9.10.22

Consolida, filho, consolida

 

«Foi em Fevereiro de 1979 que José Mário Branco escreveu, numa noite e de rajada, a sua ode triunfal: o FMI. Se não conhece, leitor, por favor vá ao Youtube: é só das coisas mais incríveis que foram feitas em português. É um monólogo de teatro genial, como quase tudo o que saía da cabeça, da voz e das mãos do grande "Zé Mário", o nick que os amigos e os admiradores que não o conheciam de lado nenhum lhe davam.

Lembro-me de, em miúda, ouvir várias vezes o FMI do José Mário Branco e não perceber exactamente aquela parte em que ele diz "consolida, filho, consolida", é preciso "ganhar forças para consolidar", convencida que era uma metáfora de qualquer coisa que me escapava. Na verdade, não sabia — e só muito mais tarde vim a saber — o que era consolidação orçamental, um palavrão da macroeconomia que não faz parte da linguagem corrente das pessoas comuns.

Quem está empenhadíssimo em "consolidar" e "ganhar forças para consolidar" é o Governo, que apresentou hoje aos partidos o cenário macro-económico. Há razões para ficarmos impressionados.

Com uma crise iminente, o Governo socialista quer "consolidar" a todo o vapor, reduzir 0,9% no défice num ano de crise, guerra e inflação. Se nos lembrarmos bem, os argumentos são semelhantes ao dos "grandes castigadores" da crise financeira que fez a troika entrar em Portugal em 2011.

Só falta acrescentar o "Ai aguenta, aguenta", de Fernando Ulrich e "os portugueses devem ser menos piegas" de Passos Coelho para uma irritante sensação se instalar desagradavelmente: a de que o PS, caso tivesse ganho as eleições de 2011, teria feito precisamente o mesmo que Passos e Portas.

Afinal, a maior vitória estratégica do PS nos últimos anos foi ter convencido o país todo de que não tinha nada a ver com o memorando da troika assinado por um Governo PS.

Onde Passos era bruto, o PS é mais "fofinho". Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, justificou hoje os objectivos de redução de dívida e do défice num momento aflitivo para as famílias: "Para 2023, é muito importante dizê-lo, a estabilidade e a confiança precisam mesmo de contas certas. Voltaremos a ter um Orçamento de Estado (...) com uma dívida pública mais baixa, na ordem dos 110%, e um défice orçamental que se estima abaixo de 1%, em torno de 09,9%".

Por muitas críticas que o PSD faça a este Orçamento — nomeadamente o facto do excedente da cobrança de impostos não estar a servir para ajudar as famílias com menores rendimentos — é óbvio que quer consolidar o mais possível. "Para o PSD é muito importante que se continue a reduzir o défice e a dívida pública, mas a ter uma consolidação orçamental estrutural", disse Miranda Sarmento, no fim da reunião com Fernando Medina e Ana Catarina Mendes. Para o novo líder parlamentar do PSD, a redução do défice desde que António Costa se tornou primeiro-ministro "foi meramente conjuntural".

Os antigos "parceiros" que levam António Costa pela primeira vez ao cargo de primeiro-ministro estão naturalmente desiludidos com a "obsessão com o défice". Como disse a nova líder parlamentar do PCP, Paulo Santos, "há uma obsessão pelas contas certas (…) Neste momento, face ao contexto económico e social, é essencial proceder à recuperação e valorização dos salários e das pensões, ao controlo e fixação de preços de bens essenciais, à tributação dos lucros dos grupos económicos e reforço de serviços públicos, designadamente na saúde e educação".

O outro ex-partner, o Bloco de Esquerda, também lamentou o actual cenário e mostrou saudades de "um outro PS" que algum dia existiu, nem que fosse para formar a geringonça e conseguir chegar ao Governo. "O Governo colocou na questão da dívida uma das matérias fundamentais, curiosamente num contexto em que outros países não estão a ter essa prioridade, porque reconhecem o óbvio e era algo que o PS reconhecia até alguns anos atrás: quando a economia está frágil – e a economia pode ficar frágil porque as famílias não têm dinheiro – as dívidas públicas aumentam porque as contas públicas dependem da dinâmica económica".

Não sei se o eleitorado socialista, que acabou de dar a maioria absoluta ao PS, vai adorar este "consolida, filho, consolida", que já não é interpretado por José Mário Branco, já não é um monólogo, mas um diálogo sem humor produzido por Fernando Medina e António Costa. O cenário não é animador.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 07.08.2022
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