16.9.25

O 25 de Novembro enquanto farsa

 


«Num dos seus mais conhecidos escritos histórico-políticos, Karl Marx lembrou que o filósofo alemão Hegel fez notar que “os grandes acontecimentos e personagens históricas ocorrem, por assim dizer, duas vezes”. Mas, segundo Marx, ter-se-ia esquecido de acrescentar: “a primeira como tragédia, a segunda como comédia”.

Precisamente no caso presente, o Governo do PSD, não podendo reeditar a tragédia, ficou-se pela farsa: decretou umas “comemorações oficiais” do contragolpe militar do 25 de Novembro de 1975. E, como o assunto queima, entregou-as, à laia de prémio de consolação, ao improvável ministro da Defesa e exuberante chefe do CDS, Nuno Melo. O desenterrar pelo Governo da direita do novembrismo ultramontano e o propósito explícito de oficializar a comemoração assumem, é bom que se diga, o carácter de uma farsa duplamente funérea.

Em primeiro lugar, porque a sua organização é promovida por um partido-fantasma, política e socialmente inexistente, o CDS, cuja base social, como toda a gente sabe, há muito se esfumou e dissolveu nos de mais partidos da direita e extrema-direita lusitana. Dito de outra forma: é uma sigla fantasmática transportada por uns cavalheiros a quem o PSD fez o favor de pendurar numa dita Aliança Democrática para fingir que ela existe. Uma esmola política que descompromete o PSD com cavalarias altas, mas evidencia a radicalização à direita do partido do Governo.

Em segundo lugar, porque nada desta farsa fúnebre das “comemorações oficiais” do novembrismo tem que ver com qualquer vislumbre de debate historicamente sério e pretendidamente esclarecedor sobre a efeméride. O seu assumido propósito ideológico é já antigo na direita e extrema-direita portuguesa: fazer do novembrismo autoritário, colonialista e ressabiado o paradigma ideológico do regime antidemocrático que pretendem impor ao país. E, com isso, procurar “limpar” a memória libertadora do 25 de Abril e da revolução portuguesa de 1974/75. Passo indispensável para legitimar simbólica e politicamente o autoritarismo de novo tipo que transporta, nos dias de hoje, a aliança tendencial das direitas tradicionais com a nova extrema-direita.

Basta atentar na composição (tutelada pelo galhardo ministro da Defesa) da comissão constituída para o efeito. Uma espécie de top ten das mais jurássicas entidades da nostalgia colonialista e neo-salazarista que por aí subsistem em estado mais ou menos vegetativo. A título de exemplo: a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (que coabitou física e espiritualmente no antigo Palácio dos Almadas com a milícia da Mocidade Portuguesa durante 34 anos), onde pontifica o dr. Ribeiro e Castro, outro ex-dirigente do CDS; a Comissão Portuguesa de História Militar, ligada ao Ministério da Defesa, encarregada da crónica legitimadora das guerras do colonialismo português em África; e, para apimentar a coisa, a Associação dos Comandos! Nem sequer lá falta, para garantir o policiamento ideológico do grupo, a presença do director-geral da Política de Defesa Nacional. Não é difícil prever o que daqui sairá como “comemorações oficiais”: o espectro do novembrismo militarista em parada.

É claro que os golpes e contragolpes do 25 de Novembro de 1975 existiram como evento político-militar relevante na história do processo revolucionário iniciado no 25 de Abril. E desaguaram, como é sabido, na contenção pactuada do processo revolucionário negociada entre alguns dos seus principais intervenientes. Desses compromissos nasceram a Constituição de 1976 e as instituições do regime democrático. Foi um processo complexo que dividiu opiniões até hoje e merece absolutamente ser estudado de forma rigorosa, plural e com o benefício da distância de meio século. Cruzando fontes, testemunhos e várias gerações de investigadores, designadamente no âmbito das iniciativas que assinalam o cinquentenário do 25 de Abril, a cujo processo se ligam, obviamente, os acontecimentos do 25 de Novembro. Do que aqui se trata é de saber se o faremos como campanha governamental de manipulação ideológica permanente ou como debate livre e enriquecedor da cidadania democrática.

Assim sendo, como escreveu um antigo pensador chinês, só se pode desejar “que mil flores floresçam e que cem escolas rivalizem”. Cada um fará sua a que entender melhor servir para fazer face à tempestade que espreita.

É isso que é a democracia. O de mais é a farsa administrativa e sombria, paga, convém lembrar, pelos contribuintes.»


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