«Já toda a gente viu o vídeo em que André Ventura acusa Marcelo Rebelo de Sousa de ir à Alemanha para participar num Bürgerfest, confundindo cidadãos com hambúrgueres. Uma festa da cidadania que se realiza todos os anos nos jardins da residência oficial do Presidente Federal da Alemanha, que convidou o chefe de Estado português a estar oficialmente presente.
Ventura disse que tinha dificuldade em acreditar que aquilo fosse verdade, mas, apesar da incredulidade, não gastou um minuto no Google para tirar teimas. Disse que nós só não nos revoltamos com esta viagem porque não sabemos dela, quando, na realidade, não nos revoltamos porque não achamos coisas sem as confirmar. E terminou com duas perguntas. “Digam-me quão ridículo isto é? Quão estúpido isto é?” Muito.
Depois da chacota nas redes e televisão, Ventura assumiu o erro durante uns segundos para passar imediatamente a explicar aos jornalistas aquilo com que se deviam preocupar e a acusá-los de perseguição, com o já clássico “não sei se isto vai passar”.
Em qualquer momento, antes de o Chega normalizar o anormal, o facto de o líder do maior partido da oposição querer impedir uma visita do Presidente a outro país seria notícia. Se o argumento se baseasse num “lapso”, seria um escândalo. Se esse “lapso” viesse acompanhado da confissão de que teve dúvidas de que aquilo era verdade, mas mesmo assim não foi confirmar, seria o descrédito. Se o “lapso” fosse este, seria risota nacional. Ventura não é escrutinado com critérios usados para outros, habituou-se à ideia de que, para ele, se aplicam critérios diferentes.
Mas lá veio, pelo menos, a explicação para o “lapso”: resultou do facto de o Presidente ter feito 1550 viagens à custa dos contribuintes. Fez, desde 2016, 160. A mentira para justificar outra mentira é tão esmagadora que desta vez é impossível acreditar num lapso. Só um louco não confirma a verdade do que diz quando o que diz serve para justificar uma mentira anterior.
Tenho a certeza de que Ventura sabia que Marcelo fez um décimo das viagens e tenho dúvidas de que não soubesse que “Bürger” quer dizer cidadão ou cidadãos. Mas o Elevador da Glória tirou o CH das notícias e, com esta nova polémica, conseguiu voltar à ribalta. Não há como vencer isto. Para mostrar que o rei vai nu, os eleitores escolhem o mais pelado dos políticos. A ele, basta-lhe aparecer todos os dias. Se não é corrigido, leva a melhor; se é corrigido, também.
Pode-se dizer que a falta do trema na resolução apresentada para autorizar a saída (uma falha comum, em Portugal) pode ter levado o deputado a baralhar-se. Mas, perante o espanto, bastava ir à nota da Presidência para ver que lá estava o trema, coisa que quem estudou o Bürgerliches Gesetzbuch, o importante Código Civil alemão, poderia desconfiar.
É que não foi apenas uma gaffe dita num vídeo. 60 deputados do Chega votaram contra uma visita presidencial por julgar que era uma festa de hambúrgueres. Antes de votar contra, pode-se fazer uma perguntinha. Antes de um líder fazer um vídeo indignado sobre o voto, pode fazer mais duas ou três. Eu faço isso todos os dias, várias vezes por dia, e não sou pago pelos contribuintes.
Em qualquer momento, antes de o Chega normalizar o anormal, o facto de o líder do maior partido da oposição querer impedir uma visita do Presidente a outro país seria notícia. Se o argumento se baseasse num “lapso”, seria um escândalo. Se esse “lapso” viesse acompanhado da confissão de que teve dúvidas de que aquilo era verdade, mas mesmo assim não foi confirmar, seria o descrédito. Se o “lapso” fosse este, seria risota nacional. Ventura não é escrutinado com critérios usados para outros, habituou-se à ideia de que, para ele, se aplicam critérios diferentes.
Ou Ventura sabia, ou, não sabendo, não quis procurar saber, porque isso era irrelevante. Relevante é que o Elevador da Glória tirou o Chega das notícias durante mais de uma semana. E o Chega vive de e para as notícias. Com excelentes resultados.
Diz quem anda em campanha que, independentemente dos resultados que venha a ter numas autárquicas onde a notoriedade local dos candidatos conta muito, o povo só fala, quando toca aos partidos, do Chega. Porque é o Chega que existe nas redes sociais, onde as pessoas passam cada vez mais tempo e por onde se informam cada vez mais. E porque André Ventura já deve ter dado, desde as últimas eleições, mais entrevistas do que todos os líderes juntos. Isto, apesar de liderar a segunda força no parlamento e a terceira no País. Com o vídeo (e uma sondagem da Aximage que, como todas as sondagens desta empresa nos últimos anos, me deixa de pé atrás), conseguiu voltar à ribalta. Os motivos são irrelevantes.
Esta história serve para dizer que não há como vencer a lógica do palco mediático de que vive este tipo de líderes políticos, que não correm qualquer risco de perda de credibilidade, porque pura e simplesmente não jogam nesse campeonato. Quando não há ilusões, não há deceções. Isso fica para os outros.
Perante isto, o que se pode fazer? Se os jornalistas não o corrigirem, milhões de cidadãos ficam a achar que pagam viagens ao Presidente para ir a uma festa de hambúrgueres. Se o corrigirem, ele volta a ser tema nas redes, assunto mediático, ocupando de novo o centro do debate político. Se não o corrigem, leva a melhor, se o corrigem, também.
O problema não é o Chega nem são os jornalistas. São os eleitores. Sim, às vezes a culpa da democracia correr mal é dos cidadãos. Na realidade, quase sempre que a democracia corre mal a culpa é dos cidadãos. É isso que faz dela o pior de todos os sistemas sem contar com todos os restantes: são os cidadãos que decidem o que querem que a democracia seja.
A culpa é dos cidadãos porque o voto do Chega não é, ao contrário do que se diz, um voto de protesto. O protesto resulta de uma exigência frustrada. Quem queira pôr fim à “podridão da política” não vota num partido onde pululam corruptos, pedófilos, incendiários e toda a espécie de criminosos – começa a ser difícil não fazer as generalizações que eles fazem com os ciganos.
São poucos os eleitores que esperam que o Chega mude alguma coisa. É um desabafo, uma desistência. Esperam que o Chega grite que o “rei vai nu”, o que nem sequer é mentira, quando pensamos no poder que o povo hoje tem de decidir o seu futuro. E, para mostrar que o rei vai nu, escolhem o mais pelado dos políticos. Alguém a quem não se exija mais do que exigimos a um tipo que diz coisas no café.
Os cidadãos não querem mudar o sistema. Apenas desistiram dele. E quando se é porta-voz disto basta aparecer todos os dias. E dizer uma coisas. Certas, erradas, zangadas, divertidas, verdadeiras, falsas. Tanto faz. O tempo em que éramos exigentes passou. Não nos cansámos da democracia. Cansámo-nos do trabalho que dá.»