«As grandes crises acarretam frequentemente resoluções importantes. A criação de organizações globais, com o objetivo de pensar o mundo como um todo, foi uma das decisões cruciais que resultaram dos conflitos armados do séc. XX. Existem hoje mais de 300 organizações intergovernamentais e várias delas têm como princípio o propósito de trabalhar com todos e para todos. Criada em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) é uma dessas organizações. Das inúmeras conquistas no seu currículo, talvez a mais visível seja a erradicação da varíola, após uma longa campanha mundial de vacinação. É certo que há ainda muito trabalho por fazer — hoje, uma em cada cinco crianças no mundo não recebe vacinas contra doenças evitáveis como a difteria, tosse convulsa, tétano, sarampo ou poliomielite — mas a ação da OMS salvou muitos milhões de vidas nas últimas sete décadas.
Se, para muitos, é clara a importância de haver instituições fortes e inclusivas, que lideram um processo de cooperação e colaboração em vez de competição, outros (e muitas vezes os mesmos) consideram que estas organizações têm modelos de governação ultrapassados e pouco transparentes, não representando o interesse global. O sentimento de desconfiança associa-se frequentemente ao ritmo demasiado lento com que estas organizações normalmente parecem responder às solicitações que lhes são dirigidas.
A pandemia de covid-19 teve a proeza de revelar os extremos destas posições. Durante os últimos dois anos, a OMS esteve na mira de todos, e nem sempre pelas melhores razões, tendo sido criticada por não conseguir convencer os 194 Estados-membros a seguirem as suas orientações. Por outro lado, a pandemia veio relembrar-nos que vivemos todos no mesmo planeta, e que os nossos maiores problemas — sejam pandemias ou resistência a antibióticos ou mudanças climáticas — são todas questões urgentes e globais que só podemos abordar ou mitigar coletivamente.
Enquanto uns apelam a reformas urgentes e efetivas, outros duvidam que haja tempo ou se é mesmo desejável esperar pela reforma das grandes instituições. A cientista, já reformada, Françoise Barré-Sinoussi, laureada em 2008 com o Prémio Nobel em Fisiologia e Medicina pela descoberta do vírus VIH, e o professor de Ciência Política Olivier Nay propuseram recentemente reformular a OMS com a criação de um novo pilar — um Painel Intergovernamental para a Saúde Global — envolvendo uma rede de cientistas de diferentes partes do mundo e de diversas disciplinas, responsáveis por promover consensos científicos sobre as principais questões de saúde e por propor uma agenda global. Tratar-se-ia de algo semelhante ao conhecido IPCC (do inglês Intergovernmental Panel on Climate Change), que, desde que foi criado em 1988, tem sido fundamental para pressionar os governos a agir perante as suas projeções e análises sobre mudanças climáticas. Este novo pilar da OMS funcionaria como uma rede global de especialistas, descentralizada e protegida da pressão política ou interferência burocrática. Dar voz à comunidade científica, com a capacidade de pensar livre e globalmente, resultaria num processo de tomada de decisão mais ambicioso, consensual e inclusivo no ecossistema global de saúde, colocando o conhecimento científico na base da decisão política. O mundo enfrenta enormes desafios, novos e antigos, na saúde global e a OMS continua a ser a única organização com capacidade para traduzir o conhecimento científico em políticas internacionais endossadas pelos mais diversos governos. Reformulá-la é essencial para reganharmos a capacidade de trabalhar com todos e para todos.»
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