7.8.21

Queridas Autárquicas



 

Era tão giro quando veio para Lisboa com 10 aninhos! Para quê usar uma fotografia com 41?
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É tão bom, não foi?

 

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Caetano Veloso

 



79, hoje.
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Trabalhos de casa

 


«O tema laboral não será muito estival, mas é nele que pensamos agora. E a culpada é uma e só uma, Patrícia Mbengani Bravo Mamona, a jovem de 32 anos que se triplossaltou ao comprido por 15,01 metros de distância, o que é obra, trazendo para esta sua casa, que é nossa, que é Portugal, uma medalha de prata. Com isso, elas as duas, a prata e a Patrícia, puseram aos triplos saltos os nossos corações, que tão gastos andam à conta desta covid, pelo que muito obrigado, Mamona.

Há uns dias, antes do histórico salto a três tempos, deu Patrícia Mamona uma entrevista a semanário de grande expansão, na qual recordou aos incautos e madraços o trabalho que lhe dava conseguir pular daquela forma assim, a grande forma que é dela, só dela, e por isso mereceu do jurado a prata. A quem a quis ouvir, disse Mamona hic et nunc que "para mim, um centímetro são cinco anos de trabalho", frase que desperta assombro, é claro, pela fibra demonstrada, pela determinação e autodisciplina necessárias para empenhar tanto em tão pouco. É que, bem vistas as coisas, cinco anos de vida sempre são, em direitas contas, 1826 dias, 43 824 horas, 2,629 milhões de minutos e uma grande enormidade de segundos (157 766 400, para sermos precisos). Para um centímetro só, é muito tempo, dá um ano de trabalho para dois milímetros de salto. Mesmo descontando o exagero da atleta e o facto de ela estar a falar metafórica e alegoricamente, impõe-se a fatal pergunta: para dez milímetros, não mais do que isso, valerá a pena tanto esforço? Será isso justo e humano?

Sem querer estragar a festa da prata, sempre devemos lembrar que, nestas Olimpíadas pandémicas, houve uma menina ginasta, e famosa, que desistiu da compita por não aguentar mais pressão. Com apenas 24 anos, Simone Biles já era a ginasta americana mais premiada da história dos EUA, com um total de 30 medalhas repartidas entre os Jogos Olímpicos e os Campeonatos Mundiais de Ginástica Artística. Agora, em Tóquio, a questão era uma, só uma: ultrapassar as 33 medalhas de Vitaly Scherbo, o mais medalhado ginasta da história dos Jogos, com seis medalhas de oiro, quatro delas conquistadas num só dia. Simone Biles teve a coragem e a força de dizer não, esclarecendo que a sua saúde mental e o seu bem-estar eram mais importantes do que todas as medalhas que tivessem para lhe dar. "Temos de proteger as nossas mentes e os nossos corpos e não fazer aquilo que o mundo espera de nós", afirmou a intrépida garota. Nós, que a ouvimos, andamos tão enfronhados e tão embrenhados nesta coisa das medalhas e dos recordes que logo nos interrogámos se, ao falar assim, a miúda não estaria tontita, ou pior. Nada disso, Simone Biles foi de uma lucidez tremenda, acreditem.

Não é grande originalidade dizer-se que, desde há muito, o desporto está desvirtuado da sua principal missão, que é fazer o bem ao corpo e ao espírito e, com isso, favorecer sociedades mais sadias e mais felizes de si. Contudo, talvez ainda não nos tenhamos apercebido de que, nos nossos dias, as actividades desportivas copiam e reproduzem o que de pior existe no mundo do trabalho e das profissões. Hoje, o otium mimetiza o negotium, amplifica as suas taras e os seus tiques, quando deveria ser justamente o contrário; as sociedades é que deveriam ser beneficiadas pelo desporto e pelo lazer, não estes a serem contaminados pelo frenesi competitivo que por aí grassa, sem graça. Andarem jovens a matar-se por uns centímetros e por umas medalhas é algo que, além de não lhes fazer bem ao espírito, nem sequer ao corpo, corrompe aquilo que é, ou deveria ser, a função desportiva. Simone Biles, reparem, já tinha 30 medalhas ao peito, mas não, isso não era suficiente, impunham-lhe mais recordes, sempre mais e mais metas, estatísticas, vãs glórias.»

(Excerto)

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6.8.21

Tu n'as rien vu a Hiroshima

 


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06.08.1966 – Chamaram-lhe «Salazar»

 


Mas com a sagacidade que o caracterizava, o presidente do Conselho de Ministros previu o que viria a acontecer alguns anos mais tarde. Antes do início das cerimónias da inauguração, ao ver o seu nome num dos pilares, terá perguntado: «As letras estão fundidas no bronze ou simplesmente aparafusadas? É que, se estão fundidas no bloco de bronze, vão dar muito trabalho a arrancar.» Deram algum trabalho, sim, mas caíram.


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Jogos Olímpicos e Hiroshima

 


O que interessa é competir e distribuir medalhas! Hiroshima? Who cares…

«O Japão homenageou nesta sexta-feira (6) as vítimas da bomba atómica em Hiroshima lançada em 6 de Agosto de 1945, com a polémica este ano sobre a recusa do Comitê Olímpico Internacional (COI) em respeitar um minuto de silêncio durante os Jogos Olímpicos de Tóquio.»

P.S. – Pergunta «inocente»: se os Jogos tivessem lugar nos EUA, num 11 de Setembro, teria o Comité Olímpico a mesma decisão?
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06.08.1945 – Hiroshima: os relógios pararam às 8:15




Foi nesta data que a humanidade viveu um dos dias mais terríveis do século XX. Quem alguma vez passou por Hiroshima não saiu de lá como entrou, ficou certamente marcado para sempre como eu fiquei.

Se eu apenas pudesse guardar duas fotografias, dos milhares que fui tirando por esse mundo fora, escolheria estas. De má qualidade, sem dúvida, mas que me recordam dois objectos expostos no Museu de Hiroshima, que nunca mais esquecerei. Numa, um relógio que parou à hora exacta em que a bomba explodiu. A outra fala por si.





Parque Memorial da Paz de Hiroshima - algumas imagens:










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5.8.21

Leve, leve…

 


Perto da minha casa, há dias que se cortam ramos de algumas (poucas) árvores altas, com desvios de trânsito e proibições várias. Creio que a acção está a durar tanto como a construção de um novo arranha-céus em Pequim. Somos assim.
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A saltar é que somos bons

 


Saltemos que bem precisamos.
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Parábola das sandálias (ou a importância da oposição)

 


«Quando o meu filho faz birra porque quer ir para a praia com meias e sapatilhas em vez de levar as sandálias do Homem-Aranha que seriam muito mais fáceis de calçar e descalçar num mundo de areia assaltam-me dois sentimentos contraditórios: uma ira imensa, porque até foi ele que escolheu as sandálias na loja; e um orgulho desmedido, por ver que segue as minhas pisadas e defende o uso de meias e sapatilhas nas idas à praia, ao contrário da maioria absoluta dos veraneantes.

E quem diz que a maioria tem sempre razão? Esse é, aliás, o calcanhar de Aquiles da democracia. Mesmo quando a maioria está errada, os poucos que a contestam têm de submeter-se à sua vontade. E tão importantes são as minorias para acautelar os desmandos das maiorias, que por mais absolutas que sejam não têm o monopólio da razão.

Com as autárquicas à porta, é natural que a preocupação primordial dos eleitores seja a escolha de um presidente de Câmara. Mas não menos importante será a oposição com que os vencedores terão de conviver e trabalhar durante o mandato. Uma oposição forte faz um executivo forte. Torna-o mais atento, menos displicente, obriga-o a preparar melhor os dossiês.

A tese de que só com uma maioria absoluta é possível ter a estabilidade necessária para levar por diante as políticas sufragadas pelos eleitores convence pouco. Boa parte das decisões nos executivos até são tomadas por unanimidade ou sem sobressaltos de maior. É nos grandes projetos, nas matérias com mais impacto na vida dos cidadãos, que muitas vezes surge a discórdia. Um problema? Não creio. Porque é precisamente nestes casos que a discussão mais faz sentido. Um executivo de maioria absoluta, não raras vezes, envereda por um simulacro de debate, ciente de que, no final, a sua vontade prevalecerá, por muito benévolos que sejam os contributos da oposição.

É por isso que desconfio das maiorias absolutas e discordo da teoria dos executivos monocolores que alguns defendem em nome da alegada estabilidade.

No entanto, é evidente que numa câmara de maioria relativa, para que não se atinja o caos, exige-se uma oposição adulta, com noção de que o seu contributo é essencial, mas que continua a estar em minoria. Em suma, não podemos ter uma oposição birrenta, a fazer barulho só porque sim. Na maioria das vezes, será mesmo preciso usar as sandálias e esquecer as meias e as sapatilhas. Mas haverá com certeza ocasiões para calçar as sapatilhas e outras até em que a melhor solução será juntar meias e sandálias. O importante é que os munícipes estejam bem calçados.»

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4.8.21

04.08.1578 – Lá se foi Alcácer-Quibir

 


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Da maldade

 


Nos primeiros tempos da pandemia, percorria o mundo uma esperança de que todos saíssemos dela «melhores», que ao drama inesperado se seguisse uma espécie de Plano Marshall de solidariedade, de um «novo normal» mais pacífico e solidário. Creio que já percebemos que não será o caso: as desigualdades já cresceram e crescerão ainda mais, deseja-se ardentemente voltar ao «velho normal» tão depressa e exageradamente quanto possível.

Na reduzida bolha que as redes sociais representam, tudo isso está a ter eco: cavaram-se trincheiras inimagináveis, a agressividade aumentou e de que maneira, muitas pessoas razoáveis tornaram-se mesmo «más», locais civilizados tornaram-se absolutamente agrestes.

Nem estou a distinguir esquerdas de direitas. Tenho amigos de direita com quem convivo bem porque acrescentam valor ao que defendem, mesmo que eu deles discorde, mas a grande maioria limita-se a partilhar memes e textos que nem analisa, é tudo meia bola e força e «aí vai». E, à esquerda, há vacas e bois sagrados em que não se pode brincar nem com um emoji, sem levar com um «Idiota!» nas trombas.

La nave va
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O que é descolonizar e quando acaba?



 

«Dos três “Ds” do 25 de Abril — Democratizar, Desenvolver, Descolonizar — a descolonização foi tida como tendo sido o processo que ficou terminado mais rápido. Como lembrou Pedro Aires Oliveira num texto aqui no PÚBLICO, rapidamente se passou da ideia da “descolonização exemplar” à da “descolonização possível”, mas a ninguém oferecia dúvidas que a descolonização, a bem ou a mal, estivesse feita. O debate sobre a descolonização poderia durar, mas o facto estava consumado com a independência das colónias em 1975 (e o reconhecimento da independência unilateral da Guiné-Bissau) e agora haveria que passar aos Ds da democratização, que se prolongou por mais uns anos, e ao do desenvolvimento, que é um processo prolongado e de final em aberto.

No entanto, a ordem dos fatores está invertida. Aquilo que acabou em 1975 foi a Guerra Colonial, iniciada em 1961, faz agora sessenta anos. Mas há pelo menos dois outros processos relacionados com a descolonização que são de longa duração. Um deles tem a ver com o que Medeiros Ferreira — que inventou a fórmula dos 3Ds — chamava de “o fim do ciclo imperial”. O ciclo imperial português durou mais de quinhentos anos. A sua duração foi de mais de metade da própria história do país enquanto nação independente. Objetivamente, a nossa inserção no mundo — económica, política e por aí afora — foi multicontinental durante todos estes séculos. Passar do “ciclo imperial” para o “ciclo europeu” foi uma basculação feita em poucos anos, mas de consequências de longo prazo. Numa frase, Portugal iniciou aí a procura de um novo lugar no mundo. E isso não se faz de um dia para o outro: implica uma alteração profunda de uma economia de base colonial, com matérias primas extraídas de outros continentes e mercados cativos para os produtos da “metrópole” e que teve de passar para uma pequena economia a precisar de procurar apenas nos limites do seu exíguo território e dos seus recursos humanos uma forma — a única forma — de se posicionar na grande economia aberta europeia e na globalização.

Claramente, essa procura de um novo lugar no mundo ainda não acabou, ou não estaríamos todos a falar dos dinheiros europeus e da necessidade de os usar para finalmente fazer a viragem de modelo de desenvolvimento de que precisamos para o país.

Mas há ainda um segundo aspecto da colonização e da descolonização que deixou marcas, e é o mais importante. É que a colonização e a descolonização se fez sobre pessoas reais, pessoas que viveram e que morreram no processo e muitas vezes por causa dele. Colonizados, colonizadores, combatentes da Guerra Colonial de um lado e de outro, retornados, emigrantes e imigrantes da ex-metrópole e das ex-colónias, os filhos e filhas, gerações que podem seguir até à fonte dos factos do colonialismo e do império as causas para consequências muito concretas nas suas vidas de todos os dias. Claramente aí também precisamos de descolonizar.

Como o democratizar e o desenvolver, o descolonizar é um processo em aberto. Só acaba, no fundo, quando não sentirmos que precisamos de fazer a pergunta.»

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3.8.21

03.08.1968 – and Pardon my French…


Ricardo Salgado

 


Esta vida ingrata! Acontece aos melhores.
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Compre ações da Pfizer, pagamos todos



 

«As recomendações do mercado são para comprar Pfizer. Não a vacina, mas a ação cotada em bolsa. Os resultados agora publicados revelam que a farmacêutica registou receitas de vacinas covid-19 de oito mil milhões de dólares no segundo trimestre, o que levou a um aumento dos lucros de 59%.

As previsões para o total do ano foram assim ajustadas, de 26 mil milhões para 33,5 mil milhões de dólares. E com o aumento da variante delta, as perspetivas não podiam ser melhores para a Pfizer que, em parceria com a BioNTech, está muitíssimo bem posicionada para colher os benefícios da necessidade de novas vacinas.

Apesar do período feliz que atravessa desde o início da pandemia, o mercado considera que a Pfizer está subvalorizada. Isto porque o seu valor de mercado, estimado em 247 mil milhões de dólares, aumentou mas não disparou, como o de outras farmacêuticas do negócio covid-19. É o caso da Moderna, que viu o preço das ações aumentar, de 21 dólares, em março de 2020, quando a pandemia se tornou oficial, para 354 dólares, registados na semana passada.

Hoje [segunda-feira], enquanto escrevo, o "Jornal de Negócios" noticia ao minuto o estado dos mercados: "Wall Street cheira novos recordes com plano Biden a dar força... entre as empresas, o destaque vai para a BioNTech (5,1%), para a Pfizer (1%) e para a Moderna (2,5%)". O destaque das farmacêuticas tem uma explicação. O "Financial Times" tornou público neste domingo que ambas as empresas conseguiram renegociar os seus contratos com a União Europeia. A vacina da Pfizer custa agora mais 25% e a da Moderna mais 13%, estando garantida a provisão de 2100 milhões de doses até 2023. Assumindo de forma simplista que a Pfizer fornece metade destas vacinas, o aumento de 4 euros no seu preço unitário produzirá receitas adicionais de 4200 milhões de euros. Mas há também novidades do outro lado do Atlântico. Há uns dias, um site americano de investimentos falava nos "200 milhões de razões" para comprar ações da Pfizer, depois de o Governo de Biden ter anunciado a aquisição de mais 200 milhões de doses. Agora, o "Wall Street Journal" conta como o regulador americano está pressionado a aprovar novas vacinas da farmacêutica.

Para a Pfizer, para a BioNTech ou para a Moderna, assim como para os seus acionistas, as boas notícias parecem não ter fim. No extremo oposto estão os estados, os que podem pagar as vacinas e ainda mais os que não as podem pagar, sendo assim impedidos de defender a sua população.

Depois de sinais nesse sentido por parte dos EUA, a UE poderia ter levantado as patentes. Não o fez e nisso foi apoiada pelo Governo português. Hoje, pagamos todos mais pelas vacinas, não porque a sua tecnologia tenha mudado substancialmente, mas porque o poder negocial destes fornecedores aumentou. Boas novas para a Pfizer, péssimas notícias para os povos.»

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2.8.21

Zeca – Seriam 92

 


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Jogos e anti-racismo

 


Sempre que um português «colorido» ganha uma medalha nos Jogos Olímpicos, há uma borboleta anti-racista que bate as asas no coração da pátria – durante alguns dias, claro.
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Fraternidade, liberdade, igualdade



 

«Numa recente peça de reportagem da Euronews, um professor universitário francês, manifestante antivacinas, expõe assim o seu caso: “Sou contra as vacinas por razões médicas — não as considero nem seguras nem eficazes — e também por razões políticas, porque nos estão a ser impostas. Sendo contra a vacina, só posso ser contra a vacinação obrigatória.” Tem a sua lógica, este homem quer ser livre de desconfiar e de desobedecer e, em última análise, age de acordo com o mote, Liberdade, igualdade, fraternidade, em que a liberdade surge — não por acaso — escrita em primeiro lugar.

Os franceses amam a liberdade, sabemo-lo bem desde a Revolução Francesa. Mas liberdade para não confiar na produção de conhecimento não parece uma causa iluminista, ou sequer razoável, muito menos durante uma pandemia. Outro argumento ouvido entre os que ainda não se vacinaram é que primeiro vão ver como é que nos corre a nós e depois, com calma, decidem – ou seja, à minha frente vai toda a humanidade, tipo ratos; na eventualidade de correr bem, segue-se então este ser humano, avisado, lúcido e singular que sou eu. Constitucionalmente é-se livre de ter esta posição; as pessoas são livres de se excluírem das equações até que estas apresentem resultados seguros. Mas arriscam-se a que, no plano existencial, essa auto-exclusão possa ser considerada uma falha moral, se não mesmo cobardia, tout court.

A definição de liberdade é um trabalho em processo, mas, de forma simplificada, passa pela possibilidade de se fazer seja o que for, desde que não prejudique os outros. Aqui, duas posições: por um lado, aqueles que consideram que ninguém lhes pode impor uma vacina, porque presumem que isso os vai prejudicar e, por outro, aqueles que pensam que esses outros, ao não se vacinarem, os prejudicam. Se a primeira posição está por verificar, a segunda é já hoje uma certeza.

Este modo de discordar por presunção é inquietante, porque raia o obscurantismo, num momento em que é precisa tanta claridade. Trata-se agora de reunir evidências e agir de acordo, não de fazer suposições, muitas com aspectos risíveis. Coisas do tipo a autoria disto tudo é de Bill Gates; a vacina contém um chip para nos controlar (extraordinária, a capacidade de produzir tantos nanochips em tão pouco tempo); estamos debaixo de um sistema de vigilância implacável com um plano para nos subjugar – nunca se terá produzido tanta e tão má sy-fy.

Por outro lado, talvez as pessoas que não se querem vacinar estejam a fazer uma certa confusão entre liberdade e autonomia, na medida em que agem como se não estivessem enterradas até ao pescoço na tessitura do mundo, como todos estamos. E ainda bem que assim é: vivemos em rede e são extraordinárias as benesses que, em rede, proporcionamos uns aos outros, das infra às superestruturas.

Não creio que as pessoas que se opõem à vacinação vivam fora das redes de conforto que colectivamente criámos, é, aliás, na net que mais expressam o seu devir libertário. Beneficiam de vacinas que contribuíram para a erradicação de inúmeras doenças que mataram antepassados seus, mas desconfiam agora da celeridade do processo. Já me foi dito que “a comunidade científica no início da pandemia foi clara: uma vacina ia levar entre dois a três anos a encontrar, logo estas vacinas, criadas em tão pouco tempo, não são seguras”. Intrigada, pergunto porque é que a comunidade científica do início da pandemia merece mais respeito do que a atual, sendo a mesma. E aí a coisa adensa-se: há interesses diabólicos em curso, eu é que estou a ser naive, avisam-me.

A descoberta de uma vacina em tão curto período de tempo é entendida como uma perigosa precipitação e não como um feito extraordinário. É, aliás, frequente, entre muitas destas pessoas, que o sentido de urgência seja substituído por uma desaceleração em várias frentes: sair do mainstream; amar a natureza e viver de acordo com os seus ciclos; limitar e até proibir o uso do telemóvel; preferir de longe as leis do universo às da política.

Compreende-se que haja quem acredite numa outra ordem das coisas — com o seu quê de adorável —, mas o resultado prático, ainda que involuntário, é o abandono de todos os outros à sua sorte. Corre veloz um rio, cheio de gente vacinada e estas pessoas estão na margem a gritar-nos sobre os perigos da corrente. Teremos de encontrar tempo e energia para lhes gritar de volta, não para que se calem, mas para que se deixem de manias e mergulhem. É na corrente do rio que tudo acontece, até a contracorrente.

No filme de 2017 de Alexander Payne, Downsizing, um cientista norueguês inventou uma forma de encolher pessoas e coisas, numa tentativa de reduzir o impacto humano nos recursos do planeta. Mas esta miniaturização chega tarde, porque um envenenamento de metano compromete seriamente a atmosfera terrestre. A certa altura do filme, Matt Damon, que interpreta Paul, juntamente com Ngoc Lan (Hang Chau), uma invulgar parceira vietnamita, encontram uma comunidade de pessoas com um plano para salvar a espécie humana. Uma das personagens explica que cavaram “um túnel que conduz a um espaço de 1,6 quilómetros dentro da litosfera terrestre, isolado por uma camada dupla de Inconel 625, onde se criou um ecossistema habitável”. O grupo planeia ali permanecer durante cerca de oito mil anos, até que a atmosfera estabilize e a Terra se torne novamente habitável — assegurando assim a sobrevivência da humanidade. Convidados a juntar-se-lhes, Paul e Ngoc Lang discutem. Ele quer refugiar-se no túnel, ela opõe-se veementemente: “Aqui fora é que as pessoas precisam de ajuda, não no estúpido do buraco.”

Não revelarei quem vence a discussão, mas o que Ngoc Lang sugere a Paul é que fiquem cá fora a lutar por soluções comuns. Mais difícil ainda, ela tem a coragem amorosa de apostar na sobrevivência de todos — ainda que possa falhar, ainda que não se encontre uma solução e o envenenamento da atmosfera seja inevitável.

Para esta heroína, a fraternidade vem muito antes da liberdade de salvar o próprio coiro. Assim deveria ser para cada um de nós — e para os franceses, já agora. Enquanto perdemos tempo a bradar por liberdades individuais — enquanto, em vez de nos vacinarmos, entretemos a ideia de cavar túneis privados para lá enfiarmos um grupo de amados e conhecidos —, tudo em nosso redor grita, alto e bom som que, sem um amplo sentido de fraternidade e comunidade, estamos todos feitos — por igual.»

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1.8.21

Autárquicas – Marketing (2)



 

É só fazer as contas, como dizia o outro: se todos usarem ciclovias com um anito como o João, o futuro será mesmo verde!
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Agosto

 


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Autárquicas – Marketing

 


Nenhum partido precisa de um candidato apessoado como eu? Olhem que dava um belo outdoor, bem melhor dos que vejo por aí.
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A pandemia e a democracia



 

«Sabemos, desde o início, que a pandemia não atingiria, como não atingiu, todos os cidadãos em pé de igualdade. O discurso inicial que a catalogava como "democrática" servia o objetivo de submeter os mais atingidos, acantonando-os nas suas desgraças e agravando a sua descrença na democracia.

Foi o primeiro passo de um caminho de agravamento de desigualdades e injustiças. Daqui resultou um enfraquecimento progressivo da democracia.

As medidas de emergência e exceção chocaram, em muitos casos, com direitos e liberdades individuais e coletivas; a garantia de direitos fundamentais por parte do Estado foi posta à prova, nomeadamente na educação, na justiça, na segurança social, na saúde; há setores da economia que multiplicaram lucros, enquanto toda a reparação de prejuízos aos que foram afetados é entregue à responsabilidade do Estado; impuseram-se poderes unilaterais no trabalho que não podem ser a base da estruturação do novo normal; o enfraquecimento da participação cívica e política favorece forças e programas políticos conservadores e fascistas.

A expectativa de uma recuperação económica "imediata" depois da pandemia - por efeito de bazucas milagrosas - que faça tudo voltar ao normal precisa de ser questionada. É perigoso criarem-se expectativas infundadas. Primeiro, o rombo foi muito grande e a sua reparação será prolongada: a recuperação tem de ser feita, por um lado, através da retoma de atividades que tínhamos, mas buscando melhores posições nas cadeias de valor, por outro lado, com reconversões que consubstanciem já respostas a transições em curso, como a climática. Segundo, a recuperação da economia pode ser lenta e apenas parcial, por compromissos com dívidas acumuladas, por ausência de estratégias empresariais e de investimento privado, por excesso de expectativa no investimento público. Terceiro, porque voltar a produzir e vender não é necessariamente o mesmo que distribuir de forma equilibrada os proveitos da produção e das vendas.

As repercussões sociais do recuo da economia ainda não se manifestaram em toda a sua gravidade, e só virão à tona quando os apoios públicos cessarem por completo e a fatura do crédito se fizer sentir. Sendo um facto que a profundidade da crise social está muito para além dos impactos diretos da crise económica, é, contudo, uma ilusão considerar-se possível combater a pobreza com êxito, garantir proteção social digna, travar as desigualdades e o desemprego e evitar a emigração das gerações mais jovens, sem colocar no centro a valorização do trabalho, a melhoria dos salários e a criação de emprego mais seguro e com qualidade.

Alguns governantes, o presidente da República e líderes patronais continuam a impingir-nos aquela ilusão. Persistem em querer deixar a democracia à porta das empresas e dos serviços públicos, em secundarizar o contributo dos sindicatos, quer na vida das empresas e da Administração Pública, quer na construção dos compromissos coletivos em que se suportam as respostas a crises profundas.

Não se admite que continuemos com um profundo desequilíbrio de poderes entre trabalhadores e patrões (ou empresários), sem negociação coletiva a funcionar com equilíbrio e dinâmica, ou com ministros que, por incompetência ou birra, não dialogam com os sindicatos.

A maior luta contra o tempo que temos pela frente é mesmo a de travar o enfraquecimento da Democracia.»

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