18.6.22

Ide e lede

 

Um ano muito insólito: para onde vamos?
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Maria Bethânia

 


Chega hoje aos 76 com quase 60 anos de uma carreira iniciada em 1963, quando o seu irmão Caetano Veloso a convidou a participar na peça «Boca de Ouro». Foi nessa época que, tal como Caetano, conheceu Gilberto Gil e Gal Costa, e com eles entrou em «Nós, Por Exemplo» (Agosto de 1964).

Depois… continuou até hoje.







Noturno ao vivo (2021):


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Paul McCartney

 


Chega hoje aos 80. Será possível?
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Falácias, erros e o dilema moral sobre a guerra na Ucrânia

 


«Como já há muito poucas coisas que me surpreendem, assisto com mais pena do que furor, a como é possível numa democracia e em liberdade haver boa gente capaz de aceitar tanta falácia, tantas mentiras, tantos erros, e procurar pretextos para aquilo que é um pecado mortal, a acédia, a preguiça, a indiferença na sua pior forma, face ao sofrimento inútil, desnecessário, maléfico dos outros. Usei maléfico intencionalmente, porque, se há mal no mundo, é a violência da morte, da destruição, da fuga, da miséria provocada a quem já estava no limiar da pobreza, por uma invasão brutal, criminosa, sem razões, nem pretextos, da Ucrânia pela Federação Russa de Putin.

Medi todas as palavras: brutal, porque vai muito mais longe das eventuais necessidades militares, é punitiva na sua natureza, para os mais fracos. Criminosa, porque não respeita nem sequer um dos frágeis adquiridos civilizacionais, as leis da guerra. Os dois lados fazem o mesmo, mas, quer se queira quer não, a responsabilidade primeira é do invasor. Sem razões, nem pretextos, porque por muito que se possam acumular razões, e algumas há para a preocupação russa, a resposta é tão desproporcionada, que remete não para essas razões, mas para outras de natureza imperial. Nas democracias devem combater-se essas intenções imperiais de território e riqueza, como se fossem connosco.

Eu sei que escrever o que vou escrever é em grande parte inútil, mas mesmo assim tento, porque o faço para os “outros”, onde estão amigos e companheiros meus. Muitas dessas pessoas são genuinamente altruístas, são capazes de sacrifícios pelos outros, preocupam-se com a miséria e a pobreza, não vivem a sua vida num registo egoísta e individualista, têm os defeitos comuns de toda a gente, mas também tem virtudes menos comuns nos dias de hoje, de dedicação e solidariedade. Podemos criticar muitas das formas políticas que traduzem a sua vida e militância, como podemos criticar a incapacidade de muitos católicos em ultrapassar a caridade por uma consciência social, mas nem por isso deixam de ser, aquilo que uma classificação em desuso, chamava de “pessoas boas”.

Como é possível que não vejam o que se está a passar, porque, por muita manipulação (que há) e por muita espectacularização da dor para garantir audiências, eles sabem que há um enorme sofrimento injusto e injustificável na Ucrânia nestes dias e sabem o que o causa e quem o desencadeou e provocou. Sim, é verdade que na Palestina, no Iémen, em África há idêntico sofrimento, mas fazer amálgamas dissolve a consciência do mal. Deixaram-se prender numa espécie de identidade pelo inimigo, identidade pelo adversário, incapacidade em sair de um mundo político que se indigna com a NATO e acaba por ser indiferente com a Rússia de Putin. Ele há muito poucos defensores explícitos da invasão da Ucrânia, mas há muitos justificadores. É desse esforço de justificação que vou tratar, usando os argumentos do “outro lado”, antes de usar os meus.

As minhas fontes não são discussões nas redes sociais, nem tweets, nem comentários anónimos. São os documentos do PCP, os artigos do Avante! (que mesmo assim evita falar muito da Ucrânia, o que é interessante), os artigos do Abril, Abril, em particular os de José Goulão, os comentários de alguns militares nas televisões, com destaque para a SICN e CNN, e várias outras opiniões de defensores da interpretação essencialmente anti-NATO da guerra. O resultado dessa interpretação é uma equidistância retórica entre a responsabilidade russa e a da NATO e da Ucrânia, contrapondo uma vaga referência à “violação do direito internacional” pela Rússia, com páginas e páginas sobre a esmagadora culpabilidade dos “nazis” ucranianos, da NATO, dos EUA, das indústrias de armamento, da conspiração anticomunista e anti-russa.

Como se trata de adultos, parto do princípio de que eles sabem muito bem o que estão a apoiar, o que estão a defender, o que estão a esconder e onde querem chegar. Vejamos algumas questões:

Começou a “guerra” em 2014?

Sim e não. A “guerra”, se começou em 2014, começou pelo apoio russo à separação do Donbass e pela ocupação da Crimeia, em ambos os casos operações militares com ocupação e anexação do território. Esta é a guerra de 2014. O golpe da Praça Maidan - e repare-se que não coloquei golpe entre aspas -, não é uma guerra, nem serve de pretexto para a guerra actual nem para a de 2014. Os nacionalistas ucranianos, cujo nacionalismo é nos seus extremos protonazi (como aliás o nacionalismo russo, mas não como o nacionalismo francês, por exemplo), não invadiram a Rússia. Vamos chamar guerra à guerra, e guerra é muito mais do que uma “operação militar” (como afirmam os russos), é o que está realmente a acontecer nos dias de hoje.

Manifestar-se pela Paz, mas que “paz”?

Já se realizaram e vão-se realizar várias manifestações com o pretexto da paz. Nos cartazes diz-se “guerra e corrida aos armamentos, não!” Não sei muito bem como interpretar esta palavra de ordem, porque a “guerra” iniciou-se porque houve uma invasão militar de um país pela Rússia e a “corrida aos armamentos” é uma resposta inevitável a essa invasão, não a sua causa. Não deviam nomear a Rússia e dirigir para o invasor a sua condenação em nome da paz? Deve haver um acordo de paz? Sem dúvida, mas desde que esse acordo não implique o benefício do infractor, porque, se é assim, ele favorece a guerra e não a paz. Aquando da guerra do Vietname, identificava-se muito bem os EUA como o agressor, e ninguém esperava que os vietnamitas fizessem um acordo de paz deixando os EUA a ocupar parte do território.

Eu seria o primeiro na manifestação se a paz desejada passasse pela retirada do invasor, pelo pagamento de indemnizações pelas destruições causadas, pela libertação das populações prisioneiras contra a sua vontade na Rússia, pelo julgamento dos crimes de guerra por autoridades independentes, pelo respeito pela soberania ucraniana. E então sim, incluiria nesse acordo, uma considerável autonomia das minorias russófilas na Ucrânia, o seu direito à língua e à cultura, idêntico julgamento dos crimes de guerra ucranianos e a exigência da luta contra a corrupção, a democracia e a liberdade, uma eventual renúncia à entrada na NATO, desmilitarizando as zonas fronteiriças.

Qual foi o maior atentado contra a Paz (com letra grande) nestes dias de guerra?

Foi a ameaça de iniciar uma guerra nuclear feita por Putin e Lavrov, um acto sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. O “se”, em “se estiver em risco uma ameaça existencial para a Rússia”, torna ainda mais grave a afirmação, dita de viva voz (não é manipulação). Isto, sim, justificava enormes manifestações. Como não há tanques americanos às portas de Moscovo, nem mísseis convencionais lançados do Alasca, a interpretação do que é a “ameaça existencial”, ainda por cima num conflito num país terceiro, por parte de Putin, é mais que perigosa porque dá para tudo.

Continuaremos.»

17.6.22

Jean-Louis Trintignant

 


Menos um. Tinha 91 anos. Ficam no baú da nossa memória «Un homme et une femme», «Ma Nuit Chez Maud», «Z» e tantos outros filmes.




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O Google na NATO?

 


A Big Tech

“Por que é que a NATO precisa de integrar não só a Finlândia, mas também o Google”, escreve o israelita Shlomo Kramer, grande empresário de segurança informática, na revista Fast Company.

Explicita no subtítulo: “Se quereis a paz no mundo, pensai menos na Inglaterra, na França e na Alemanha, e mais no Google, Apple e PayPal.”

Kramer tem um argumento forte. Os colossos do Silicon Valley têm uma capitalização análoga à de países do G7: a Apple tem uma capitalização de 2,18 biliões de dólares, enquanto o PIB italiano é de 1,9 biliões.

Mais: “As multinacionais que geram grande parte do nosso crescimento económico têm a capacidade tecnológica – para não falar do orçamento – para projectar e promover o tipo de dissuasão rápida e eficaz que nenhum governo consegue facilmente fornecer.” As grandes empresas são capazes de fazer melhor e muito mais depressa. E têm, de facto, maior liberdade de acção perante a lei.

Dá o exemplo do PayPal. Quando esta plataforma de pagamentos digitais suspendeu a actividade com a Rússia, o golpe para muitos operadores de comércio electrónico russo foi mais forte do que qualquer outra sanção. Outro exemplo conhecido é o facto de Elon Musk ter ligado à Ucrânia a sua rede de satélites Starlink, com um papel efectivo no campo de batalha.

Seria chocante a ideia de ver os CEO das mega-empresas sentados à mesa do G7, ao lado do Presidente americano ou do francês, ou reunidos com os comandantes militares.

O que Kramer anuncia é uma era de muito maior de interpenetração entre o Estado e a Big Tech, coisa que a China faz metodicamente. O Google acaba de renovar um gigantesco contrato com a Agência de Segurança Nacional americana (NSA).

Conclui em tom algo idealista, mas extremamente actual perante a barbárie reinante. “Aquilo de que precisamos não é de maiores investimentos na segurança informática. Sugerimos uma nova Convenção de Genebra sobre os limites aos objectivos da guerra informática, como hospitais, casas de repouso ou escolas. (…) A Big Tech é orgulhosa de ter transformado todas as indústrias. Chegou o momento de aprender a revolucionar a guerra.”

A geopolítica não desaparece, pelo contrário: ganha novos actores e actores privados. Um futuro inquietante.»

Jorge Almeida Fernandes
Excerto da Newsletter do Público (16.06.2022)
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Pensar global

 


«As grandes crises acarretam frequentemente resoluções importantes. A criação de organizações globais, com o objetivo de pensar o mundo como um todo, foi uma das decisões cruciais que resultaram dos conflitos armados do séc. XX. Existem hoje mais de 300 organizações intergovernamentais e várias delas têm como princípio o propósito de trabalhar com todos e para todos. Criada em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) é uma dessas organizações. Das inúmeras conquistas no seu currículo, talvez a mais visível seja a erradicação da varíola, após uma longa campanha mundial de vacinação. É certo que há ainda muito trabalho por fazer — hoje, uma em cada cinco crianças no mundo não recebe vacinas contra doenças evitáveis como a difteria, tosse convulsa, tétano, sarampo ou poliomielite — mas a ação da OMS salvou muitos milhões de vidas nas últimas sete décadas.

Se, para muitos, é clara a importância de haver instituições fortes e inclusivas, que lideram um processo de cooperação e colaboração em vez de competição, outros (e muitas vezes os mesmos) consideram que estas organizações têm modelos de governação ultrapassados e pouco transparentes, não representando o interesse global. O sentimento de desconfiança associa-se frequentemente ao ritmo demasiado lento com que estas organizações normalmente parecem responder às solicitações que lhes são dirigidas.

A pandemia de covid-19 teve a proeza de revelar os extremos destas posições. Durante os últimos dois anos, a OMS esteve na mira de todos, e nem sempre pelas melhores razões, tendo sido criticada por não conseguir convencer os 194 Estados-membros a seguirem as suas orientações. Por outro lado, a pandemia veio relembrar-nos que vivemos todos no mesmo planeta, e que os nossos maiores problemas — sejam pandemias ou resistência a antibióticos ou mudanças climáticas — são todas questões urgentes e globais que só podemos abordar ou mitigar coletivamente.

Enquanto uns apelam a reformas urgentes e efetivas, outros duvidam que haja tempo ou se é mesmo desejável esperar pela reforma das grandes instituições. A cientista, já reformada, Françoise Barré-Sinoussi, laureada em 2008 com o Prémio Nobel em Fisiologia e Medicina pela descoberta do vírus VIH, e o professor de Ciência Política Olivier Nay propuseram recentemente reformular a OMS com a criação de um novo pilar — um Painel Intergovernamental para a Saúde Global — envolvendo uma rede de cientistas de diferentes partes do mundo e de diversas disciplinas, responsáveis por promover consensos científicos sobre as principais questões de saúde e por propor uma agenda global. Tratar-se-ia de algo semelhante ao conhecido IPCC (do inglês Intergovernmental Panel on Climate Change), que, desde que foi criado em 1988, tem sido fundamental para pressionar os governos a agir perante as suas projeções e análises sobre mudanças climáticas. Este novo pilar da OMS funcionaria como uma rede global de especialistas, descentralizada e protegida da pressão política ou interferência burocrática. Dar voz à comunidade científica, com a capacidade de pensar livre e globalmente, resultaria num processo de tomada de decisão mais ambicioso, consensual e inclusivo no ecossistema global de saúde, colocando o conhecimento científico na base da decisão política. O mundo enfrenta enormes desafios, novos e antigos, na saúde global e a OMS continua a ser a única organização com capacidade para traduzir o conhecimento científico em políticas internacionais endossadas pelos mais diversos governos. Reformulá-la é essencial para reganharmos a capacidade de trabalhar com todos e para todos.»

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16.6.22

David Mourão-Ferreira partiu há 26 anos

 


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Não é fotomontagem

 


O autor é António Cotrim, fotojornalista da Lusa (12.06.2022)

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Conversar com Putin

 


Esta doutrina não é, à partida, desprovida de bom senso. Parece é partir de uma falácia inicial. E que não é nova. Não é nova nem na perspetiva histórica, e muito menos na relação que o Ocidente estabeleceu com Putin nas últimas duas décadas. À Europa deu jeito uma relação económica que permitisse construir gasodutos e oleodutos com que se abasteceu com energia barata. (…)

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O veneno da humilhação



 

«A humilhação é daqueles temas que, tal como o tempo para Agostinho de Hipona, sabemos o que é se ninguém nos questiona sobre o assunto, mas, se nos obrigam a explicar, a evidência esfuma-se. Como diferenciar a humilhação de noções irmãs tais como a vergonha, o desprezo, a desonra, a desqualificação, a exclusão ou o sentimento de injustiça? Como explicar um sentimento vivido muitas vezes de forma tão íntima e silenciada? Não é fácil explicar o que é de facto a humilhação quando toca a esfera privada, pessoal, mas também coletiva, ou em contexto histórico ou geopolítico. Ouvimos, nos últimos tempos, falar de humilhação em várias situações como no caso Chris Rock e Will Smith, no da cadeira ausente para Ursula von der Leyen na Turquia, ou as declarações de Macron sobre “não humilhar a Rússia”, fazendo eco ao Tratado de Versalhes e à humilhação do povo alemão que teria levado à ascensão do nazismo.

Em A sociedade decente, o filósofo Avishai Margalit descreve a humilhação como sendo “todo o comportamento ou condição que constitui uma razão válida para uma pessoa considerar o respeito de si ferido”, fazendo também referência à noção de dignidade. Hélène Savoie Colombani em Da humilhação nos mitos kanak descreve a humilhação como sendo “um sentimento de vergonha que resulta de uma ofensa, de um ato que fere o amor próprio, o orgulho ou a dignidade do indivíduo ou de uma comunidade”. Mas como se faz o salto da humilhação para a vingança absolutamente violenta e desproporcionada?

Para o filósofo Olivier Abel, que publicou este ano o livro Da humilhação – o novo veneno da nossa sociedade, esta desproporção é parte integrante do processo de humilhação. Ao contrário da violência que pode ter uma resposta rápida, dou-te um estalo e tu retribuis, a humilhação segue um percurso lento, fica ali em lume brando, provoca ressentimento, rancor, ruminação até explodir. E quando explode é violento, amplificado, desproporcionado. Para Abel, “o papel da humilhação na história é mais importante do que o da violência”. No caso da Alemanha, defende o filósofo, produziu-se uma narrativa, um reescrever da história que tinha precisamente como objetivo exacerbar o sentimento de humilhação do povo alemão. As dificuldades económicas não chegam para excitar um povo, tal como não chegam para explicar comportamentos de voto, como escrevi há tempos aqui numa crónica.

Mas a humilhação não conduz sempre à vingança desproporcionada. Nos assassinatos em massa nas escolas dos EUA, quando estes são cometidos por indivíduos mais jovens, apresenta-se muitas vezes a explicação do historial de assédio, das humilhações passadas enquanto aluno. Corre pela Internet um meme com a célebre foto de Elizabeth Eckford, uma das primeiras alunas negras a frequentar uma escola mista em 1957, a ser agredida verbalmente por um grupo de jovens que gritavam “volta para casa, preta”, “volta para África”, no qual está escrito: “humilhada todos os dias, nunca atacou uma escola”.

Poderia também dar aqui o exemplo dos feminicídios, homens que matam mulheres, que por vezes o fazem por sentimento de humilhação, “porque ela já não quer ser minha, rejeitou-me, vi-a dançar com outro”, etc. E mulheres vítimas de humilhação contínua que não passam para uma fase de vingança desproporcionada. Relembrando-nos a conhecida reflexão, atribuída à escritora Margaret Atwood, mas que na verdade é um resumo do excerto de uma conferência: “Os homens têm medo de que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.” Ao que poderíamos acrescentar: as mulheres têm medo de que os homens as matem porque eles não admitem que “elas se fiquem a rir”.

Existem várias formas de lidar com a humilhação: “Muitos dos que são humilhados não são humildes. Alguns reagem à humilhação com raiva, outros com paciência e outros com liberdade. Os primeiros são culpados, os segundos inofensivos e os últimos justos”, escrevia há quase um século o abade francês Bernardo de Claraval. A correlação entre humilhação e humildade é essencial, pois pode precaver a passagem à vingança, à exageração do orgulho ferido, mas por outro lado também pode fazer o indivíduo cair numa depreciação extrema de si próprio podendo até levar ao suicídio. O monstro não é aquele que me humilha, o monstro sou eu, como bem descreve Sartre.

A questão da humilhação extravasa, portanto, as relações interpessoais, ocorre também ao nível do grupo ou das instituições. A nossa sociedade foi aos poucos saindo da utilização da humilhação como castigo, as orelhas de burro e as reguadas já não se usam, mas processos de humilhação continuam sob outras formas na escola, mas também na relação da polícia ou da justiça com pessoas negativamente racializadas.

A humilhação continua ainda a ser um espetáculo, um divertimento, desde emissões televisivas como “o elo mais fraco”, o estilo de comédia apelidado “roast” que permite insultar, humilhar uma personalidade sendo esta obrigada a manter-se imperturbável, insensível, sem contar com as redes sociais, provedoras prolíficas de todo o tipo de humilhação pública. Encontramos essa mesma injunção à passividade nos que criticam o “politicamente correto”, naqueles que se indignam porque “já não se pode dizer nada”. O verdadeiro problema que aqui se nos coloca não é o da liberdade de expressão dos humilhadores, mas o da liberdade de resposta dos humilhados. O que estas pessoas não suportam é que aqueles que se calavam antes, aqueles que respondiam “sim” à ilustre pergunta “não levas a mal, pois não?” agora respondam “sim, levo”.


É preciso, pois, encontrar um equilíbrio na resposta à humilhação, entre a humildade extrema, o “dar a outra face” crístico, e a vingança desproporcional injustificável, entre a passividade e o ódio. E isso passa pela justiça e liberdade. E ainda por repudiar a manipulação de sentimentos de humilhação baseados em orgulhos supremacistas e a sua justificação ou tolerância. Em deixar de tomar as dores dos mais fortes quando estes atacam os mais fracos. Mas, sobretudo, é necessário construir uma sociedade na qual a humilhação não seja valorizada e aplaudida, onde cuidarmos uns dos outros não seja visto como uma fragilidade, mas como uma resistência.»

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15.6.22

A saga da falta de médicos

 

«Tenho ouvido, sempre que possível, os debates nos órgãos de comunicação social sobre as falhas nas urgências e os serviços encerrados por falta de pessoal. Há duas coisas que retive destes debates e que me parecem óbvias e fáceis de pôr em prática. A primeira é dar muito mais responsabilidade aos órgãos de gestão dos hospitais e das unidades de saúde. Para gerir, para contratar, para organizar. A segunda tem a ver com as remunerações. Como é possível que um tarefeiro, contratado a uma empresa privada de recursos humanos para suprir a falta de pessoal dos hospitais, possa ganhar à hora muito mais do que os médicos do quadro desse mesmo hospital? É tão absurdo que nem sequer a velha explicação de que se trata das regras da concorrência consegue justificar. Ao mesmo tempo, o ministério queixa-se de que muitas das vagas abertas por concurso ficam por preencher.

Depois, há a velha questão das remunerações. Porque é que os médicos não podem ganhar tanto como os juízes? Ou mais do que outros quadros superiores da função pública? É como os pilotos, que ganham imenso porque exercem uma profissão desgastante e extremamente exigente. Haverá alguma profissão mais exigente do que a dos médicos? Porque é que não ganham por mérito e por capacidade? Seria, talvez, útil romper com o tabu da igualdade.»

Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 14.06.2022
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O papa e a Ucrânia

 


São mais que muitos os que hoje se «penduram» no papa Francisco por causa de umas afirmações que ele fez sobre a guerra da Ucrânia numa entrevista a uma revista jesuíta.

Aos crentes, recordo que ele só é infalível em matéria de dogmas. Aos ateus arraigados e outros que tais, lembro que Francisco nunca terá afirmado que «raramente se engana e que nunca tem dúvidas». Para isso, temos cá um dos nossos importantes portugueses, que deu cartas e que continua a querer dar.
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Bem prega Frei Costa, mal se queixa Frei Saraiva

 


«Perante uma plateia de jovens, António Costa fez um apelo: que o salário médio crescesse 20% nos próximos quatro anos. Como não explicou se falava do rendimento real, não sei se grande parte disso não seria comido pela inflação. Mas é indiferente, porque o apelo, como prova a forma descuidada em que foi feito, não é para levar a sério.

Perante uma inflação prevista no Orçamento de 4%, que já está nos 8%, o Governo impôs um aumento salarial de 0,9% aos funcionários públicos. E não consta que nas empresas de que o Estado ainda é o principal acionista se tencione contrariar esta lógica. Isto corresponde a uma brutal queda do salário real. E se compararmos com as previsões do aumento previsto da produtividade, será a maior perda de peso do trabalho no rendimento nacional deste século. Pior do que no pior ano da troika. Tem razão António Saraiva, da CIP: bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz.

Fernando Medina e António Costa têm defendido esta brutal perda de rendimentos com o argumento da cautela. Não sabemos o que aí vem. O efeito mimético é óbvio. Se o Estado, com mais informação, adia a decisão de aumentar salários, por que não o fariam os privados? Se este não é o bom momento para garantir que os salários da função pública acompanhem a inflação, deixando os trabalhadores em situações impossíveis – vem aí o aumento das prestações da casa graças à eutanásia económica imposta pelo BCE, que deixarei para outro texto –, também não o é para estes apelos. A diferença é que os apelos saem de graça.

Outro argumento contra o aumento dos salários da função pública é que isso contribuiria para uma espiral inflacionista. Esta inflação tem origem externa e na oferta, não interna e na procura. Usar a redução dos salários reais em Portugal para conter esta inflação é como tentar abater um míssil com uma fisga. O efeito dos aumentos salariais seria marginal numa inflação com origem no aumento do preço dos combustíveis e dos cereais e na rutura logística e de produção chinesas. Mas, se fosse verdadeiro, como raio valeria para a função pública e não para o privado?

ABAIXO DA PRODUTIVIDADE

Os presidentes da CIP e da CCP não reagiram bem. João Vieira Lopes acusou Costa de se comportar como um “sindicalista”, o que, na arqueológica visão de alguns dirigentes associativos dos patrões portugueses, corresponde a um insulto. Noutros países é função respeitada. Aparentemente, está com medo do que a quebra do poder de compra fará às empresas que representa e por isso não quer aumentar salários. Tendo em conta que o poder de compra depende dos salários, é o que se chama ter visão.

António Saraiva criticou a óbvia incoerência de António Costa e explicou que isto não vai lá com manuais de instruções para as empresas e para a economia. Mas faz sentido recordar que, desde 1999, a produtividade aumentou 14% e a remuneração real só aumentou 6%. E se não fosse a pandemia, em que a economia parou, mas os apoios públicos mantiveram os empregos e os salários, a diferença seria ainda maior. Se as contas do Governo para o Orçamento do Estado estivessem certas, estes números passariam, no fim de 2022, para um aumento da produtividade, desde o início do século, de 18% e um aumento da remuneração real de 5%. Ou seja, os trabalhadores não têm sido proporcionalmente beneficiados pelo aumento da produtividade e continuarão a não o ser. Vivem abaixo das suas possibilidades para outros viverem acima.

É preciso dizer que esta discrepância não é um fenómeno exclusivamente nacional. De 1950 a 1970, a produtividade dos EUA cresceu 79% e os salários reais 76%. Muito próximo. De 1980 até 2019, a produtividade cresceu 113% e os salários reais apenas 50%. É por isso que, graças ao desequilíbrio de poder imposto pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher e pela destruição dos sindicatos em que se empenharam (a sindicalização no Reino Unido era de 50% e agora é de 20%, nos EUA era de 25% e agora é de 5%), o homem mais rico do mundo é trinta vezes mais rico do que homem mais rico de 1955. Não é mais engenho, é porque a esmagadora maioria deixou de beneficiar de forma equilibrada do crescimento para que contribui.

Mesmo não sendo este constante afastamento entre o aumento da produtividade e o aumento dos salários reais uma realidade exclusivamente nacional, o que Costa propôs, na sua intervenção inconsequente, não está desfasado da realidade económica portuguesa. Se o peso dos salários no nosso PIB correspondesse aos mesmos 48% do conjunto da riqueza que vigoram em média na UE, o esforço seria proporcionalmente o mesmo, adaptado às nossas capacidades. Não é mais do que aguentamos, é a proporção do que se pratica na Europa aplicada à nossa realidade. Lembram-se da hecatombe anunciada com o aumento do salário mínimo? Não aconteceu.

SEM MAGIA, COM ILUSIONISMO

A inconsequência é que estas coisas não dependem de apelos, mas de políticas. António Saraiva tem a solução mágica num dos países mais desiguais da Europa: pagar menos impostos (os que pagaram os apoios às empresas durante a pandemia). Não houve nenhuma grande reforma fiscal nos últimos anos. Não são os impostos que explicam um rendimento que nunca sobe tanto como a produtividade. Como a nossa carga fiscal está abaixo da média europeia – e o esforço no pagamento de salários também –, é difícil argumentar que é aí que está o problema. O primeiro problema é a perda de poder negocial dos trabalhadores e as leis que subordinam o trabalho, impostas pela troika e ainda em vigor. O segundo tem a ver com a estrutura da nossa economia.

O primeiro problema deve ser o Governo a resolver. E a verdade é que no mesmo momento em que propõe começar um projeto piloto para a semana de trabalho de quatro dias (uma ideia que se fosse para levar a sério seria interessante e que podem conhecer melhor na entrevista que fiz ao economista Pedro Gomes), limpou da Agenda do Trabalho Digno grande parte das propostas que contrariavam a precariedade e reforçavam a contratação coletiva. Como os aumentos salariais dependem da economia e da negociação para partilhar os seus ganhos, Costa não está a fazer nada nesse campo.

Quanto ao segundo problema, é uma pescadinha de rabo na boca. Ela é evidente quando os hoteleiros que cobram, no Algarve ou em Lisboa, tarifas de estadia que não estarão uns 20% ou 30% abaixo das cobradas em cidades como Berlim, se queixam da falta de trabalhadores a quem pagam muitíssimo menos do que se paga na Alemanha. E com péssimas condições de trabalho e preços de habitação incomportáveis (também voltarei ao tema).

As vulnerabilidades da nossa economia têm razões estruturais, históricas e até externas. E é sintomático que a análise sobre a estagnação em que Portugal entrou nos últimos vinte anos se concentre sempre nas pequenas guerrilhas partidárias enquanto se ignora o maior terramoto económico da história recente do país – a adesão a euro. Mas os salários baixos são consequência, mas também causa. Uma economia que se baseia em baixos salários é uma economia que não acrescenta valor. Que não pode aproveitar o investimento feito em formação. Que se tem de concentrar em serviços rentistas, para onde as privatizações dos anos 90 canalizaram o capital). O baixo salário é um mau hábito concorrencial que alimenta maus gestores e más empresas.

O aumento do salário médio não é só um imperativo de justiça social. É um imperativo económico num país que tem um mercado interno raquítico e que nunca poderá competir com a mão de obra (cada vez menos) barata chinesa e precisa de absorver a mão de obra que andou a formar. Um governo decidir que esse objetivo é nacional é mais do que justo. Só não o é para quem gostava que o Estado se limitasse a baixar impostos, distribuir fundos europeus e privatizar os serviços que ele próprio construiu ou empresas apetitosamente monopolistas. Ou a acabar com apoios sociais para que os desempregados que não conseguem emigrar aceitem trabalhar com salários miseráveis.

Para quem acha que os governos ainda servem para alguma coisa, este é um objetivo óbvio. O problema é quando percebemos que, desde 2011, incluindo tempo de Costa, o salário dos funcionários públicos cresceu abaixo dos privados. E que o Estado se dedicou a reduzir, na lei, a capacidade negocial dos sindicatos. Com palavras não se fazem milagres. Mas faz-se ilusionismo: enquanto se baixam salários reais dos funcionários públicos, os do privado sobem na retórica do debate político.»

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14.6.22

Foi há pouco tempo

 

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14.06.1940 - «Les loups sont entrés à Paris»

 


Há 82 anos, o exército alemão entrou em Paris de onde já tinham fugido dois terços da população. Como primeiro acto da ocupação foi retirada a bandeira tricolor do Ministério da Marinha e colocada uma com a cruz gamada no cimo do Arco do Triunfo.




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Para regressar a Portugal não basta o convite, é preciso explicar porquê

 


«João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, convidou os jovens emigrantes portugueses que estão no Reino Unido a regressarem a Portugal. Afirmou o ministro: “Aqueles que, pelas mais diversas razões, saíram do país têm a oportunidade, se assim o desejarem, de regressar a casa. Essa continua a ser para nós uma prioridade.”

Certamente muitos foram aqueles que ao ouvir as declarações do governante ficaram sem perceber quais são as verdadeiras oportunidades. Por momentos e assim à vista desarmada, o convite seria para passar férias, pensei eu.

Desde salários baixos, impostos elevados, problemas na habitação com elevados preços no arrendamento não se consegue de facto encontrar as tais oportunidades.

A razão de quem sai do país é a procura de melhores condições com uma oferta digna de trabalho e de um salário que possa chegar até ao fim ao mês e não como em Portugal, onde em regra, falta mês no final do salário. Todos aqueles que estão no Reino Unido ou em qualquer outra geografia sabem perfeitamente que não vale a pena regressar enquanto Portugal não crescer e não criar condições análogas àquelas que outros oferecem.

A título de exemplo, a nossa vizinha Espanha no seu Orçamento de 2022 viu aprovada a medida de criar um abono mensal de 250 euros para jovens entre os 18 e os 35 anos com rendimentos inferiores a 23.725 euros anuais, facilitando assim a saída de casa dos pais.

As condições necessárias passam por oferecer aos jovens mais que um simples convite. Não dizer que oportunidades há é dizer coisa nenhuma. Mas, de facto, não poderemos esperar saber quais as oportunidades a que se referia, porque todos sabemos que não as há. Se analisarmos o estudo promovido pela Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, Captação de talentos: um factor chave de competitividade, podemos concluir que a tónica reside no factor impostos com a criação de benefícios fiscais.

No programa IRS jovem, pouco mais de mil jovens estão de facto a beneficiar desta medida, o que significa que poucos terão rendimento suficiente para que sejam abrangidos por esta medida. Ainda não foi concedido também às empresas uma isenção total em sede de custos do trabalho na contratação de jovens, por exemplo através do programa de estágios Ativar.pt, aproveitando para implementar políticas sérias de verdadeira ajuda à competitividade.

No entanto, é necessário rever igualmente as taxas de retenção na fonte para aqueles que a elas estão sujeitos, como também é urgente acabar definitivamente com alguns outros impostos destinados ao crédito à habitação, por exemplo, o imposto do selo. É de lamentar, e porque não dizê-lo, escandaloso o valor que um jovem em início de carreira paga em impostos para a compra de casa.

Todas as questões devem estar prévia e definitivamente tratadas. Só assim se fará um caminho para oferecer para aqueles que estão lá fora a possibilidade de pensar em regressar. Até lá, tudo isto não pode passar de um convite para férias.»

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13.6.22

Indignação

 


«O que se passou hoje no Aeroporto Internacional de Lisboa foi uma enorme afronta contra a dignidade humana. Filas quilométricas de passageiros foram tratados como se fossem gado, obrigados as esperas que iam de quatro a cinco horas, de pé, sem a mais pequena das explicações, sem o apoio de uma cadeira, de água ou de qualquer conforto, fosse esse conforto a simples presença de alguém que atendesse os casos de pessoas com necessidades especiais. A humilhação foi distribuída por igual entre os que não tinham um passaporte da União Europeia. Jovens, mães com crianças, idosos e pessoas com deficiência foram obrigados a sentar-se no chão e ali esperarem até que a exaustão se converteu num imenso clamor de protesto e revolta. Vergonha, isto é uma vergonha, gritavam as pessoas.»

Mia Couto
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Um cartaz é de 1949

 


Isto do turismo como salvação nacional já vem de longe.
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A condecoração do enfermeiro Luís

 


«Nada contra o enfermeiro Luís, tudo a favor. Todas as declarações que leio e que lhe são atribuídas parecem de extrema sensatez.

Vejamos: manifestou contentamento pelas palavras de apreço de Boris Johnson a seguir ao seu internamento por infeção com covid-19. É normal e é razoável. Foram elogios ao seu trabalho. As palavras do primeiro-ministro inglês materializam que recebeu um tratamento excepcional.

Manifestou também a sua surpresa porque, logo a seguir ao discurso de agradecimento de Boris Johnson, recebeu um telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa. Na verdade essa surpresa só pode ser explicada por viver fora do seu país. Não aconteceu nada de novo. O nosso presidente gosta de marcar presença, é afectuoso e extremamente rápido a fazer o que lhe passa pela cabeça.

Agora, pelo 10 de junho, o enfermeiro Luís Pitarma foi condecorado com a Ordem de Mérito com o grau de Oficial. A primeira pergunta que ocorre fazer é perguntar se a condecoração tem a ver com os cuidados prestados ao primeiro-ministro inglês naquela semana, se tem a ver com o agradecimento que o próprio lhe dirigiu publicamente ou se tem a ver com alguma façanha que desconheçamos.

Vamos a direito. O enfermeiro Luís, de Portugal, recebeu uma distinção em razão dos cuidados prestados ao Boris e, claro, do reconhecimento público que teve a esse propósito.

E aqui, e para portugueses menos experientes nisto de se ser português, começa um enorme constrangimento, mas que nunca deverá ser extensível ao próprio enfermeiro Luís. Mas ser português significa estar habituado a estas coisas. Pois se há uma alta figura de Estado, e sobretudo de um país que lá no fundo consideramos estar acima do nosso, que elogia um português, ficamos inchados pelo orgulho que nos toma.

Não vale a pena fazer de conta. Foi evidente o delírio nacional com os agradecimentos de Boris a um dos nossos. Pode tratar-se de uma caraterística normal para um país pequeno e pobre, e com grandes tradições de subserviência perante países europeus mais ricos. Normal não quer dizer que não seja extremamente pindérico. Somos pindéricos nestas coisas.

Partir deste contentamento, e transformá-lo em condecoração, foi surreal. Certo. Mas também pode ser encarado como o assumir daquilo que somos. Perdemos a vergonha. Condecorámos um homem por ter feito o seu trabalho ao prestar cuidados de saúde a Boris Johnson e por este ter ficado agradado. Podíamos estar cheios de orgulho do enfermeiro Luís e disfarçar. Mas não; sem complexos mostrámos qual era a dimensão da coisa.

Trata-se de um primeiro-ministro que, ele próprio, não merece qualquer distinção. Um homem que fez festas quando os ingleses assistiam aos funerais de familiares próximos por Zoom. Um inconsciente para não entrar no domínio da ética ou da moral. Se isto diminui o mérito do nosso enfermeiro? Não. Mas faz um belo conjunto.

Condecorámos Luís Pitarma porque continuamos a fazer o culto dos feitos dos portugueses lá fora. Ainda por cima, lá fora foi o Reino Unido. Um país de gente finíssima e sofisticada que nos deu atenção.

Mas vamos supor que o enfermeiro Luís tinha prestado os seus cuidados de saúde a um operário inglês. Nada feito. Não haveria condecoração. E se os tivesse prestado ao primeiro-ministro de um pequeno país africano? Estamos a entrar em matéria muito embaraçosa, mas diria que não; também não haveria condecoração nenhuma.

Também se recordarão da algazarra quando Obama escolheu um cão de raça portuguesa. Ou da festa a propósito da iluminação natalícia, em algumas ruas de Londres, da autoria dos irmãos Castros. Enfim. Não basta sermos pobres, também tínhamos de ser parvos.

A condecoração em causa “destina-se a galardoar atos ou serviços meritórios praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, que revelem abnegação em favor da colectividade.” Certamente o exercício da profissão por parte deste enfermeiro, como de tantos outros, é digno de reconhecimento. E é certo que, como milhares de outros enfermeiros, está no Reino Unido porque Portugal não oferecia as condições remuneratórias e de progressão na carreira, a que teriam o direito de aspirar. Isto é triste.

Em Portugal é mais fácil ser condecorado no 10 de junho do que conseguir uma vida justa. Uma das piores críticas que se pode fazer a um português é dizer-lhe que é mesmo português e usando a palavra como adjetivo. O mesmo para o “à portuguesa”. Quando se ouve que alguma coisa foi feita à portuguesa já se sabe que não foi bem-feita.

Foi assim que tratámos o enfermeiro Luís “de Portugal”.»

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12.6.22

E quanto a médicos

 


Pode ser problema meu, mas não vejo nem a luz de um fósforo ao fundo do túnel.

(Público, 11.06.2022)
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Pelos santos populares

 

Se não andam já a marcar lugar para as sardinhadas de mais logo, deliciem-se com este magnífico texto de António Araújo.

«Antes de comer uma sardinha, convém saber ao menos o que é uma sardinha. E talvez saber que, por causa dela, ou de uns peixes como ela, estivemos à beira de uma guerra mundial, ou quase. Não foi assim há tanto tempo como isso e envolveu dois países que agora se enfrentam surdamente, Suécia vs. Rússia.»

Na íntegra AQUI.
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País macro, país micro



 

«Há um país, visto a partir do Terreiro do Paço pela lente de grande formato dos valores macroeconómicos, que parece estar em recuperação económica. O PIB nacional foi o que mais cresceu na Europa no primeiro trimestre, em comparação com o período homólogo do ano passado. A narrativa de que a inflação elevada será transitória vai fazendo caminho e o primeiro-ministro mostra tamanha confiança na capacidade do tecido empresarial que apela a um aumento de 20% do salário médio em quatro anos.

Fazendo zoom e olhando a realidade dos portugueses, na escala micro de quem todos os meses faz contas à prestação da casa, à conta da luz, aos depósitos de combustível, a realidade é obviamente outra. Perspetiva-se risco de incumprimento no crédito, os salários da Função Pública estão longe de dar o exemplo para o discurso oficial de prosperidade, no terreno IPSS e técnicos de Segurança Social falam de famílias cada vez mais aflitas, ou mesmo a precisar do apoio de emergência alimentar que a tutela considera estar em condições de ser reduzido.

E há, claro, um caso bicudo no setor da Saúde. Por mais que as contas macro apontem uma dotação orçamental que cresce 6,7% acima do PIB, no país real sucedem-se os encerramentos de serviços por falta de especialistas e as tragédias que personificam, em gente de carne e osso, as deficiências na resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Não estamos sequer a falar do esquecido Interior do país, mas de falta de equipas em cidades como Braga, Almada ou mesmo Lisboa.

Em Inglaterra, o presidente da República elogiou os profissionais de saúde que ali desenvolvem a sua atividade e lembrou que Portugal já enviou várias "centenas de Cristianos Ronaldos" para a investigação naquele país. Depois apelou ao mais difícil: que regressem às origens. Onde, poderia ter acrescentado, se vive um problema sério de recursos humanos. Essa é simultaneamente causa e consequência da dificuldade de Portugal em dar um salto qualitativo no seu paradigma de desenvolvimento. Podemos agarrar-nos a números esperançosos ou fazer discursos otimistas sobre a nossa capacidade. A realidade, essa, não muda ao ritmo do desejo.»

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