7.8.21

Trabalhos de casa

 


«O tema laboral não será muito estival, mas é nele que pensamos agora. E a culpada é uma e só uma, Patrícia Mbengani Bravo Mamona, a jovem de 32 anos que se triplossaltou ao comprido por 15,01 metros de distância, o que é obra, trazendo para esta sua casa, que é nossa, que é Portugal, uma medalha de prata. Com isso, elas as duas, a prata e a Patrícia, puseram aos triplos saltos os nossos corações, que tão gastos andam à conta desta covid, pelo que muito obrigado, Mamona.

Há uns dias, antes do histórico salto a três tempos, deu Patrícia Mamona uma entrevista a semanário de grande expansão, na qual recordou aos incautos e madraços o trabalho que lhe dava conseguir pular daquela forma assim, a grande forma que é dela, só dela, e por isso mereceu do jurado a prata. A quem a quis ouvir, disse Mamona hic et nunc que "para mim, um centímetro são cinco anos de trabalho", frase que desperta assombro, é claro, pela fibra demonstrada, pela determinação e autodisciplina necessárias para empenhar tanto em tão pouco. É que, bem vistas as coisas, cinco anos de vida sempre são, em direitas contas, 1826 dias, 43 824 horas, 2,629 milhões de minutos e uma grande enormidade de segundos (157 766 400, para sermos precisos). Para um centímetro só, é muito tempo, dá um ano de trabalho para dois milímetros de salto. Mesmo descontando o exagero da atleta e o facto de ela estar a falar metafórica e alegoricamente, impõe-se a fatal pergunta: para dez milímetros, não mais do que isso, valerá a pena tanto esforço? Será isso justo e humano?

Sem querer estragar a festa da prata, sempre devemos lembrar que, nestas Olimpíadas pandémicas, houve uma menina ginasta, e famosa, que desistiu da compita por não aguentar mais pressão. Com apenas 24 anos, Simone Biles já era a ginasta americana mais premiada da história dos EUA, com um total de 30 medalhas repartidas entre os Jogos Olímpicos e os Campeonatos Mundiais de Ginástica Artística. Agora, em Tóquio, a questão era uma, só uma: ultrapassar as 33 medalhas de Vitaly Scherbo, o mais medalhado ginasta da história dos Jogos, com seis medalhas de oiro, quatro delas conquistadas num só dia. Simone Biles teve a coragem e a força de dizer não, esclarecendo que a sua saúde mental e o seu bem-estar eram mais importantes do que todas as medalhas que tivessem para lhe dar. "Temos de proteger as nossas mentes e os nossos corpos e não fazer aquilo que o mundo espera de nós", afirmou a intrépida garota. Nós, que a ouvimos, andamos tão enfronhados e tão embrenhados nesta coisa das medalhas e dos recordes que logo nos interrogámos se, ao falar assim, a miúda não estaria tontita, ou pior. Nada disso, Simone Biles foi de uma lucidez tremenda, acreditem.

Não é grande originalidade dizer-se que, desde há muito, o desporto está desvirtuado da sua principal missão, que é fazer o bem ao corpo e ao espírito e, com isso, favorecer sociedades mais sadias e mais felizes de si. Contudo, talvez ainda não nos tenhamos apercebido de que, nos nossos dias, as actividades desportivas copiam e reproduzem o que de pior existe no mundo do trabalho e das profissões. Hoje, o otium mimetiza o negotium, amplifica as suas taras e os seus tiques, quando deveria ser justamente o contrário; as sociedades é que deveriam ser beneficiadas pelo desporto e pelo lazer, não estes a serem contaminados pelo frenesi competitivo que por aí grassa, sem graça. Andarem jovens a matar-se por uns centímetros e por umas medalhas é algo que, além de não lhes fazer bem ao espírito, nem sequer ao corpo, corrompe aquilo que é, ou deveria ser, a função desportiva. Simone Biles, reparem, já tinha 30 medalhas ao peito, mas não, isso não era suficiente, impunham-lhe mais recordes, sempre mais e mais metas, estatísticas, vãs glórias.»

(Excerto)

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