20.8.22

Não somos assim tão racistas

 


«Quando se fala de racismo em Portugal, há sempre alguém que critica o “exagero”, o “despropósito” e a “perda de tempo”. Noutros lugares o racismo “é pior” e, como é sabido, temos “problemas bem maiores”.

A técnica é conhecida e de aplicação generosa:

— O racismo aqui não é assim tão mau — nos EUA é pior (e temos o problema da desigualdade).

— O risco de pobreza e exclusão social não é assim tão alto — na Irlanda é pior (e temos o problema da TAP).

— As nossas crianças não são assim tão más a Matemática — em Espanha são piores (e temos o problema do novo aeroporto).

— As mulheres portuguesas não ganham tão menos do que os homens — na Estónia é pior (e temos o problema das listas de espera nos hospitais).

— As nossas casas não são assim tão geladas no Inverno — na Lituânia é pior (e temos o problema da falta de creches).

— As nossas elites não são assim tão fracas — na Letónia são piores (e temos o problema da falta de habitação).

— A nossa economia não é assim tão pouco inovadora — na Polónia é pior (e temos o problema dos incêndios).

— Não há assim tantos portugueses infelizes — na Argentina há mais (e temos o problema da mobilidade urbana).

— O desemprego jovem não é assim tão alto — em Espanha é pior (e temos o problema da reindustrialização).

Etc.

Há sempre problemas mais graves do que aquele de que estamos a falar. Foi assim durante anos com temas ridículos como a violência doméstica, a pedofilia na Igreja, a misoginia no mercado de trabalho, a saúde mental, o ambiente.

Coisas diferentes que têm em comum terem sido promovidas a problemas graves. Isso apesar de nem todos os maridos baterem nas mulheres, nem todos os padres fazerem sexo com menores, nem todos os patrões discriminarem as mulheres, nem todos termos doenças mentais e nem todos misturarmos o lixo no mesmo balde.

Os que falaram antes de tempo sobre esses cinco problemas, quando eram vistos como residuais, exagerados e uma distracção do que realmente importava, bateram com o nariz na porta e ouviram o habitual “não há pachorra”.

Com o racismo é igual. Somos óptimas pessoas e a nossa colonização não foi tão brutal quanto isso. Há casos de racismo? Sim, mas são ovelhas negras e há racismo em todo o lado, até em África, entre os negros. A conversa vai sempre para aí.

Vi há dias que o antigo jogador de futebol brasileiro Mário Aranha criou uma escala de tolerância para os insultos racistas.

Em 2014, no final de um jogo da Copa do Brasil, Aranha tinha a bola e parecia estar a querer ganhar tempo para a sua equipa não correr o risco de sofrer um golo. A claque adversária, do Grémio, não gostou e começou aos gritos. “O que aconteceu?”, perguntou um jornalista no fim. A resposta foi esta:

— Eu estava no gol. A torcida xingar e pegar no pé é normal. Mas depois começaram com palavras racistas: ‘preto’, ‘preto fedido’, ‘seu preto’, ‘cambada de preto’, ‘bando de preto’, essas coisas. Até aí... fiquei nervoso, mas estava-me segurando. Mas quando começou aquele corinho de ‘macaco’... Fizeram rápido e pouco, para não dar tempo de filmar. Eu pedi para o câmara: ‘Filma lá os caras.’ Mas ele não virava a câmara. Quando ele foi filmar, já tinha acontecido. Fico nervoso, fico puto. Perdão pela palavra, mas dói.”

Repare: gozam com ele e Aranha não liga. Gritam “preto” e Aranha enerva-se, mas aguenta. Isto apesar de não haver ninguém no Brasil — e em Portugal — que não saiba que a palavra “preto” é um insulto. Como ele continuou a jogar, a plateia subiu de tom e juntou-se num coro a gritar “macaco”. Repare noutra coisa: como sabem que é um insulto racista ofensivo e punível pela lei brasileira, as pessoas cantam “macaco! macaco!” só uns segundos e param. A ideia é dificultar a vida a quem os possa querer apanhar — e filmar — no meio da multidão. Recomeçam e param, recomeçam e param. Nesse jogo de 2014, uma rapariga acabou por ser apanhada, pediu desculpa e chorou ao lado do advogado. “Não sou racista, eu juro que não sou racista.”

Há dois anos, a polícia de Londres também pediu desculpa à atleta britânica Bianca Williams, mulher do atleta português Ricardo dos Santos, do Benfica. Iam os dois no carro, mandaram-nos parar e acabaram algemados. Um polícia disse que ele cheirava a marijuana. Foi uma cena triste. Num vídeo, ouve-se Williams a gritar: “O que estão a fazer?! Nós não fizemos nada! Temos o nosso bebé no assento de trás!” Por acaso são os dois negros. Como têm um carro caro, os polícias devem ter pensado que eram traficantes de droga. Porquê pará-los se não estavam numa operação stop e o casal não estava a fazer nada de ilegal, nem sequer suspeito?

Esta semana, voltou a acontecer o mesmo. A polícia de Londres mandou parar o atleta português. Dos Santos não parou logo porque não percebeu o que se estava a passar — o carro da polícia aparece do nada à sua frente e só aí liga as luzes azuis — e porque sabia que à frente havia um lugar mais seguro. Numa entrevista ao Good Morning Britain, Dos Santos explicou que quis parar onde houvesse mais luz e mais pessoas. Queria testemunhas. Disse também que, desde 2020, sempre que um polícia passa por ele na estrada, pensa: “Será que vou ser parado?” O atleta tem um carro de atleta, logo, apetrechado com câmaras de vídeo, neste caso uma coisa útil.

Como há muitos polícias britânicos que não são racistas, mais valia falar-se da inflação do Reino Unido, que já vai nos 10%.»

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1 comments:

BELIAL disse...

O PRECONCEITO, É UNIVERSAL E IMPORTAL.