«Uma das coisas mais absurdas e preocupantes por parte de Putin é o modo como tem agitado a ameaça da guerra nuclear. Bastava isso para o colocar no pedestal superior e único da “luta pela paz”, mas isso não acontece. “Ah” — dirão alguns dos meus amigos — “mas a NATO também as tem lá, porque não fala nelas? Não deixam de ser ameaçadoras.” Sim, tem, e são ameaçadoras, mas convenhamos que há uma diferença entre agitá-las nas declarações públicas e estar calados. “Manhosos é que eles são…” Sim, de novo, podem ser, mas há uma diferença, não há? Para a Paz.
Não é a guerra nuclear que é absurda e preocupante — é muito mais do que isso: é a facilidade com que se fala dela, porque isso diz muito sobre o grau de desespero de Putin. Esse desespero, que ele tem porque está tudo a correr mal, vem de ele saber que não há saída fácil para o erro calamitoso em que ele se meteu e meteu a Federação Russa. Mas, por muito paranóico que esteja, por muitas dúvidas sobre a sua saúde mental que existam, por muitos traços de personalidade autocráticos e violentos, ele não anda louco aos gritos pelos corredores do Kremlin e, se por acaso andar, alguém trata dele de forma pouco amável.
Putin sabe muito bem que a guerra nuclear é inganhável, sejam quais forem as circunstâncias. Ataquem primeiro ou depois, de surpresa ou com pré-aviso, não há qualquer maneira de obter vantagem num confronto nuclear. E nem sequer a modernização das armas nucleares introduz qualquer vantagem. Mesmo com as armas obsoletas do século XX contra o mais moderno arsenal de 2022, o resultado é o mesmo, aquilo que o acrónimo MAD, Mutual Assured Destruction, descreve desde os anos 50, destruição mútua assegurada. Ou seja, ninguém ganha.
As armas nucleares, ou melhor, termonucleares, têm evoluído, em particular os sistemas de detecção, as técnicas antimísseis, o comando e controlo, a sofisticação generalizada dos sistemas de armas, mas não é segredo para ninguém que evoluiu igualmente a capacidade para as disparar com tempos de resposta tão curtos que a resposta mais provável é que se eles disparam as deles, nós disparamos de imediato as nossas e fica tudo destruído pelo caminho. E os arsenais são mais do que suficientes para garantir a ultrapassagem de todos os “decoys” existentes e dar-nos o MAD certo.
Acresce que não há guerras nucleares moderadas, porque o uso de armamento nuclear táctico gera de imediato uma escalada de reposta. Não há conversas do tipo eu apenas atiro sobre Nova Iorque e tu atiras sobre Moscovo e estamos quites. O nuclear tem a característica de ser tudo ou nada, como aliás quem tem o controlo dos botões em Washington, Moscovo, Londres, Paris, Pequim, muito provavelmente Telavive, e mesmo as excepções até agora mais preocupantes de Pyongyang, Índia e Paquistão, também sabe.
Os protocolos de lançamento de mísseis nucleares na Rússia não são muito diferentes dos dos americanos, eventualmente com maior controlo dos militares, e não são a decisão de um homem solitário diante de um botão. Mais: esse homem ou esses homens sabem que, se carregarem no botão, morrem as suas famílias, os seus amigos, os seus próximos, e milhões de outros homens. Coisa trivial, quando muito suicídio pela bomba nuclear. En passant, como no xadrez, morrem também a Rússia, as paisagens familiares da Praça Vermelha, a Catedral de S. Basílio, a estátua do Cavaleiro de Bronze, as (os) bailarinas do Bolshoi, os mosteiros de Sergueiev Possad, o Transiberiano, o Hermitage, o Patriarca Cirilo, e muitos etc., embora admita que algumas destas coisas não lhe interessam muito. Mas, muito provavelmente, outras lhe interessam, morrem também os cantores de que ele gosta, o Valery Kipelov, o Vitas, a Dima Vilan, o Gregory Leps, desaparece o CSKA e o Lokomotiv, com os seus jogadores de futebol populares, o vodka fica contaminado e a sua jovem amiga que trabalhava nas galerias GUM e com quem dava “grandes passeios aos domingos” também desaparecerá no pó. Estou a falar do general que carregar no botão, metaforicamente, porque na realidade são vários botões, envelopes, malas e comunicações. E, mesmo no mais profundo dos bunkers, para quem tiver autoridade ou tempo de lá chegar, morre muito provavelmente ele próprio. É este o pequeno problema da guerra nuclear.»
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