«Vendo bem, nós, europeus, já nos habituámos a andar quase sempre às voltas com a Alemanha, com as suas decisões, os seus sucessos, as suas dificuldades. Isto acontece, caro leitor, cara leitora, praticamente desde a queda do Muro de Berlim e da reunificação, quando, de novo, um gigante emergiu no coração do velho continente, muitas décadas depois de ter sido derrotado, dividido, democratizado e reconduzido, graças à NATO e a Comunidade Europeia, ao concerto das nações civilizadas. Este caminho de regresso resultou da visão de Washington sobre o futuro da Europa e do mundo, depois da II Guerra, e do espírito visionário de alguns europeus que souberam tirar as devidas lições das tragédias da primeira metade do século XX.
A reunificação alemã, com o preço exorbitante que a República Federal pagou para resgatar a economia degradada e improdutiva da antiga RDA, custou aos seus parceiros europeus uma profunda recessão, mas também levou à criação do euro – que foi, em primeiro lugar, uma decisão política para amarrar definitivamente o gigante ressurgido à integração europeia. A partir do início deste século, pela mão de um governo de coligação entre o SPD e os Verdes, um conjunto de reformas ousadas libertou a economia alemã de velhos constrangimentos, permitindo-lhe sair da crise económica e libertar o seu enorme potencial.
Convém sempre lembrar que a Alemanha foi o maior beneficiário do euro, apesar da relutância inicial dos alemães em abandonar o seu fortíssimo marco. Angela Merkel pôde tirar todo o partido dessas reformas e governar durante 16 anos com um objectivo fundamental – manter os alemães felizes, sem deixar que essa felicidade chegasse a pôr em causa a integração europeia.
A pandemia mudou muita coisa. As lições que Berlim acabou por tirar, com alguma relutância, sobre as políticas de austeridade que impôs aos seus parceiros mais frágeis para enfrentar a crise financeira e a Grande Recessão levaram a chanceler a perceber que a crise pandémica, que não era culpa de ninguém e tocava a todos, só se resolveria com solidariedade. Tudo correu bem, até ao dia em que a Rússia decidiu invadir a Ucrânia. A pandemia já tinha levado a Alemanha e a Europa a repensarem as suas relações com o mundo. A guerra mudou tudo. Incluindo em Berlim.
Abreviando razões, caro leitor, hoje a Alemanha enfrenta um dos maiores desafios da sua história pós-1949. A guerra pôs fim à sua política suicida de dependência da energia russa – um dos factores do seu êxito económico e o maior financiamento directo às ambições belicistas de Moscovo. Hoje, os alemães interrogam-se sobre como vão viver no próximo Inverno.
A China e a Rússia
As perturbações das cadeias de abastecimento afectam duramente a máquina exportadora alemã, alimentada pelos bens intermédios que importava da Ásia e, em primeiro lugar, da China. A guerra lança a incerteza sobre o futuro da própria União Europeia porque lhe coloca desafios enormes. O modelo exportador, assente em salários estagnados, que não alimentavam o mercado interno, está em crise. Os efeitos da pandemia na economia chinesa começam a revelar-se perigosos, retirando à Alemanha um dos seus mercados preferenciais. A reflexão estratégica sobre o risco de contar com o mercado de uma gigantesca autocracia com ambições hegemónicas mundiais foi alterando a política europeia em relação à China. A guerra matou definitivamente a tentação da Europa pela "terceira via" entre as duas superpotências – os EUA e a China.
Hoje, é esse também o debate alemão, depois da experiência dramática da sua dependência do gás e do petróleo russos. O Nord Stream 1, gerido pela Gazprom, está a canalizar para a Alemanha apenas 20% da sua capacidade normal. Transformou-se numa poderosa arma de chantagem nas mãos de Putin. A União Europeia já se viu obrigada a aprovar um plano de contingência para enfrentar o Inverno, em socorro da Alemanha e dos países da Europa Central mais dependentes. Olaf Scholz está a considerar adiar o encerramento das três centrais nucleares que ainda restam ao país, depois da decisão extemporânea de Merkel de as encerrar a todas, na sequência do desastre de Fukushima, no Japão. O problema é que as três empresas que as detêm dizem que tencionam manter os seus planos de encerramento até ao final do ano.
Em poucas palavras, a Alemanha – Governo e empresários – viu-se de repente obrigada a pensar em termos geopolíticos e não apenas económicos.
A mudança não será fácil, de tal maneira implica a readaptação do seu modelo económico e da própria sociedade a tempos totalmente novos, em que a guerra regressou à Europa e o mundo está em acelerada transformação.
Os avisos de Lindner
Na semana passada, o Financial Times citava declarações do próprio ministro das Finanças, o liberal Christian Lindner, que descreviam a situação com toda a crueza. As perspectivas da economia alemã são "frágeis", com as previsões de crescimento em constante revisão em baixa; a vida tornou-se mais cara, com o aumento do custo da energia e da alimentação. A inflação disparou, no país que ainda hoje vive o trauma da hiperinflação nos anos 1930, que conduziu Hitler ao poder. As interrupções persistentes das cadeias de abastecimento e a procura externa mais fraca estão a pesar fortemente no sector industrial. Clemens Fuest, chefe do Instituto Ifo, diz ao jornal britânico que o mais preocupante é que estas fraquezas estão a afectar simultaneamente todos os sectores da economia. Enquanto o FMI revê em alta o crescimento da França, Itália ou Portugal, revê em baixa o da Alemanha.
No mês de Maio, pela primeira vez em 30 anos, a Alemanha registou um défice comercial.
Devido em parte às regras estritas do défice zero, houve um escasso investimento em infra-estruturas. O sector de produção de bens industriais ainda pesa 20% do PIB, enquanto nos EUA representa 11% e no Reino Unido, 9%. A digitalização das empresas e da administração pública está muito atrás das economias comparáveis. Há falta de mão-de-obra qualificada, apesar da abertura maior à imigração. "Merkel ainda se referia à Internet como ‘novo território’ em 2013", lembrava a Economist.
A Alemanha conseguirá dar a volta. Mas, como também refere a revista britânica nas páginas que dedica à Alemanha no seu último número, vai levar tempo e exigir mudanças e sacríficos. Os anos de Merkel não prepararam os alemães para ambas as coisas. Nem, muito menos, para o aumento acelerado da despesa militar, que Olaf Scholz já anunciou e que é inevitável.
"Graças a Vladimir Putin, a Alemanha acordou", resume a Economist. Mais uma consequência indesejada e imprevista da guerra contra a Ucrânia, para além do reforço da NATO e da União Europeia.
A Europa continua a precisar da Alemanha – uma Alemanha que queira desempenhar um papel liderante e que seja capaz de o fazer. Desde que os alemães consigam atravessar o Inverno sem desistir do apoio à Ucrânia e da solidariedade europeia.»
Teresa de Sousa
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