@David Brown
«Quem é realmente Xi Jinping? O líder comunista chinês? Um ditador nacionalista com desígnios imperiais? Um herdeiro do Confúcio? Um seguidor de Han Fei? Ou tudo isto ao mesmo tempo? O XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), em que Xi Jinping deverá ser reeleito para um terceiro mandado como secretário-geral, começa no domingo em Pequim e pode ajudar-nos a decifrar o enigma chinês.
Entretanto, foi hoje posto à venda em Portugal o livro Na cabeça de Xi, de François Bougon, antigo jornalista do Monde e especialista da Ásia — Livros Zigurate, tradução de Carlos Vaz Marques. Percorre um largo conjunto de temas em torno do pensamento do líder chinês. Esta newsletter não é uma recensão. Interessa-me apenas focar uma questão relativamente antiga: a relação do marxismo com a tradição cultural chinesa.
Lembra Bougon que, em Novembro de 2013, o novo secretário do partido, Xi Jinping, foi muito longe na reapropriação da herança confucionista, citando lado a lado no mesmo discurso Marx e Confúcio. Afirmava que no início do século XXI, a "harmonia social", tema bem confuciano, e a "energia comunista" deviam ser postas ao serviço do "socialismo com características chinesas". Não era original. Esta reapropriação, contra o pensamento de Mao que execrava Confúcio, começou a ser feita por Deng Xiaoping, Jiang Zemin e Hu Jintao.
Corresponderá a uma necessidade da sociedade chinesa. Nem sempre foi assim. Para os revolucionários marxistas, a persistência da ideologia confuciana era a razão profunda do atraso chinês. Xi vai fazer uma inversão total e transformar os velhos clássicos no cimento do novo nacionalismo chinês. "Confúcio torna-se membro do partido", ironiza Bougon. Passou também o tempo do Pequeno Livro Vermelho, de Mao, substituído pelas Conversações de Confúcio.
Antes de mais, Xi afirma-se como o "anti-Gorbatchov". O PCC estudou obsessivamente o processo da queda da União Soviética. Disse Xi, em 2013, numa reunião plenária do comité central: "Porque é que o Partido Comunista da União Soviética perdeu o poder? (…) Entre as principais razões, porque a luta ideológica era intensa, porque a história da Rússia e do PCUS foi completamente ignorada, porque Lenine foi rejeitado, tal como Estaline, porque o niilismo histórico fez o seu trabalho".
Por isso, Xi procede a uma "re-maoização de fachada, porque não se trata de regressar à colectivização e à revolução permanente que desestabilizou a sociedade sob liderança de Mao". O antigo Grande Timoneiro deve, no entanto, ser citado em todos os discursos. Ao contrário da URSS, os velhos chefes continuam a ser venerados e a sua mera crítica pode ser judicialmente punida. Síntese disto tudo: os dois lugares obrigatórios de peregrinação dos chineses são o templo de Confúcio e o mausoléu de Mao.
A verdadeira ameaça
Depois da morte de Mao, o partido perde a dinâmica da revolução permanente. Perante os novos desafios com que o partido se debate, "Xi está bem ciente de que deve ser capaz, se quiser exaltar a fibra nacionalista, de contar uma ‘história chinesa’. Neste contexto, a cultura tradicional é-lhe muito útil". O renascimento confucionista está intimamente ligado ao "renascimento chinês", explica um intelectual.
"Mas de que confucionismo falamos? Certamente não daquele que estruturou a China imperial. Tal como na sua versão popular, o confucionismo do Partido Comunista apagou todos os aspectos mais críticos desta escola de pensamento." O autor cita a sinóloga Anne Cheng, que fala num autoritarismo paternalista. "Permite aos líderes que digam: a China não é uma ditadura nem um regime autoritário, é um regime confucionista."
Sublinhando sempre que Xi Jinping respeita e admira Confúcio, há autores que pensam que ele está muito mais próximo de outro pensador, Han Fei, criador da "escola legalista". Nos antípodas de Confúcio, a sua doutrina permanece influente: "A primazia do medo, da força e do controlo ao serviço das autoridades é algo que até hoje está profundamente enraizado na consciência política chinesa. (…) A autoridade é uma justificação por si só".
"Em muitos aspectos, a China de hoje é, de facto, um yifazhinguo", ou seja, um "país governado pela lei, mas no sentido legalista do termo. Não se trata de forma nenhuma de um ‘Estado de Direito’, conceito ocidental odiado na China de Xi Jinping — mas de um Estado que pode perfeitamente ser repressivo e não reconhecer os direitos individuais".
Qual é a verdadeira ameaça? "Pode ser que Xi, querendo fazer do seu país uma potência industrial de primeiro plano em 2049 (ano do centenário da fundação da República Popular da China), esteja à beira de desencadear forças que se voltarão contra ele. Porque uma China criativa e inovadora poderá não se contentar com a actual situação e apoiar reivindicações por reformas políticas. Com que amplitude? É disso, em parte, que depende o destino do ‘novo imperador’".
O XX Congresso do PCC vai reeleger Xi para um terceiro mandato. Quanto tempo permanecerá no poder? Ironiza Bougon: "À força de não querer ser Gorbatchov, Xi Jinping poderá vir a ser o próximo Brejnev".»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 13.10.2022
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