a partir dos seis anos, e isso determinou toda a sua vida. Aos dez quis matar-se, subiu a um pé de goiaba para tomar veneno, mas Jesus apareceu e salvou-a de Satanás, relatou ela, entre gritos e lágrimas, às massas que hoje a seguem. Damares prega como quem precisa de ajuda psiquiátrica urgente. Não é uma história rara no Brasil. Só que esta mulher será ministra a partir de 1 de Janeiro.»
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Marcelo até rima com amarelo?



Ontem, sempre que olhei para a TV, vi Marcelo de colete amarelo nos mais variados locais. Coincidências? Quais?
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Nova sondagem da Aximage – Cá para mim, está bem assim



Esquerda 53,3%, Direita 33,4%, PS mais longe da maioria absoluta.


E também gosto deste quadro:

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Da ilusão da segurança



«Estava, como habitualmente, nos trabalhos da sessão plenária de Estrasburgo quando soube, ainda antes de ser notícia, que estava a haver um tiroteio no centro da cidade. É impossível não sofrer quando há tragédias, quando há mortes e ferimentos graves de pessoas que se limitavam a viver a sua vida ou a fazer o seu trabalho. É também evidente que toca ainda mais fundo quando, entre as pessoas atingidas, estão pessoas de quem sabemos os nomes, conhecemos ou nos cruzámos, como o jornalista italiano que estava a fazer a cobertura do mercado de Natal ou o músico polaco que integrava o movimento da música pela paz.

Talvez pelo facto de estar a decorrer o mercado de Natal, que é dos mais visitados do mundo, e na sequência das manifestações dos coletes amarelos, à chegada para a esta sessão plenária esperava-nos um aparato de "segurança" muito superior ao habitual. Os acessos ao Parlamento com mais controlo, a ter de se mostrar identificação não apenas à entrada como antes de entrar no perímetro da instituição, e a verificação das carteiras e das mochilas em cada um dos acessos ao centro da cidade, mas alargando o perímetro do centro em relação ao ano anterior. Ainda assim, o tiroteio aconteceu.

Pensei bastante sobre isto. O tiroteio decorreu na altura do ano em que a cidade está mais vigiada e, teoricamente, mais protegida. Esta coisa de nos armarmo-nos até aos dentes e de com isso se promover uma ideia de suposta segurança não é mais do que isso, armarmo-nos até aos dentes e promover uma ideia de suposta segurança. Como? Com mais militares nas ruas, mais forças policiais, mais seguranças, mais armas. Vê-los cria a ilusão e essa imagem naturaliza-se como sendo "a segurança". Devo confessar que a mim sempre me pareceu um sinal de profunda insegurança e que não percebo a ideia de que mais armas na rua são sinónimo de mais segurança. Pergunte-se aos familiares e aos amigos dos milhares de pessoas que todos os anos perdem a vida nos Estados Unidos ou no Brasil como é que encher as ruas de armas lhes trouxe mais segurança. Pergunte-se aos familiares e amigos das mulheres assassinadas todos os anos em Portugal ou em Espanha se ter armas em casa lhes trouxe mais segurança.

Do mesmo modo, custam-me as leituras simples. Quer saber-se sempre qual a nacionalidade dos criminosos e das vítimas. Quando se confirma, como até hoje, que a nacionalidade de todos os criminosos é europeia, vai-se até à origem. A origem serve para confirmar que têm família não europeia, de preferência do Médio Oriente ou de África. Já quanto às vítimas, ficamo-nos pela referência restrita da nacionalidade, de preferência europeia. E de que serve isto? Serve para alimentar outra ilusão, a de que se acabarmos com as migrações acabamos com a insegurança.

Ambas as teses não são apenas falsas, são perigosas. Não resolvem nenhum dos problemas estruturais que vivemos e agravam-nos. Há algum tempo, eu escrevia que a UE até poderia sobreviver a uma crise social, mas não sobreviveria a uma crise identitária. Eis que estamos perante uma equação que as junta e não se vê solução à vista. As políticas que nos trouxeram aqui são as mesmas que vendem estas ilusões. Demos a volta à equação e comecemos por duas outras premissas: só a paz nos pode salvar da guerra, só a eliminação das desigualdades nos pode salvar da insegurança. Que tal ter antes estes pontos de partida?»

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16.12.18

Natal, versão 2018


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Les gilets jaunes, ainda




A ler: A revolta dos coletes amarelos ou a França de baixo contra as elites.
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Imigrantes que não conhecemos




«Chegam diariamente novos rostos a Beja, gente que veio de outros continentes à procura de melhores condições de vida. São a mão-de-obra que falta no país, mão-de-obra barata, entenda-se.

Quatro, seis ou mais pessoas por quarto, vivem em casas ou em contentores, e estes últimos nem sempre são os piores. A limpeza não abunda, ao contrário das moscas, o fogão tem camadas de sujidade. Quem trabalha espera voltar no dia seguinte; quem fica em casa anseia que lhe digam que vai trabalhar. Mão-de-obra barata e paga à hora mesmo que recebam à semana, à quinzena ou ao mês e, às vezes, com atrasos. Emigraram do Senegal, da Guiné-Conacri, do Paquistão, da Índia, do Nepal, etc., e dizem que, mesmo assim, vale a pena. Portugal acaba por ser dos poucos países europeus onde se podem legalizar. E, em Beja, faltam braços para a agricultura. Todos os dias chegam novos rostos. 28 mil estarão neste momento no distrito, grande parte na apanha da azeitona. Mas cada vez menos é trabalho sazonal.»
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De onde vêm tantas greves?



«Não é nem por acaso nem politicamente irrelevante que a contestação social tenha assumido visibilidade nas últimas semanas. A explicação para este surto grevista encontra-se algures entre as expectativas criadas pelo sucesso na frente orçamental, a ambição de influenciar os programas eleitorais e a recomposição em curso na representação de interesses no mundo do trabalho. É mesmo um daqueles momentos em que os sistemas de incentivos convergem todos.

A explicação mais simples para o aumento de greves está na aproximação das eleições e na libertação dos partidos que formaram a ‘geringonça’. Três anos de acordos orçamentais limitaram a margem de afirmação do PCP, do BE e também do PS. Agora, os três partidos estão livres para acentuar as suas diferenças e aqueles com maior influência no movimento sindical usam-na para amplificar a sua agenda.

Há a este propósito um elemento de novidade significativo: alguma fadiga do protesto depois dos anos da troika (também financeira, com sindicatos exauridos) juntou-se à emergência de novas realidades sindicais, em alguns casos ancoradas à direita. Enquanto os sindicatos tradicionais diminuíam a intensidade do protesto, novos movimentos emergiam com agendas mais reivindicativas, muitas delas objetivamente inaceitáveis por qualquer governo. Neste processo, iniciou-se um crescendo de protesto que está a colocar grupos profissionais num beco sem saída, mas no qual o Executivo também pode sair a perder. Os casos dos enfermeiros, com uma Ordem particularmente ativa, e dos professores, em que os sindicatos tradicionais aparentam, também, ter de cobrir a parada de novos movimentos mais inorgânicos, são, nesta perspetiva, paradigmáticos.

Sobra a encruzilhada política em que o país se encontra. Com o sucesso anunciado da consolidação orçamental, abriu-se espaço para discutir o que fazer além de colocar as contas públicas em ordem e devolver rendimentos. Se foi precisamente em torno da recomposição do Estado social que os partidos à esquerda revelaram menor capacidade de entendimento, é natural que a questão se coloque cada vez mais com o aproximar de um novo ciclo político. Com eleições à vista, os grupos profissionais só podem aumentar o tom das suas reivindicações, para já, tentando influenciar os programas eleitorais que começam a ser desenhados e, mais tarde, procurando ganhos de causa junto do Governo.

O problema é mesmo esse. Sem algum tipo de capacidade de construir uma plataforma comum sobre como reformar serviços públicos — da saúde à educação, passando pelos transportes —, os governos estão sempre condenados a lidar com reivindicações atomizadas e a negociar apenas carreiras e salários. Este, o anterior e o próximo.»

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