10.5.22

Festejar a paz ou a guerra

 


«Falou-se muito nos últimos dias da diferença entre uma Europa Ocidental que celebra sobretudo a paz pós-Segunda Guerra Mundial e uma Rússia que faz gala em comemorar como se fosse hoje a vitória de 1945 sobre os nazis. Duas formas bem distintas de ver o 9 de maio, ainda por cima no atual contexto de guerra na Ucrânia, em que a União Europeia e a Rússia estão em lados totalmente opostos da barricada, mesmo sem se enfrentarem a tiro, naquele que é o mais sangrento conflito no continente em 77 anos e um alerta de que nada é definitivo.

Hoje é evidente que o nazismo foi derrotado graças à sua desvantagem avassaladora perante a ação conjugada dos Estados Unidos e da União Soviética a partir de 1941, com um grande contributo do Reino Unido, também o esforço da França Livre de De Gaulle e ainda, no teatro asiático, da China. Por alguma razão, ainda o Conselho de Segurança das Nações Unidas reflete esses cinco vencedores na sua hierarquia, todos eles, e mais nenhum, membros permanentes e com direito de veto.

Mas a Europa que emergiu da Segunda Guerra Mundial foi uma Europa dividida, mesmo que tardasse 16 anos a ser construído o Muro de Berlim que oficializou a tal Cortina de Ferro prevista bem cedo por Churchill. A Leste, sob liderança de Moscovo, capital soviética tal como desde 1991 é capital russa, ergueu-se um bloco comunista criado pela força. A Ocidente, e sem esquecer a importância da aliança com os Estados Unidos formalizada na NATO, criou-se gradualmente uma comunidade de países baseada na vontade de reconciliação, nomeadamente da França e da Alemanha. Com o passar das décadas, essa comunidade passou a dar pelo nome de União Europeia e, apesar da saída do Reino Unido e das reticências históricas da Noruega e da Suíça em integrá-la, é um sucesso tal que inclui países do antigo bloco comunista, até três antigas repúblicas soviéticas e agora tem mesmo de lidar com a candidatura de uma Ucrânia em rutura total com Rússia depois da invasão de 24 de fevereiro.

A Europa Ocidental festejou, pois, a paz, porque nela estão vencidos e vencedores da Segunda Guerra Mundial. Foi um feito derrotar o nazismo, mas talvez maior feito ainda tenha sido conseguir o maior período de paz na Europa em mil anos. A Rússia, que sob a forma soviética foi em termos humanos o país mais massacrado pela Segunda Guerra Mundial, celebrou a derrota do nazismo pelo valor desta, mas também por ter pouco mais, na atualidade, para celebrar. A Guerra Fria terminou em 1991 com a desagregação da União Soviética, e 2022 é um ano em que a Rússia faz ao mesmo tempo uma guerra terrível e sofre retaliações que provavelmente a deixarão mais fraca como potência quaisquer que sejam os avanços em território ucraniano.

Objetivamente, não fosse a questão dos arsenais nucleares (o maior vestígio ainda da Guerra Fria) e as ondas de choque da guerra na Ucrânia só viriam confirmar que a Rússia já não é uma superpotência, que os Estados Unidos apesar de tudo mantêm boa parte desse estatuto e que a China, ainda cautelosa, já percebeu ser a única rival à altura de lidar com uma América ainda com bastantes recursos. Quanto à Europa Ocidental, faz bem em festejar a sua unidade, reforçada até pelas ações russas, mas dificilmente poderá ambicionar ser ela própria uma superpotência. Os seus membros deixaram-se das guerras do passado, mas não desapareceram de todo as pequenas e grandes suspeitas históricas de uns e outros. Talvez daqui a mais 77 anos.»

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