«Serão os mesmos que pediram “responsabilidade” a Pedro Nuno Santos a falar dos seus ziguezagues e falta de clareza. Acham que, em negociações, não se avança e recua. E que se pode ser claro quando se gere uma derrota anunciada. Esta nunca poderia ser uma verdadeira negociação, porque duas forças só negoceiam quando as duas têm alguma coisa a perder. E, a Montenegro, tanto dava ter um OE com cedências mínimas como ir a eleições. Só precisava de gerir a responsabilização do PS, no que, ainda por cima, sabia contar com a ajuda de boa parte do aparelho mediático e dos derrotados internos do partido.
O que o PS fez na semana passada é o que devia ter feito desde o início, sem dar pasto a uma novela que apenas o desgastou: esperar pela apresentação do Orçamento de Estado, deixar que o governo decidisse, pelo conteúdo, que parceiro privilegiava, e tomar uma decisão. Como sempre aconteceu com governos minoritários sem acordos parlamentares. Por isso só tivemos negociações prévias, formais e públicas com a “gerningonça”.
Ao governo tudo isto interessava. Não só foi poupado à oposição durante meses, com a comunicação social concentrada no drama orçamental, como teve tempo para construir uma narrativa sobre a “inflexibilidade” do PS, primeiro, e a sua enorme cedência à esquerda, depois. Pedro Nuno Santos tinha o dever de saber que quem controla a narrativa, nestes processos, é quem está no governo. Estava no executivo quando BE e PCP foram fritos numa novela semelhante a esta, porque António Costa achava que estava chegado o momento de se ver livre deles e tentar a maioria absoluta.
Chegados aqui, o PS até poderia esperar pelo voto do Chega, mas isso seria, como se vê desde este fim de semana (fica para outro texto), demasiado arriscado. Luís Montenegro conseguiu o feito de ter Chega e PS no bolso, neutralizados, um a espernear e outro a ganhar tempo. Não porque seja um génio tático, mas porque lhe foram oferecidos meses de controlo da narrativa, com o PS a ter de reagir a quem governa e não o oposto.
Se voltarmos ao início disto tudo, temos de recordar que o Partido Socialista apresentou duas linhas vermelhas. No meu tempo, linhas vermelhas eram as coisas que nem se negociavam. E, essa é a ironia de tudo isto, foi mesmo a única coisa que se negociou. Os equívocos começaram logo no início da negociação, portanto.
O resultado final foi celebrado como ganhos de causa para o PS. Mas o que os socialistas conseguem é que o IRC desça cegamente um ponto percentual, em vez de dois. Nada mais para além disso.
No IRS Jovem, limitaram-se a salvar o governo de um chumbo no Tribunal Constitucional. Para Montenegro, é preferível ceder ao PS a ser desautorizado pelo TC. E, com as posições do FMI e do Conselho de Finanças Públicas, a proposta já estava politicamente morta. A coisa é tão óbvia que até Luís Montenegro reconheceu que a versão final não foi, na realidade, uma cedência do governo, apenas ficou equilibrada do ponto de vista de quem supostamente cedeu. Esta era a TSU deste governo, nascida para ser negociada. E, apesar de ser uma linha vermelha para o PS, não caiu. A versão final do IRS Jovem, que custa quase tanto como todo o excedente orçamental previsto, é a desejada por Montenegro, agravando uma injustiça geracional que será compensada com a redução do ordenado bruto de entrada.
O PS tem, de facto, um problema com isto: quem abriu este processo, cedendo ao populismo fiscal que não reteve um único jovem em Portugal, foi António Costa.
As duas grandes vitórias do PS neste OE são a tal descida de um ponto percentual no IRC, tão curta que todos reconhecem que, para um lado ou para outro, não chega para criar uma crise política; e o fim das portagens nas SCUT (autêntico imposto à interioridade e violação da palavra do Estado), conseguida de forma mais rápida e limpa, sem negociação. O governo bem pode meter a descida de IRS no deve e haver, que está a enganar as pessoas. Essa perda fiscal foi proposta pelo governo, o PS limitou-se a garantir (como no IRS Jovem) que não beneficiava apenas quem ganha mais.
Neste Orçamento, tem-se sublinhado a cedência à pressão dos professores, polícias e militares (pessoal de saúde nem por isso, que os privados precisam deles) para falar de um OE de esquerda. Mas ignora-se a utilização de recursos públicos para apoiar os seguros de saúde, a privatização USF e a preparação da privatização do pouco que resta de setor empresarial público – já para não falar da política fiscal, que esteve no centro do debate. Na realidade, temos um OE totalmente alinhado com o pensamento político da AD, juntando-lhe a distribuição preventiva de dinheiro, perante a incerteza do desfecho da votação, preparando as eleições. Por isso temos um enorme aumento da despesa e uma grande descida da receita.
Tudo o que PS tinha de propositivo, que estava fora das linhas vermelhas e que é ignorando para vender a teoria do “meio caminho”, desapareceu. Se ainda se recordam, o dinheiro recuperado do IRS Jovem e do IRC deveria ser destinado à habitação, actualização das pensões e negociação do regime de exclusividade no SNS e da redução da contratação de médicos em regime de prestação de serviços. Propostas apresentadas com grande grau de pormenor, aliás. Nada disso sobreviveu ou foi sequer negociado.
Era inevitável que esta negociação corresse assim. Porque isto foi uma falsa negociação. Compreensivelmente, o PS não quis que ela fosse como costuma ser, discreta e com recato. Porque sabia que o governo não se importava ir a eleições, responsabilizando o PS. E precisava, por isso, que as suas cedências e boa-vontade fossem visíveis. O PS queria partilhar o controlo da narrativa, para se livrar dessa responsabilização. Só que este jogo estava perdido à partida porque tinha menos trunfos: ao contrário da AD, não queria ir a votos. Não porque o governo esteja a governar bem, mas porque esteve seis meses a preparar o bolso dos eleitores. E porque as crises, nesta fase, tendem a beneficiar quem governa. Ora, quando se negoceia com quem nada tem a perder as coisas dificilmente podem correr bem.»