19.10.24

Mais um

 


«Vaso Eucalipto», de vidro opalescente, com decoração de folhas moldadas e cachos de frutas vermelhas nos pés, 1925.
R. Lallique France (gravado na base).

Daqui.

Vivalma?

 

Carlos Botelho

«Portugal é um país pequeno. Os transportes melhoraram muito. A Internet mudou tudo. E é cada vez mais fácil fazer encomendas que vêm trazer a casa. Para além disso, as grandes cidades estão cada vez mais apinhadas e caras, sujas e poluídas, descaracterizadas e impessoais, destituídas de encanto e de mistério.

Cidades como Lisboa estão já a ser abandonadas pelos habitantes.

A princípio, parecem ser só os bairros tomados de assalto pelos turistas – mas qualquer coisa morre para sempre, quando os lisboetas começam a fugir dos sítios mais bonitos da cidade.»


Doze anos sem ele

 


Leite da humana ternura

 


«The milk of human kindness é uma citação de Shakespeare, que aparece no Macbeth, no mesmo exacto sentido com que a uso para título. Ou seja, Lady Macbeth queixa-se que o seu marido é demasiado mole para fazer o que ela quer, por excesso de bondade ou ternura. Do que ela precisava era de um homem cruel, que não hesitasse em praticar a mais extrema violência para conseguir os seus objectivos, era sangue que queria e não leite.

É esta frase que de que me lembro sempre ao ver o espectáculo cruel de exibir um homem destruído por dentro, para obter determinados objectivos e com indiferença pela mais frágil humanidade, com que essa exibição é usada para obter imagens fortes e audiências. Ninguém teve a humanidade de respeitar o destroço humano de Ricardo Salgado, nem o mostrando aos jornalistas nem exibindo-o nos noticiários e em fotografias.

Todos os dias esse desrespeito pela humanidade mínima está cada vez mais presente, fruto de uma forma de radicalização que usa tudo o que pode. Como aconteceu com a violência do Chega com a mãe das gémeas, ou com a quotidiana exploração da dor nos noticiários televisivos que cada vez mais toma conta das audiências, tornou-se normal fazer aquilo que representa um retrocesso civilizacional, por vontade de ganhar, ganhar uns pontinhos na política e prevalecer na ganância de vender mais televisão para publicidade. A atitude correcta seria dizer "não mostramos imagens do fantasma de Ricardo Salgado, porque isso contraria um princípio básico da nossa deontologia", que aliás vem escrito em todos os livros de estilo, mas ninguém cumpre na competição dos nossos dias.

É informação mostrar Ricardo Salgado assim? Não, não é. É uma mistura de exibicionismo e de vingança, não há um único sentimento bom, humano, nestas imagens. É maldade pelo dinheiro, pela humilhação, porque estamos no reino de Lady Macbeth. Os advogados ficaram contentes, os jornalistas salivaram e os lesados acham que se vingam assim do homem que os roubou.

Comecemos pelos advogados que usaram o homem transformado em coisa para obter resultados no processo. Percebe-se muito bem o que eles querem e, na verdade, são os primeiros culpados. A família foi cúmplice porque podia ter negado o espectáculo. Os juízes também colaboraram numa exibição para evitar “alarme social”, rigorosamente uma treta. Se para ter a certeza que o homem estava doente era preciso mostra-lo, que valor têm os médicos?

Mas isso não isenta os outros, que lhes fazem o serviço de os ajudar a obter o que pretendem do tribunal, com total indiferença. Os advogados manipulam o fantasma, os jornalistas sabem que é isso mesmo que eles querem, e fazem-lhes o frete porque as imagens do destroço dão audiências. É uma vergonha, mas já ninguém tem vergonha.

É Ricardo Salgado um criminoso que deu cabo da vida de muita gente? Muito provavelmente é, mas quem anda ali não é o criminoso que eles passeiam diante das câmaras, é a sombra de uma coisa, de um homem que já não existe e que se chamava Ricardo Salgado. Não quero saber das minudências jurídicas e respeito aqueles a quem ele prejudicou e que devem ser ressarcidos, mas não é possível fazer isso indo-lhe aos bens e aos dos cúmplices que ele teve? Certamente que sim, não era preciso este espectáculo cruel.

Voltemos ao reino de Lady Macbeth. Cada vez mais a radicalização da política, o aumento de agressividade na sociedade, o papel das redes sociais e a transformação de tudo em espectáculo vão no mesmo sentido: os sentimentos de respeito pela humanidade dos outros estão de tal maneira em baixo que é possível ver crescer a indiferença, pela vida humana, pela infelicidade, pela violência sobre os indefesos, sem isso gerar nenhuma reacção significativa. Mostrar crianças mortas em Gaza, ou a berrar de dor nos hospitais, é precedido com a hipócrita prevenção de que as imagens seguintes são chocantes. Pode-se argumentar que a sua passagem se destina a gerar indignação com o que se passa. Talvez, mas duvido que seja esse o verdadeiro motivo. Do mesmo modo o “estilo Trump”, violento, insultuoso, sem peias, do homem que vê um seu apoiante desmaiar e responde-lhe fazendo de conta que dança, parece não incomodar milhões de americanos.»


18.10.24

E é azul…

 


Jarra de vidro boémio decorado com borboletas, com cores que vão desde o azul claro até o azul escuro, suave verde-amarelo e violeta. Klostermühle, Chéquia, cerca de 1920.
Johann Lötz Witwe.

Daqui.

18.10.1936 - A viagem dos primeiros presos para o Tarrafal

 


Foi há 86 anos que os primeiros presos saíram de Lisboa, no paquete Luanda, com destino ao que viria a ser o «Campo da Morte Lenta», na ilha de Santiago, em Cabo Verde. O Luanda era normalmente usado para transporte de gado proveniente das colónias e os porões habitualmente utilizados para esse efeito foram transformados em camaratas.

Depois de uma escala no Funchal e de uma outra em Angra do Heroísmo, para recolher mais alguns detidos e / ou largar os menos perigosos, e no fim de uma viagem em condições degradantes, foram 152 os que desembarcaram, no dia 29, em fila indiana, antes de percorrerem os 2,5 quilómetros que os separavam do destino final.

No primeiro volume das suas Memórias, Edmundo Pedro dedica longas páginas à descrição do que foi essa terrível viagem que durou onze dias. (*) O início e o fim:
«E na noite de 18 de Outubro, de madrugada, reuniram-nos em camionetes da GNR. Estas dirigiram-se para o cais de embarque, em Alcântara... No caminho, apesar das ameaças dos soldados, demos largas ao nosso protesto. O nosso vibrante grito de revolta ecoou, ao longo de todo o percurso, nas ruas, desertas, daquela madrugada lisboeta. Cantámos, a plenos pulmões, todas as canções do nosso vasto cancioneiro revolucionário... (...)
A 29 de Outubro de 1936, onze dias depois de termos partido de Lisboa, o velho Luanda fundeou, ao princípio da tarde, na pequena e aprazível baía do Tarrafal. Pouco depois, começou a descarregar a "mercadoria" que transportava nos seus porões... Alguns prisioneiros tinham chegado a um tal estado de fraqueza que só puderam abandonar o barco apoiados nos seus camaradas...»
Depois, foi o que se sabe: histórias de terror, 32 pessoas por lá morreram e o Campo durou até 1954. Foi reactivado em 1961, como «Campo de Trabalho do Chão Bom», para receber prisioneiros oriundos das colónias portuguesas (o ministro do Ultramar era então Adriano Moreira e foi ele que assinou a respectiva portaria) e durou até 1974.

(*) Edmundo Pedro, Memórias, Um Combate pela Liberdade, Âncora Editora, 2007, pp. 350-359.
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PSD: nem tudo é vitória para além de um mau OE2025

 


Ler notícia detalhada AQUI.

É difícil descobrir quem é o mentiroso mas é fácil saber quem é o parvo

 «Cretenses são sempre mentirosos”, escreve São Paulo na carta a Tito, citando Epiménides. E a seguir acrescenta, concordando: “Este testemunho é verdadeiro.” O problema é que Epiménides também era da ilha de Creta. Ora, quando um cretense diz que os cretenses são sempre mentirosos, há duas hipóteses: ou está a mentir, e por isso está a dizer a verdade; ou está a dizer a verdade, e por isso está a mentir. A declaração é falsa se for verdadeira e é verdadeira se for falsa. Portanto, quando São Paulo conclui que o testemunho é verdadeiro, é difícil saber o que é que está a deduzir.


Precisávamos da ajuda de São Paulo esta semana. Montenegro diz que Ventura é mentiroso, mas Ventura alega que o mentiroso é Montenegro. Se estiverem ambos a dizer a verdade, estão ambos a mentir; se estiverem ambos a mentir, estão ambos a dizer a verdade. Se é verdade que são ambos mentirosos, então não são mentirosos, porque estão a dizer a verdade; se é mentira que os dois são mentirosos, nesse caso são mentirosos, porque estão a mentir. E agora? Depois de pensar algum tempo sobre o assunto, consegui chegar a uma única conclusão definitiva, que é a seguinte: já me dói a cabeça.

Creio que é impossível saber quem está a mentir. Podemos fazer suposições, mas sem provas não conseguimos ter a certeza. Recorrendo a um método antigo, talvez os jornalistas pudessem fechar Ventura e Montenegro numa sala com um coxo, e depois verificar quem se deixava apanhar primeiro. Mas não tenho a certeza de que o projecto seja exequível. Há quem esteja inclinado para concluir que é Ventura quem mente, uma vez que ele está sempre a mentir. Também não sei se é um bom argumento. Ser apanhado várias vezes a dizer uma coisa e o seu contrário é, neste caso, uma vantagem para Ventura. Se eu disser que amanhã vai estar um lindo dia de sol, e depois afirmar que amanhã vai chover, é provável que eu esteja tanto a mentir como a dizer a verdade. Do mesmo modo, Ventura pode, de vez em quando, acertar na verdade, nem que seja sem querer.

No entanto, não sendo possível dizer quem é, entre Ventura e Montenegro, o mentiroso, julgo que é possível determinar, com um grau de certeza bastante elevado, qual deles é o parvo. Montenegro afirma que Ventura é mentiroso, e rejeita negociar com ele, mas Ventura, apesar de acusar Montenegro de ser um aldrabão, continua a deixar em aberto a hipótese de chegar a um acordo com ele. Como é que se chama a alguém que mantém o desejo ingénuo de negociar entendimentos com uma pessoa que considera completamente indigna de confiança? Parece-me que sabemos todos a resposta.»


17.10.24

Líbano: milhares de crianças em risco

 



Nem sabe se sonha ou se recorda

 


Um migrante não é um criminoso

 


«Fugir da violência ou da guerra, da pobreza ou da fome não é um crime. Rumar a um país diferente daquele em que se nasceu à procura de trabalho, cuidados de saúde, proteção social, uma vida digna, para si próprio ou para os seus, não é um crime. Um migrante resgatado no mar ou que dá à costa agarrado a um colete salva-vidas não pode ser castigado. Um migrante que chega à nossa porta sem pedir licença não é um criminoso. E, no entanto, está em marcha, na União Europeia, a criminalização da imigração irregular. Pressionados pela obsessão e pelas mentiras dos populistas, assustados com crescimento eleitoral da extrema-direita, políticos à Esquerda e à Direita vão cedendo nos valores humanistas e demolindo o pilar da democracia: os direitos, liberdades e garantias que deveriam ser de todos, incluindo dos que chegam violentados ou esfomeados.

O mais recente exemplo dessa marcha impiedosa rumo à “fortaleza Europa”, que divide os seres humanos entre nós e os outros, entre cidadãos e criaturas sem direitos, é o centro de detenção que a Itália construiu na Albânia. Gente desvalida, resgatada do mar, é agora recambiada para o outro lado do Adriático. Para fora da União Europeia, esse chão pelos vistos sagrado, que não pode ser conspurcado por gente de outras etnias, religiões ou cor de pele. Não cometeram nenhum crime, mas são tratados como criminosos e privados da liberdade. Seria sempre intolerável, mas até em termos financeiros é desastroso: transportar os primeiros 16 migrantes para aquela espécie de campo de concentração custou 18 mil euros por cabeça. Acresce o custo com a manutenção: 800 milhões de euros em cinco anos. Entusiasmada, a presidente da Comissão Europeia diz que é um esquema a avaliar. É de “soluções inovadoras” como estas que, segundo Ursula von der Leyen, a Europa precisa. Os direitos humanos não são para aqui chamados.

Não quer isto dizer que não é preciso enfrentar o problema. A Europa não pode acolher todos os deserdados deste mundo. Mas deportar pessoas para um país qualquer e enfiá-las numa prisão, sem sequer perguntar quais são os seus motivos, não é a melhor solução. É apenas uma indignidade.»


Urgente!

 


16.10.24

Agora botões

 


Botões, Arte Nova, final do século XIX/início do século XX.

Daqui.

16.10.1968 - Jogos Olímpicos do México

 




António Costa galardoado com Prémio da Paz da UNESCO Félix Houphouët-Boigny

 


Daqui.

16.10.1982 – 42 anos sem Adriano

 


Adriano Correia de Oliveira tinha apenas 40 anos quando morreu. Estudante de Direito em Coimbra, aderiu ao PCP na década de 60, foi activista na crise académica de 1962 e participou num elevado número de actividades culturais, sobretudo naquela cidade universitária.

«Trova do vento que passa», com poema de Manuel Alegre, viria a tornar-se uma espécie de hino da resistência dos estudantes à ditadura. 





Muitos outros temas se juntaram, de um dos nossos mais célebres cantores de intervenção, antes e depois do 25 de Abril.






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Com Salgado ausente, não há justiça, só humilhação

 


«Durante anos escrevi sobre Ricardo Salgado. Muitas vezes. Sobre a omnipresença e a omnipotência de uma família que, por acaso, até se chamava Espírito Santo. Lembro-me dos silêncios, das entrevistas simpáticas a mais um oráculo milionário da Nação, da bonomia com que o jornalismo, sobretudo o económico, o tratava. Como os partidos do centrão recebiam os seus apoios e lhe retribuíam.

Se Ricardo Salgado era Dono Disto Tudo, era dono de muitos dos que agora lhe têm nojo. Sabiam o que a casa gastava. Por isso, não consigo deixar de sorrir com o choque perante um banqueiro que foi apanhado com as calças na mão, só tendo acabado na desgraça porque o esquema montado pelo novo capitalismo financeiro ruiu. Não foi a distração das entidades reguladoras que levou ao colapso global. Foi a sua cumplicidade, dos bancos centrais às agências de notação. Ainda hoje, causa maior preocupação um governador vindo da política do que da banca. Porque essa cumplicidade é assumida e aceite.

Pedro Coelho, na reportagem “Assalto ao Castelo”, explica porque estava o BES em roda livre. Como o Banco Portugal fechou os olhos e os ouvidos a todos os avisos, porque entre cavalheiros do mesmo ofício não há desconfianças. Apesar disso, não foi há muito tempo que Carlos Costa lançou um livro biográfico feito por Luís Rosa ao lado de parte da nata da política nacional, só porque era uma boa arma de arremesso na espuma dos dias.

Nesta década, ninguém pediu explicações a Cavaco Silva, um Presidente da República que se atravessou pela credibilidade do BES quando tudo já era evidente. Nem a Maria Luís Albuquerque, a ministra responsável pela ruinosa resolução do banco, que até foi premiada com um lugar em Bruxelas. Não faltam muitos culpados políticos que foram sendo poupados. Mas, caídos Sócrates e Salgado, não há razão para mais baixas.

Normalmente, diria que este é o tempo da justiça. Mas isso quer dizer que a justiça tem um tempo. Um julgamento que começa uma década depois das investigações serem públicas dificilmente pode estar no seu tempo. De tal forma que o principal protagonista perdeu a capacidade de se defender dos crimes que terá cometido. Agora, far-se-á história, não justiça.

Infelizmente, por razões familiares, tenho tido contacto recorrente e doloroso com o Alzheimer. Ele não atinge só boas pessoas e eu não perco o mínimo de empatia por desprezar o que Salgado foi (já não é, porque essa pessoa já não existe). Não o fiz sozinho, mas estive pouco acompanhado nas críticas enquanto este homem mandava neste país. Agora não consigo. Nunca gostei de bater em quem já está no chão. Muito menos quando já nem pode defender-se. Deixo isso para os que tinham fascínio pelo seu poder, que beijavam as alcatifas que ele pisava, e depois viram a luz e comprazem-se com a humilhação pública de quem já nem sequer está ali.

A humilhação a que Ricardo Salgado foi exposto ontem é o oposto de qualquer ideia de justiça. Todo o julgamento, aliás. Se Salgado não tem capacidade para se defender, se lhe é impossível ter consciência de si próprio, como pode ser julgado? Sabia o que fazia quando o fez, não sabe o que fez agora. Por isso, a sua defesa, condição para haver julgamento, é uma impossibilidade.

A pena a que seja sujeito servirá para quê? Para a sua ressocialização? Não servirá as vítimas, que poderão, como bem explicou Magalhães e Silva na SIC Notícias, ser ressarcidas em processo cível, não devendo depender do processo criminal.

Ricardo Salgado não está a ser julgado porque, para o ser, teria de ter consciência do julgamento e dos seus crimes. Ricardo Salgado está, pela natureza da sua demência avançada e sem que isso resulte de escolha sua, ausente. Sem ele, sobra o espetáculo indigno de uma justiça de um país civilizado.»


15.10.24

Vasos azuis não escapam

 


Emile Gallé, Vaso Ancolies, Vidro soprado à mão, gravado com ácido, marchetaria e inclusão de folhas. 1897-1900.
Émile Gallé.

Daqui.

O BES, dez anos depois

 



E como já se fala de presidenciais

 


Vejo isto e rio, rio, rio… Para não chorar agora, claro. 

Casas vazias

 


«A crise na habitação está à vista de todos. Portugal está imerso numa nova bolha imobiliária que pesa sobre a economia e está a empobrecer largas camadas da população. Há já algum tempo que nos encontramos numa emergência habitacional que afeta principalmente os rendimentos mais baixos e as gerações mais jovens, mas também os rendimentos médios. Ao contrário da crise de 2008, que afetou principalmente os bancos, a atual é mais corrosiva socialmente, porque os preços não param de subir e, numa situação destas, é mais difícil definir políticas que combatam o mercado.

Após o rebentamento da bolha imobiliária de há mais de 15 anos, a construção em Portugal caiu a pique, precisamente quando a população está a crescer devido à chegada de imigrantes.

Segundo Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, é preciso construir 45 mil casas por ano, mais 13 mil do que as construídas em 2023, para responder às graves carências habitacionais do país. Ainda para mais, o défice de casas coincidiu com uma nova situação na economia global em que o setor imobiliário se tornou um refúgio para os investidores face à incerteza ou à baixa rentabilidade de outros ativos financeiros. São os estrangeiros e os mais ricos que fazem com que os preços subam diariamente. Com um retorno do investimento em habitação de 9,7%, não é de estranhar que Portugal se tenha tornado um dos países que mais investidores atraem. Mas não é só um problema do nosso país. Em toda a OCDE, a compra de habitação como investimento cresce mais do que a aquisição de uma habitação primária. No fundo, a habitação é cada vez mais um bem financeiro, o que colide frontalmente com o seu estatuto de necessidade básica. E é isso que é preciso mudar, muito antes de qualquer política de habitação de qualquer Governo. Por muito que se construam casas de renda acessível. Fosse o mercado financeiro mais apetecível e logo deixariam de existir investidores que compram em planta para terem os apartamentos vazios.»


14.10.24

Hotéis e estrelas

 


AD, PS e Chega

 

«Quanto às negociações Governo-Chega: independentemente da quantidade de mentiras que André Ventura possa ter dito nas entrevistas que deu esta semana, é óbvio que o Governo negociou com o Chega, mesmo que não tenha prometido nenhum lugar no Governo.

As duas reuniões do Governo com o Chega em São Bento estão confirmadas. Hugo Soares, o líder parlamentar do PSD, deu várias entrevistas onde afirmou que evidentemente o PS era “o parceiro preferencial”, mas a negociação era com “todos, todos, todos”. (…)

Nunca o “não é não” expresso por Montenegro excluiu a negociação do Orçamento do Estado entre Governo e Chega. O primeiro-ministro só diz agora o contrário porque lhe dá jeito encostar o PS à parede.»


14.10.1964 – Há 60 anos, Nobel da Paz para Luther King

 




Excertos do discurso:

«Aceito o Prémio Nobel da Paz num momento em que 22 milhões de negros nos Estados Unidos estão envolvidos numa batalha criativa para encerrar a longa noite da injustiça racial. Aceito este prémio em nome de um movimento de direitos civis que está avançando com determinação e um majestoso desprezo pelos riscos e perigos de estabelecer um reino de liberdade e um sistema de justiça. Estou ciente de que uma pobreza debilitante e asfixiante aflige o meu povo e o acorrenta ao degrau mais baixo da escala económica. Portanto, devo perguntar porque é que este prémio está a ser concedido a um movimento que é comprometido com uma luta incessante; a um movimento que não conquistou a própria paz e fraternidade que é a essência do Prémio Nobel. Depois de pensar a esse respeito, concluí que este prémio que recebo em nome desse movimento é um reconhecimento profundo de que a não-violência é a resposta à questão moral e política crucial de nosso tempo: a necessidade do homem superar a opressão e a violência sem recorrer à violência e à opressão (...).

Ainda creio que superaremos tudo isso. Essa fé dá-nos a coragem de enfrentar as incertezas do futuro. Dá forças aos nossos pés cansados enquanto continuamos a nossa marcha rumo à cidade da liberdade. Quando os nossos dias se tornarem lúgubres e cobertos por nuvens e as nossas noites se tornarem mais escuras que mil meias-noites, saberemos que estamos vivendo no tumulto criativo de uma civilização genuína que luta para nascer.»

OE: quando Pedro Nuno Santos se atirou para uma armadilha

 


«Serão os mesmos que pediram “responsabilidade” a Pedro Nuno Santos a falar dos seus ziguezagues e falta de clareza. Acham que, em negociações, não se avança e recua. E que se pode ser claro quando se gere uma derrota anunciada. Esta nunca poderia ser uma verdadeira negociação, porque duas forças só negoceiam quando as duas têm alguma coisa a perder. E, a Montenegro, tanto dava ter um OE com cedências mínimas como ir a eleições. Só precisava de gerir a responsabilização do PS, no que, ainda por cima, sabia contar com a ajuda de boa parte do aparelho mediático e dos derrotados internos do partido.

O que o PS fez na semana passada é o que devia ter feito desde o início, sem dar pasto a uma novela que apenas o desgastou: esperar pela apresentação do Orçamento de Estado, deixar que o governo decidisse, pelo conteúdo, que parceiro privilegiava, e tomar uma decisão. Como sempre aconteceu com governos minoritários sem acordos parlamentares. Por isso só tivemos negociações prévias, formais e públicas com a “gerningonça”.

Ao governo tudo isto interessava. Não só foi poupado à oposição durante meses, com a comunicação social concentrada no drama orçamental, como teve tempo para construir uma narrativa sobre a “inflexibilidade” do PS, primeiro, e a sua enorme cedência à esquerda, depois. Pedro Nuno Santos tinha o dever de saber que quem controla a narrativa, nestes processos, é quem está no governo. Estava no executivo quando BE e PCP foram fritos numa novela semelhante a esta, porque António Costa achava que estava chegado o momento de se ver livre deles e tentar a maioria absoluta.

Chegados aqui, o PS até poderia esperar pelo voto do Chega, mas isso seria, como se vê desde este fim de semana (fica para outro texto), demasiado arriscado. Luís Montenegro conseguiu o feito de ter Chega e PS no bolso, neutralizados, um a espernear e outro a ganhar tempo. Não porque seja um génio tático, mas porque lhe foram oferecidos meses de controlo da narrativa, com o PS a ter de reagir a quem governa e não o oposto.

Se voltarmos ao início disto tudo, temos de recordar que o Partido Socialista apresentou duas linhas vermelhas. No meu tempo, linhas vermelhas eram as coisas que nem se negociavam. E, essa é a ironia de tudo isto, foi mesmo a única coisa que se negociou. Os equívocos começaram logo no início da negociação, portanto.

O resultado final foi celebrado como ganhos de causa para o PS. Mas o que os socialistas conseguem é que o IRC desça cegamente um ponto percentual, em vez de dois. Nada mais para além disso.

No IRS Jovem, limitaram-se a salvar o governo de um chumbo no Tribunal Constitucional. Para Montenegro, é preferível ceder ao PS a ser desautorizado pelo TC. E, com as posições do FMI e do Conselho de Finanças Públicas, a proposta já estava politicamente morta. A coisa é tão óbvia que até Luís Montenegro reconheceu que a versão final não foi, na realidade, uma cedência do governo, apenas ficou equilibrada do ponto de vista de quem supostamente cedeu. Esta era a TSU deste governo, nascida para ser negociada. E, apesar de ser uma linha vermelha para o PS, não caiu. A versão final do IRS Jovem, que custa quase tanto como todo o excedente orçamental previsto, é a desejada por Montenegro, agravando uma injustiça geracional que será compensada com a redução do ordenado bruto de entrada.

O PS tem, de facto, um problema com isto: quem abriu este processo, cedendo ao populismo fiscal que não reteve um único jovem em Portugal, foi António Costa.

As duas grandes vitórias do PS neste OE são a tal descida de um ponto percentual no IRC, tão curta que todos reconhecem que, para um lado ou para outro, não chega para criar uma crise política; e o fim das portagens nas SCUT (autêntico imposto à interioridade e violação da palavra do Estado), conseguida de forma mais rápida e limpa, sem negociação. O governo bem pode meter a descida de IRS no deve e haver, que está a enganar as pessoas. Essa perda fiscal foi proposta pelo governo, o PS limitou-se a garantir (como no IRS Jovem) que não beneficiava apenas quem ganha mais.

Neste Orçamento, tem-se sublinhado a cedência à pressão dos professores, polícias e militares (pessoal de saúde nem por isso, que os privados precisam deles) para falar de um OE de esquerda. Mas ignora-se a utilização de recursos públicos para apoiar os seguros de saúde, a privatização USF e a preparação da privatização do pouco que resta de setor empresarial público – já para não falar da política fiscal, que esteve no centro do debate. Na realidade, temos um OE totalmente alinhado com o pensamento político da AD, juntando-lhe a distribuição preventiva de dinheiro, perante a incerteza do desfecho da votação, preparando as eleições. Por isso temos um enorme aumento da despesa e uma grande descida da receita.

Tudo o que PS tinha de propositivo, que estava fora das linhas vermelhas e que é ignorando para vender a teoria do “meio caminho”, desapareceu. Se ainda se recordam, o dinheiro recuperado do IRS Jovem e do IRC deveria ser destinado à habitação, actualização das pensões e negociação do regime de exclusividade no SNS e da redução da contratação de médicos em regime de prestação de serviços. Propostas apresentadas com grande grau de pormenor, aliás. Nada disso sobreviveu ou foi sequer negociado.

Era inevitável que esta negociação corresse assim. Porque isto foi uma falsa negociação. Compreensivelmente, o PS não quis que ela fosse como costuma ser, discreta e com recato. Porque sabia que o governo não se importava ir a eleições, responsabilizando o PS. E precisava, por isso, que as suas cedências e boa-vontade fossem visíveis. O PS queria partilhar o controlo da narrativa, para se livrar dessa responsabilização. Só que este jogo estava perdido à partida porque tinha menos trunfos: ao contrário da AD, não queria ir a votos. Não porque o governo esteja a governar bem, mas porque esteve seis meses a preparar o bolso dos eleitores. E porque as crises, nesta fase, tendem a beneficiar quem governa. Ora, quando se negoceia com quem nada tem a perder as coisas dificilmente podem correr bem.»


13.10.24

Um portão em Lisboa

 


Casa Abel José da Cruz, Av da República 87, Lisboa. 1906-1907.
Arquitecto: Jose Rodriguez Prieto.

Daqui.

Patetas irrevogáveis

 



13.10.1921 – Yves Montand

 


Yves Montand, de facto Ivo Livi, nascido italiano e naturalizado francês, cantor e actor, formou um dos pares mais célebres do cinema francês quando se casou com Simone Signoret em 1951.

Pretexto para recordar algumas das suas interpretações, entre muitas.

Paris, Paris:






Porque é tempo delas:




E, inevitavelmente:


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O fardo perdido do homem branco

 

Bruno Catalano

«Quando em 1898, R. Kipling publicou o seu famoso poema – The White Man’s burden – exaltando a anexação colonial das Filipinas pelos EUA, a autoconfiança imperial do Ocidente estava no seu auge. Pelo contrário, a atual deriva de Washington, enredada na perigosa teia de guerras que julgava poder controlar – na Europa e Médio Oriente –, reconduz-nos ao tema, também vetusto, do declínio do Ocidente. Mesmo antes de, após o fim da guerra-fria, a hegemonia unipolar dos EUA ter iniciado o seu errático trajeto de intervencionismo bélico e incompetência estratégica, que nos conduziu à beira do abismo onde nos encontramos hoje, vozes sensatas, como a de Samuel Huntington, denunciavam o perigo da hubris norte-americana e ocidental, dessa arrogância de tentar impor uma cultura unidimensional a um mundo com múltiplas vozes e civilizações. Em 1996, aconselhava Huntington: “Uma postura prudente para o Ocidente seria não tentar suster a deslocação do poder, mas aprender a navegar em baixios, a suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura”. A mensagem não passou. O narcisismo imperial, o apoucamento do Outro, a ilusão de omnipotência, com muitos milhões de mortos e refugiados à mistura, povoaram estes trinta últimos anos. O genocídio praticado por Israel em Gaza, assistido pelo Ocidente, sinaliza um ponto de não retorno.

Será possível inverter esta rota de catástrofe para onde caminhamos? Para escolher o caminho da vida e reconhecer humildemente que o mundo pertence a toda a humanidade, e não só ao Ocidente, é necessária uma desintoxicação dos preconceitos e das opiniões arbitrárias. Sabemos bem que os factos permitem sempre diversas interpretações. Contudo, nos últimos três anos, no Ocidente, as interpretações sem substância escorraçaram toda a matéria de facto. Contra o império das convicções, gostaria de partilhar com o leitor alguns indicadores essenciais do mundo concreto e mais vasto, além das fronteiras banhadas pelo Atlântico Norte. Faço-o em apoio duma dupla tese: já vivemos num mundo multipolar; o Ocidente já não constitui o principal motor portador de futuro.

Sabemos que a reorganização do sistema internacional se está a efetuar através de uma cooperação de países conhecidos como BRICS, com muitas divergências entre si, mas unidos pela recusa da atual definição das regras do jogo do poder mundial, ditadas pelo Ocidente, reunido no G7. Aliás, o chefe da diplomacia de Nova Deli, S. Jaishankar, acusa esse grupo de ser um clube encerrado sobre o seu umbigo... Recordemos que o G7 é formado pelos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão e Canadá. Por seu turno, os BRICS começaram com 4 países (Brasil, Rússia, Índia e China). Em 2011, a África do Sul foi admitida. No final de outubro, na 16.ª conferência anual da organização, a realizar em Kazan, Rússia, terão entrada oficial mais 5 países: Arábia Saudita, Irão, Emiratos Árabes Unidos, Egipto e Etiópia. É curioso referir que a Rússia durante vários anos pertenceu aos dois “clubes”, pois entre 1998 e 2014 foi também membro do G8, até ser expulsa quando a Crimeia regressou à soberania de Moscovo.

Se compararmos o peso do G7 e dos BRICS no PIB mundial (por paridade do poder de compra) verificamos uma mudança dramática entre 2000 e 2024. Em 2000, o G7 representava 43, 28% do PIB global contra 21, 37% dos BRICS. Em 2018 deu-se a inversão: 31, 84% contra 32, 33%. Estima-se este ano um recuo do G7 para 29,64% contra 35, 43% dos BRICS (dados da empresa alemã, Statista).

No plano mais fino da ciência e tecnologia (C&T), os resultados são ainda mais surpreendentes. Em agosto foi publicado um relatório do Australian Strategic Policy Institute, um think-tank ligado ao governo de Camberra, sobre os países que lideram a C&T em 64 áreas críticas para o futuro: a defesa, o espaço, a energia, o ambiente, a inteligência artificial (IA), biotecnologia, robótica, cibernética, computação, materiais avançados e áreas-chave da tecnologia quântica. Estuda-se o período de 2003 a 2023. Também na C&T, o Ocidente regride. Em 2003, os EUA lideravam em 60 das 64 tecnologias. Em 2023, lideram apenas em sete. A China, pelo contrário, passou do lugar da frente em três tecnologias (2003) para 57 das 64 tecnologias em 2023. Se a UE contasse como país, lideraria apenas em duas tecnologias (sensores de força gravitacional e pequenos satélites). Outros países dos BRICS têm lugar destacado: a Índia está entre os cinco primeiros países em 45 das 64 tecnologias, o Irão em oito, a Arábia Saudita em quatro.

E que faz o Ocidente – os EUA e a mimética EU – perante essa explosão de disciplina, criatividade e inteligência de povos que antes, por si foram colonizados e subjugados? Rearma-se, decreta estratégias de contenção, promulga sanções, instaura políticas protecionistas, que no passado não consentia aos outros. Será que o Ocidente desconhece estar a humanidade inteira perante desafios existenciais, que exigem cooperação obrigatória para termos alguma possibilidade de sucesso? Poderemos contar apenas com a nossa comprovada declinante imaginação para dar conta da brutal crise ambiental e climática, das pandemias emergentes, dos riscos de descontrolo tecnológico, como é o caso da IA ou das biotecnologias? O imperialismo civilizador de Kipling desaguou num niilismo cru e nu, que reprime pela força o direito de todos os povos e indivíduos habitarem a Terra como sua pátria.»