«O que aconteceu na segunda-feira não foi apenas uma interrupção técnica. Foi um curto-circuito simbólico. A luz caiu, sim — mas o que se apagou, por instantes, foi a ilusão de que temos tudo sob controlo. Ficámos entregues a nós próprios, sem rede, sem desculpa. Corpos parados. Vidas suspensas. Uma sociedade moderna em modo de espera, revelada na sua versão mais crua: fragmentada, ansiosa, quase primitiva.
Houve vizinhos que falaram pela primeira vez. É verdade. Mas não foi um milagre cívico. Foi o reflexo de um país que, habituado a viver só, estranha o contacto quando ele aparece sem aviso. E logo se recolhe assim que pode. A luz voltou. E, com ela, o hábito de evitar.
A atomização da vida moderna não se cura com um apagão. Só se revela.
E o que vimos, naquelas horas de silêncio eléctrico, foi um retrato sem filtros: somos frágeis, desconectados, dependentes de ecrãs para nos sentirmos acompanhados. A confiança social — a matéria invisível que sustenta o edifício democrático — oscilou tanto quanto a corrente. Vivemos, enfim, juntos, mas não vivemos com.
O apagão não inventou esta solidão. Só a iluminou. Durante longas horas, vimos o que preferimos ignorar: que a estabilidade é uma construção artificial. E, ainda que tudo tenha voltado ao normal, alguma coisa ficou — não nos dados, mas no subsolo.
Porque vivemos num tempo em que a ordem custa a manter: uma guerra prolongada no continente, o regresso de Trump à Casa Branca, a inflação instável, o clima em crise. Num mundo assim, até uma falha breve pode lembrar-nos: o futuro já não é uma linha reta. E, quando o futuro assusta, o presente basta.
O apagão não foi suficientemente longo para ser um trauma colectivo. Mas também não foi neutro. Em épocas de instabilidade, até os choques pequenos afinam o instinto político. Se o mundo balança — e o Governo se mantém de pé — pode ser o suficiente para querer que continue.
Não por convicção. Mas por reflexo.
É esse reflexo que hoje molda eleições em várias latitudes. No Canadá, Mark Carney não lidera por prometer mudança. Lidera porque parece um porto seguro no meio do ruído. “Parece saber o que faz”, dizia esta semana um eleitor em Toronto. Uma frase breve, quase banal, mas que captura o espírito da hora: não se quer novidade. Querem-se travões.
Na Austrália, o incumbente Anthony Albanese estava a cair nas sondagens. E depois o mundo tremeu. Trump carregou nas tintas, a China endureceu, a guerra arrastou-se. Hoje, Albanese está tecnicamente empatado. E pode ganhar na próxima semana — não por ser uma promessa de futuro, mas por não assustar no presente.
Portugal não escapa a esta maré. A E-Redes falhou na comunicação. A REN falou em problemas exteriores. A Proteção Civil demorou a ativar alertas. Durante os primeiros minutos, quem precisava de informações consultava o governo espanhol ou as atualizações de Pedro Sánchez — porque em Portugal, a luz caiu, mas a palavra também. Luís Montenegro não brilhou no apagão. Mas também não caiu. E, para muitos, isso bastará. Porque, num país onde a rede falha sem aviso, e a explicação demora mais do que o restabelecimento, manter o que há já é meio caminho para evitar o que poderia vir.
A oposição ensaiou uma resposta. Pedro Nuno Santos tentou o tom institucional — mas é difícil parecer estadista sem Estado. Ventura reagiu como seria de esperar: culpou a dependência energética, criticou o encerramento das centrais a carvão e evocou a “soberania nacional” como antídoto. A versão local de um discurso que já ouvimos noutras línguas: menos Europa, menos transição energética, mais controlo. É o trumpismo aplicado à corrente elétrica. Mas sem internet, o populismo ficou sem amplificador — e a tese morreu à nascença.
E, nestas alturas, o silêncio de quem governa vale mais do que o ruído de quem promete.
A política não vive só de ideias. Vive de atmosferas. E a atmosfera, agora, não pede rupturas. Pede garantias. Mesmo frágeis. Mesmo conhecidas. O apagão passou. Mas a instabilidade ficou. E, enquanto durar, o voto não tenderá a ser um salto em frente. Será um gesto de contenção. Uma âncora lançada no meio da corrente.
Não é o regresso das grandes narrativas. É o regresso das mãos previsíveis. É o regresso à política aborrecida — porque, em tempos incertos, o tédio é uma forma de esperança. Não promete o céu. Mas segura o chão.
E, quando a luz falha, o chão basta.»
3 comments:
"E a atmosfera, agora, não pede rupturas. Pede garantias. Mesmo frágeis."
Não quero ser injusta com a autora, mas sabendo que o seu partido é a IL, não sei se o futuro seria mais risonho, para a maioria, com eles ao leme...para mim não seria com toda a certeza!
Nem sei se ela ainda é da IL, não ocupa qualquer lugar certamente. Mas mesmo que seja: não pode escrever este texto? Em nome de quê?
Claro que pode escrever este texto, era o que faltava que eu quisesse coartar a liberdade de alguém.
Apenas quis referir que a haver rupturas não seria do meu agrado a linha ideológica que, supostamente, a autora preconizaria. Apenas isso!
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