29.6.24

Janelas, muitas janelas (9)

 


Instituto de Serviços de Medicina Tradicional, Thimphu, Butão, 2010.

Última esperança... na véspera

 


França: Mediapart com acesso livre

 


Dossier [En accès libre] Si le Rassemblement national accède au pouvoir


Estamos a perder a batalha das ideias

 


«As eleições francesas são um ponto de viragem há anos anunciado: a extrema-direita deixa de provocar medo e passa até a suscitar esperança em muitos cidadãos. É desagradável mas é uma realidade. A extrema-direita está ainda longe de dominar a Europa mas está a ganhar a batalha das ideias. É neste plano, e não no do medo, que liberais e sociais-democratas deverão afrontar o combate contra as novas ameaças da extrema-direita.

Começo por alguns números recentes. Um grande inquérito do instituto Ipsos, para vários meios de informação, revela o estado de espírito dos franceses na véspera do voto. Num resumo do seu director-geral, Brice Teinturier, hoje publicado no Le Monde, a dissolução do parlamento por Emmanuel Macron suscitou reacções diametralmente opostas entre os eleitores. Provocou em quase todas as áreas políticas sentimentos negativos. A excepção são os eleitores da União Nacional (RN, de Marine Le Pen): 65% deles receberam a notícia com optimismo e esperança.

O grande sinal é que o voto em Le Pen, que foi durante décadas um voto de protesto, se transformou desde há anos num "voto de adesão". Aquela "dinâmica de esperança", escreve Teinturier, decorre do desejo de alternância: 93% dos seus virtuais eleitores e aliados confiam na vitória da lista de Jordan Bardella. E, dentre eles, 50% crêem na maioria absoluta. Note-se, ainda, que 40% dos franceses desejam a vitória da RN, contra 31% que gostariam de ver a Nova Frente Popular (NFP) ganhar e 29% que apostam no bloco centrista de Macron.

Esta não é uma sondagem das intenções de voto. Estas são ligeiramente diferentes: 36% para a RN e aliados de direita, 29 para a Nova Frente Popular (NFP, esquerda e extrema-esquerda), 19,5 para a aliança pró-Macron, e oito para os Republicanos (LR, direita tradicional). As muito incertas previsões de mandatos, após a crítica segunda volta, apontam para uma maioria relativa dos lepenistas, mas não absoluta. Este é um assunto para a próxima semana.

Os eleitores da RN não se preocupam com a "credibilidade económica" do seu programa, que a maioria dos economistas considera desastroso. Pelo contrário, é aceite como "desejável e realista" por 45% dos franceses. Mais do que a credibilidade, o eleitorado de Le Pen procura "protecção".

O que aqui me interessa é a viragem em curso e que poderíamos resumir assim: em vez de medo, Le Pen passou a inspirar esperança junto de grandes fracções do eleitorado. É hoje primeira força entre os jovens (se eles votarem) e acaba de conquistar a hegemonia no eleitorado idoso, que durante muito tempo lhe resistiu mas que se tornou cada vez mais sensível aos fantasmas da imigração.

A extrema-direita conseguiu "banalizar-se", passando a ser encarada como um partido "como os outros". Marine Le Pen venceu a guerra da "desdiabolização". O que significa que a esquerda e a direita liberal deverão mudar a forma de a combater. Não bastam os slogans tipo "não passarão" ou as denúncias de racismo e anti-semitismo, que se revelam cada vez mais desajustadas.

Há anos que está em curso uma viragem à direita em quase toda a Europa. E, neste processo, a extrema-direita tornou-se a força mais dinâmica, que passou a arrastar a direita moderada que, por razões eleitorais, se foi identificando com os seus temas. Um dos aspectos mais impressionantes foi o modo como a direita radical soube desencadear uma ofensiva contra a ecologia. Foi esta mesma direita radical que persuadiu os "moderados" do Partido Popular Europeu (PPE) e presidente Ursula von der Leyen a meter na gaveta a grande bandeira da Comissão Europeia, o célebre "Green Deal". O mesmo aconteceu com a subversão da política europeia de imigração.

Os resultados eleitorais têm sido o sinal de alarme. Mas tanto a esquerda como os liberais demoraram demasiado tempo a compreender o carácter estratégico, e não apenas conjuntural, da viragem à direita. Resume o jornalista alemão Wolfgang Münchau: "Ainda que a extrema-direita não esteja a governar a Europa, ela está a vencer a batalha das ideias sobre imigração, identidade, crime, políticas verdes e economia."

Há um outro fenómeno que ilustra a mudança de época. Em França, é cada vez mais forte a ofensiva de direita no terreno dos media. Nos últimos tempos, tem sido particularmente notória a radicalização promovida pelo conglomerado mediático de Vincent Bolloré (grupo Vivendi, que detém canais de televisão como o CNews ou o Canal+), que apadrinha a aliança entre direita e extrema-direita. Impôs uma linha editorial semelhante à das televisões e tablóides de Rupert Murdoch.

No entanto, o fenómeno é mais largo do que a manipulação política e contamina os media independentes. "Os media foram invadidos pelos temas da extrema-direita. Telejornais, rádios e jornais descrevem regularmente uma França que coincide com a visão da União Nacional", escreve o Le Monde na edição de hoje.

O novo clima político e ideológico exigirá um grande realismo na reacção perante os resultados eleitorais. Mesmo no caso de uma maioria absoluta, Bardella não se lançará numa campanha desenfreada contra os valores da República ou contra a União Europeia. Será prudente, porque a meta da União Nacional é a eleição de Marine Le Pen nas presidenciais de 2027. Ela sonha com o Eliseu e, diz ao Le Monde que, de momento, o que a preocupa é "cuidar da sua estatura presidencial". No caso de maioria relativa, dificilmente Bardella aceitará a responsabilidade de um governo débil. É possível uma fase de caos parlamentar.

Em vez da bandeira do medo, pede-se às forças democráticas que convençam os eleitores afrontando os grandes temas de que a extrema-direita se apoderou. Repetindo Münchau: a batalha das ideias sobre imigração, identidade, crime, políticas verdes e economia.»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público

Da série Grandes Capas

 


28.6.24

Janelas, muitas janelas (8)

 


Casa Museo Taller Casapueblo, Puta Ballena (perto de Punta del Este), Uruguai, 2015.

[Carlos Páez Vilar, uma das glórias do povo uruguaio, nasceu em Montevideu e morreu em 2014, com 90 anos. Viajou pelos quatro cantos do mundo, foi amigo de Picasso, Dali, Calder, Vinícius de Moraes e muitos outros. Homem de sete ofícios, dedicou-se não só à pintura, escultura e cerâmica, mas também ao cinema e à literatura. Em 1958, decidiu construir uma casa por cima das falésias de Punta Ballena e levou 40 anos a concretizar o projecto. A casa é hoje um Museu (mais um hotel e uma outra parte onde a família continua a viver).]

SNS, uma central de compras para o privado

 



E a mais não é obrigado

 



Mariana Jones e os salteadores do patriarca perdido

 


«Quando se soube que o juiz Rui da Fonseca e Castro tinha impedido o lançamento do livro “O Avô Rui, o Senhor do Café”, de Mariana Jones, sobre a vida do empresário Rui Nabeiro, respirei de alívio. Trata-se de um livro infantil, e considero nociva a promoção do café junto das crianças. Se, juntamente com a abolição da obra “O Avô Rui, o Senhor do Café”, o ex-juiz tivesse proposto a inclusão, no Plano Nacional de Leitura, do livro “O Avô Leandro Panizzon, o Senhor da Ritalina”, teria votado nele nas próximas eleições. No entanto, mais tarde percebi que o objectivo do antigo magistrado era censurar um livro anterior da mesma autora, chamado “O Pedro Gosta do Afonso”. Habituado a julgar delitos reais, o ex-juiz dedica-se agora a decretar sentenças sobre amores ilícitos inventados. Quando um pré-adolescente imaginário nutre por outro pré-adolescente ficcional um amor de fantasia, o ex-juiz entra em acção para impedir a pouca-vergonha fictícia. Na literatura infanto-juvenil é frequente os protagonistas beijarem batráquios, princesas que parecem estar mortas, e até monstros. Queremos mesmo conspurcar este ambiente com personagens que beijam pessoas do mesmo sexo? Uma coisa é incentivar as crianças a beijarem sapos, que até cumprem a importante função social de repelir ciganos; outra coisa é sugerir-lhes porcarias repugnantes.

De acordo com Rui Castro, o livro promove a homossexualidade. Ora, eu confesso que gostaria de assistir a uma boa promoção da homossexualidade (“Leve 2 Lesbianismos, Pague 1”, etc.), mas tenho verificado que, curiosamente, a homossexualidade — tal como, por exemplo, os bens de luxo — não precisa de promoção. Todos os homossexuais que eu conheço são filhos de casais heterossexuais. São todos produto da família tradicional — que é, por isso, a maior promotora de homossexualidade. Talvez o ex-juiz devesse tomar conta desta ocorrência.

Num ponto Rui Castro tem razão: se alguém quiser promover a homossexualidade junto dos jovens, o meio mais eficaz é, sem dúvida, a literatura infanto-juvenil. Esta miudagem só pensa em ler livros. É preciso arrancar-lhos da mão. Julgo que já todos presenciámos a cena: uma família está à mesa a comer e os adultos dão às crianças os telemóveis ou os tablets, para elas se entreterem. Mas os miúdos atiram os aparelhos para o chão e gritam: “Não! Eu quero é ler as obras completas de Mariana Jones! Caso contrário, não haverá sossego neste restaurante!”

Para testar a capacidade de sedução da literatura infanto-juvenil, fui à biblioteca e requisitei vários livros para a infância e a juventude, incluindo o de Mariana Jones. Escuso de dizer que saí de lá com uma vontade irreprimível não só de gostar do Afonso, mas também de ir levar o lanche à minha avozinha e de, no caminho, passar pelo mercado para comprar feijões mágicos. É por isto que o país está como está.»


França: acreditar, sim

 


27.6.24

Janelas, muitas janelas (7)

 


Governo Metropolitano de Tóquio, Japão, 2006.
[A Câmara Municipal lá do sítio…]

Um pouco mais de azul (12)

 




Universidade do Minho condenou genocídio

 


«Em conferência de imprensa esta terça-feira, o Coletivo de Estudantes pela Palestina da Universidade do Minho deu por bem empregues os 28 dias de acampamento estudantil nesta instituição de ensino superior.

O balanço que fazem é de “bastante solidariedade da comunidade académica, desde professores, estudantes e até funcionários”, destacando-se uma postura da reitoria que optou por deixar que se realizasse o protesto pacífico, ao contrário de outras universidades onde as direções chamaram a polícia para acabar com as ações dos estudantes: “é de salientar e louvar a posição da nossa universidade”, consideram.»


Três eleições derradeiras em que a esquerda tem de se unir

 


«Em França, a esquerda une-se para ser alternativa à extrema-direita e os seus eleitores não serem obrigados a votar em neoliberais para derrotar os fascistas, a votar na causa para evitar a consequência. Em Portugal, apesar da vontade de amarrar o PS a este governo, ainda não chegamos a esse ponto. Mas há o risco de não estarmos a viver apenas mais um momento de alternância no poder. Costa pode ter sido para o PS o que Hollande foi para o PSF: a última oportunidade desperdiçada.

Perante a onda que varre a Europa, a esquerda deve olhar para cada eleição como uma oportunidade para reverter a situação perigosa em que se encontra. O PS tinha de vencer as europeias, por pouco que fosse. Era a única forma de manter alguma autonomia estratégica no debate sobre o próximo orçamento. Se o governo não cair no fim do ano, como o PSD secretamente desejou mal tomou posse (é de fontes da AD a confissão, logo nos primeiros dias de governo, de querer repetir Cavaco Silva de 1987), os dois próximos atos eleitorais serão fundamentais para a esquerda.

Os convites do Livre para reuniões inter-partidárias são tão irrelevantes como foram os do Bloco, no início da legislatura. São os possíveis aliados juniores a querer ganhar relevância para uma possível negociação. Estes entendimentos não se começam assim, com os jornalistas à porta das sedes partidárias. Mas uma coisa é certa: é agora que este debate se faz. Se, como alguns parecem pensar no PS, as conversas esperarem pela proximidade das eleições, preparam-se para o desastre. Os candidatos são os que estiverem à mão ou já se tiverem chegado à frente. Podem nem ser compatíveis com entendimentos.

Em autárquicas e presidenciais, a correlação de forças obriga a esquerda a unir-se, sem medo das acusações de “frentismo” ou de “radicalismo” de quem a quer ver defensiva e derrotada. As diferenças entre os vários partidos são tão consideráveis que nem os três à esquerda do PS – BE, PCP e Livre – se poderiam unir sem que o resultado fosse uma soma negativa. Mesmo o BE e o Livre, com mais proximidade, têm culturas de militância tão radicalmente diferentes que nunca se conseguiriam entender. Não há condições para frentes de esquerda como vemos em França. Mesmo lá, ela só acontece pela dimensão da derrota histórica, pelo risco de continuar a deixar ao macronismo neoliberal a oposição à extrema-direita, engordando Le Pen. Ainda estamos longe desse cenário. Se o PS se tornar bengala da AD, chegaremos lá rapidamente.

Mas quer em autárquicas, quer em presidenciais, as alianças de esquerda são perfeitamente possíveis. E são necessárias. Em autárquicas, ganha quem ficar em primeiro e fragmentação da direita favorece a esquerda. Em Presidenciais, há um sistema de duas voltas. E estes são os próximos desafios eleitorais.

Nas autárquicas, não está em questão o peso de cada partido no país, mas o peso simbólico das câmaras de Lisboa, Porto e mais algumas cidades importantes em que os entendimentos façam sentido e a direita esteja no poder. No caso de Lisboa e Porto, as próximas eleições podem ser a última oportunidade para recuperar as autarquias, se é que ainda se vai tempo. O processo de gentrificação, com a expulsão das classes média e pobres, fez delas condomínios de ricos e estrangeiros rodeados de alojamento local e de uns poucos bairros sociais. Concelhos como Sintra ou Vila Nova de Gaia podem ser demograficamente relevantes, mas o peso político de Lisboa e Porto não pode ser desprezado.

Em Lisboa, é preciso um candidato capaz de derrubar a impressionante barreira de propaganda de um dos mais incompetentes presidentes de Câmara que a capital já conheceu. Se Duarte Cordeiro, o candidato mais sólido contra Carlos Moedas, se mantiver indisponível para regressar à política, o PS terá de encontrar uma figura politicamente muito forte para este combate. No Porto, com a saída de Rui Moreira, não me parece que a esquerda lá vá com figuras como Manuel Pizarro. Não permitir que este período se transforme numa enorme travessia no deserto – ou até no início de um inexorável declínio – implica abandonar as lógicas paroquiais dos partidos. E talvez seja fora delas que a esquerda consiga encontrar uma figura que a leve de volta à Câmara do Porto para reverter a violenta gentrificação que o está a esvaziar.

Poucos meses depois das autárquicas, vêm as presidenciais. Há duas décadas que a direita consegue, através do Palácio de Belém, condicionar a governabilidade e a vida política. Com o seu regresso ao governo e uma maioria larga na Assembleia da República, esse poder renovado seria um enorme risco para a oposição. Com António Costa à frente do Conselho Europeu e António Guterres bloqueado pelo calendário do seu mandato na ONU (se pudesse e quisesse, limparia as presidenciais logo na primeira volta), a esquerda tem de encontrar um candidato único para enfrentar as imensas possibilidades que a direita, com a ajuda das televisões ou do próprio PS, inventou – Marques Mendes, Paulo Portas, Passos Coelho, Durão Barroso, Santana Lopes, Gouveia e Melo. Não me parece que a repetição de candidaturas passadas resulte.

Claro que o PS pode apostar num candidato como Mário Centeno, o herói das “contas certas” para um país adiado, tentando que todos se esqueçam do preço que isso teve no estado lastimável em que está a administração pública. Mas continuará a jogar no campo da direita, nos critérios de credibilidade da direita, na narrativa política e económica da direita. E tem sido esse hábito a determinar a derrota estrutural que tem pela frente: não ter um discurso próprio, alternativo e mobilizador. Não perceberá que as batalhas que perde são episódios de uma guerra mais trágica, em que é incapaz de construir a sua própria narrativa.

A direita governa o país, as duas principais cidades, as duas regiões autónomas e tem a Presidência da República e a maioria no Parlamento. Romper este quase monopólio de poder é condição para que a saudável alternância não se transforme num bloqueio estrutural. Basta olhar para a Europa e para o voto jovem para perceber que esse risco é bem real.»


26.6.24

Janelas, muitas janelas (6)

 


Mariana, Minas Gerais, Brasil, 2018.

Salvador Allende nasceu num 26 de Junho



... há 116 anos, em Valparaíso, no Chile. Afirmou, bem antes de 11 de Setembro de 1973, que estava a cumprir um mandato dado pelo povo e que só sairia do palácio depois de o cumprir. Ou que o faria «com os pés para diante, num pijama de madeira». Assim aconteceu. 

O seu último discurso:



.

Maria Velho da Costa

 


Chegaria hoje aos 86.

A França como modelo do que pode acontecer?

 


«Os franceses votam nos dois próximos domingos em duas voltas das eleições legislativas. O sistema maioritário (em vez de representação proporcional, como em Portugal, só será eleito o candidato ganhador em cada uma das 577 circunscrições em que se divide o país) favorece artificialmente o vencedor e pode permitir maiorias absolutas com pouco mais de um terço dos votos, como pode acontecer desta vez. Basta para tal que o partido ou coligação vencedora ganhe num grande número de circunscrições por pequenas diferenças de votos relativamente aos segundos classificados, cujo partido/coligação não elege ninguém. É por isto que podemos acordar no dia 8 de julho com uma maioria absoluta do bloco de extrema-direita que reúne a ex-Frente Nacional e os restos da velha direita gaullista. Macron e os seus liberais de cassetete em casa e tropas para a Ucrânia já perderam as eleições: a merecidíssima rejeição maciça dos franceses vai eliminar a grande maioria deles logo à 1.ª volta.

A nova versão da antiga Frente Nacional “não é a de um partido de extrema-direita que se acalmou, mas de um partido com um projeto neofascista que se adaptou a um novo contexto” (Ugo Palheta, sociólogo, 18/6/2024). Como o resto da extrema-direita do nosso século. A única força que pode barrar o caminho do poder à versão 2024 do neofascismo francês é a coligação que a esquerda montou corajosamente em pouco tempo e a que deu o nome de Nova Frente Popular, juntando França Insubmissa e PCF com PS e verdes. Face ao fascismo, uma reação antifascista – exatamente como aconteceu em 1936, quando o PCF propôs uma coligação a socialistas e radicais burgueses com quem tinham partilhado praticamente nada ao longo dos anos da Grande Depressão. O sistema eleitoral a isso obrigava – e ele hoje ainda é o mesmo. As evidentes divergências não os impediram de, face à ameaça fascista (a tentativa de golpe de 1934, Hitler e Mussolini no poder), se juntarem em torno de um programa de reformas sociais que mobilizaram os operários franceses no verão de 1936.

O contexto de hoje tem muito de semelhante. Os franceses (e os europeus em geral) levam 25 anos de perda de poder de compra, de empobrecimento (privatizações e cortes nos serviços públicos, congelamento dos salários, recurso compensatório ao crédito; agora inflação sem compensação em aumentos salariais). A UE transformou-se numa fábrica multiplicadora de desigualdade, com um modelo económico que vampiriza o trabalho precário migrante e, ao mesmo tempo, segrega racismo e alimenta "conspiranoias" por todas as partes: trata os migrantes como “inimigos”; atiça o desvario da “ameaça russa” para justificar a corrida aos armamentos (e procurar diretamente o confronto); dá curso legal à islamofobia num contexto de racismo praticamente institucionalizado, cujos slogans passaram das redes sociais neofascistas para a legislação, e que justifica, desde há muito, formas de securitarismo liberticida que Trump, Le Pen ou Meloni nem precisam de agravar quando chegam ao poder, limitando-se a herdá-las dos “liberais” que as impuseram antes delas.

Como é que chegámos até aqui? Tenho tentado responder a esta pergunta desde que escrevo no PÚBLICO, porque há mais de dez anos que o caminho que percorremos vem sempre dar ao mesmo lugar. Desde há 35 anos, quando a social-democracia se juntou ao consenso thatcherista das direitas (privatizar, desregular, precarizar, concentrar riqueza e dizer que a culpa é do “socialismo do passado”), que se quer convencer classes populares e médias empobrecidas que a culpa é delas porque a economia é isto mesmo. E desde então tem sido a caça aos bodes expiatórios. Aos de baixo. Na mesmíssima lógica dos fascismos de há cem anos: os “outros”, as minorias, os migrantes. Os pobres, tratados como parasitas nos restos de um Estado de Bem Estar que não existia em 1930.

Discutir como reverter este caminho não é (nunca foi) uma discussão académica. Como pergunta Ugo Palheta, “teremos de esperar por um movimento neofascista triunfante para levar a sério os processos de fascistização em curso e as organizações que promovem projetos fascistas e fascizantes?” (La nouvelle internationale fasciste, 2022) A resposta tem mesmo de ser dada. Já.»


António chegou ao seu Olimpo

 



25.6.24

Janelas, muitas janelas (5)

 


Instituto de Estudos Budistas Karma Shri Nalanda, Sikkim, Himalaias Orientais, Índia, 2010.

25.06.1903 – George Orwell

 


George Orwell (pseudónimo de Eric Arthur Blair) faria hoje 121 anos. Nasceu em Motihari, nas Índias Orientais, onde ninguém deixa de reivindicar o facto, quando a voz corrente o considera oriundo de Myanmar. Mas, de facto, foi só em 1922 que Orwell chegou a Mandalay para frequentar a escola que o tornaria membro da Polícia Imperial Indiana naquela então colónia britânica. Manteve-se nessa função até 1927, ano em que contraiu dengue e regressou a Inglaterra.

Mais conhecida é o resto da vida que se seguiu como escritor, a participação na resistência durante a Guerra Civil de Espanha e a morte por tuberculose, em Londres, com 46 anos.

Uma citação bem actual, entre muitas possíveis:

«Uma sociedade torna-se totalitária quando a respectiva estrutura se torna manifestamente artificial, isto é, quando a respectiva classe dirigente perdeu a sua função mas consegue manter-se agarrada ao poder pela força ou pelo embuste. Uma sociedade assim, por muito tempo que persista, nunca pode dar-se ao luxo de se tornar tolerante ou intelectualmente estável. (…) Porém, para sermos corrompidos pelo totalitarismo, não é obrigatório que vivamos num país totalitário.» (Livros & Cigarros)

Uma curta entrevista:


.

25.06.1967 - «All You Need Is Love»

 


Foi há 57 anos que foi lançado All you need is love, dos Beatles. A BBC convidou-os a participarem no primeiro evento transmitido mundialmente via satélite, ao vivo e simultaneamente para 26 países. O programa terá sido visto por cerca de 350 milhões de pessoas e, vá lá saber-se por que milagre, quase no fim do reinado de Salazar, Portugal foi um desses países.

Dos estúdios Abbey Road, em plena guerra do Vietname, saiu a mensagem mais simples que imaginar se possa, propositadamente assim concebida para que pudesse ser entendida por todos os povos do planeta.

Avisados antecipadamente, reunimo-nos em casa de amigos e vimos e escutámos a emissão, comovida e quase «liturgicamente». Tempos pesados, mas de esperança. E de uma certa inocência.


.

Não acreditar em bruxas

 


«Talvez um dia conheçamos em detalhe os reais contornos do envolvimento do ex-primeiro-ministro António Costa na Operação Influencer. A parte da história que não será reescrita é, ainda assim, pública e notória: o Governo caiu por conta das suspeições levantadas pelo Ministério Público e, desde essa altura, o currículo do antigo líder continua sequestrado por uma circunstância processual híbrida que não se traduz em nada, ao ponto de a carreira europeia de Costa estar, neste momento, minada pelas dúvidas que o caso ainda levanta e, sobretudo, pela incerteza em torno da divulgação cirúrgica de mais informações que possam causar embaraços num futuro próximo.

“António Costa tem o inimigo em casa”, titulava, a propósito, o jornal espanhol “El País”, num extenso artigo sobre o impacto que a Operação Influencer estava a ter nas pretensões do antigo primeiro-ministro de chegar à presidência do Conselho Europeu. Nele se explicava a situação particular em que se encontra o antigo chefe do Governo e as muitas críticas endossadas ao Ministério Público, em particular depois de descobrirmos que vão ser mantidas vivas escutas telefónicas a Costa sem relevância criminal. Ora, mesmo quem não acredita em bruxas sabe que elas existem. E, nesse sentido, era desejável que, depois da iniciativa do BE, se formasse uma maioria partidária que permitisse a ida ao Parlamento da procuradora-geral da República, Lucília Gago. Não podemos transformar a Assembleia da República num palco para todos os debates e inquirições e depois excluí-la do seu papel de fiscalização num tema que, sendo de uma enorme sensibilidade, é vital para o fortalecimento e transparência do regime.»


24.6.24

Janelas, muitas janelas (4)

 


A bela praça central de Cusco, Peru, 2004.
A caminho de Machu Picchu.

O império da vírgula

 


Ninguém guarda o guardador

 


Perante uma mãe, o mais contemporâneo dos homens

 


«Há momentos em que sentimos orgulho do nosso país: saber, por exemplo, que o nosso SNS é pioneiro em tratamento d, e doenças raras, coisa que não advinha quem passa dias a ver notícias na televisão. Noutros, sentimos vergonha: quando uma mãe que fez tudo para salvar as suas filhas é tratada como uma criminosa na Assembleia da República. O “shitshow” a que assistimos na sexta-feira é muito mais do que um episódio. É um tratado sobre o que nos está a acontecer, enquanto comunidade.

É evidente que existe uma forte suspeita de cunha, tendo Nuno Rebelo de Sousa como centro, provavelmente não tão altruísta e desinteressado como se pensa (mesmo que conheça Daniela Martins, tratar-se-á de um contacto muito distante), em que parece ter querido agradar a outros, talvez os tais “amigos de amigos”. Saberemos, mais tarde, quem levou ele para a reunião com Lacerda Sales e que papel teve o gestor de negócios José Magro, próximo de Nuno Rebelo de Sousa, a quem também se dirigia o mail do diretor do Hospital dos Lusíadas, referido na CPI por Joana Mortágua.

É verdade que Daniela Martins não conseguiu explicar o mail saído da sua conta para Nuno Rebelo de Sousa, falando de Lacerda Sales. Todos percebemos que houve um empenho de um ex-assessor do Presidente e uma disponibilidade óbvia da Secretaria de Estado da Saúde para ajudar. E há, por fim, a habitual promiscuidade entre o privado e o público, em que o mesmo médico trabalha para os dois, preparando-se para cobrar a consulta no privado que encaminha para o tratamento que o público pagará.

Tudo mostra que houve cunhas ao mais alto nível e por isso a justiça irá fazer o seu trabalho. Mas há duas coisas que ninguém mostrou: que esta mãe não tinha direito à nacionalidade portuguesa e que estas crianças não tinham direito ao tratamento no momento em que o receberam. Do que sabemos, tudo aconteceu como aconteceria se Daniela Martins se tivesse apresentado numas urgências e seguido o caminho inevitável perante a excecionalidade daquela doença, o que diz bem do nosso SNS. Talvez tenha havido demasiada gente, a começar por Nuno Rebelo de Sousa, a querer agradar a alguém, pondo-se em bicos de pés.

Investigar isto é trabalho mais do que legitimo para a justiça e para o jornalismo. Tem uma dimensão de interesse público. Não tem é dignidade política para uma comissão de inquérito parlamentar. Ao contrário das que se concentraram na crise bancária ou a que acabou de ser criada para escrutinar anos de gestões da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em que se identificam problemas estruturais para oferecer ao poder político informação que ajude a mudar o que está errado. Ainda por cima, funcionando em paralelo com a justiça, esta CPI será sempre pouco eficaz.

As CPI não servem para investigar escândalos particulares, mesmo que sejam ótimos para o voyeurismo que enche tardes nas televisões. Esta CPI está para o parlamento como o jornalismo tablóide está para o jornalismo: é um subproduto degradante. O único objetivo político é embaraçar o Presidente (que o Parlamento não escrutina), a que agora se quis acrescentar o primeiro-ministro, com a desculpa de que o caminho burocrático e comum dos mails passou, para chegar ao Ministério da Saúde, pelo seu chefe de gabinete.

A HUMILHAÇÃO DE UMA MÃE

Imposto potestativamente pelo Chega e presidido por ele, o que era uma CPI sensível, por mexer no mais íntimo da vida de uma família, passou a ser pornográfica. A participação de uma mãe que fez tudo o que todos nós faríamos para salvar a vida das suas filhas começou mal. Não havia qualquer razão para Daniela Martins não ter feito o seu depoimento à distância, resguardando-se daquela pressão, não se afastando das filhas e poupando dinheiro ao Parlamento (seguindo a lógica do Chega, seria interessante saber quando custará aos contribuintes todo o circo à volta desta CPI). Só que o espetáculo televisivo teria sido mais pobre.

A confirmação disso ser tudo o que interessava a Ventura veio no momento em que o advogado ameaçou usar o direito daquela CPI passar a funcionar à porta fechada, pondo fim ao show montado por Ventura às custas da humilhação pública de uma mãe sofrida. Só aí o líder do Chega recuou na vontade de passar um vídeo que todos os deputados e o país já tinham visto e que a própria Daniela referira, explicara e tentara justificar na sua declaração inicial. Para além de cometer uma ilegalidade, exibindo os rostos das crianças, o contributo para o esclarecimento seria nulo. O objetivo, para além de humilhar alguém que não estava ali para ser julgada, era dar mais cor e luz a um espetáculo grotesco.

Não sou ingénuo. Desde que há canais de televisão disponíveis para as transmitir em direto, as comissões de inquérito parlamentar passaram a ter uma forte componente performativa. Aconteceu com toda a política. Mas, perante uma mãe de crianças com uma atrofia muscular espinhal, esperava-se que isso fosse temperado por mínimos de humanidade. O problema é que ausência de empatia é estruturante da cultura política em que Ventura se filia. Quem vive de alimentar o ódio dificilmente trava perante o sofrimento concreto.

DA CUNHA QUOTIDIANA

André Ventura não agiganta uma vontade de mudança, agiganta a mesquinhez que todos conhecemos do escritório, da reunião de condomínio, dos divórcios, das partilhas. Liberta o lado negro das pessoas para uso político. Neste caso, o rastilho é o legítimo incómodo com a cunha quotidiana, que evidencia a desigualdade que favorece, no acesso a serviços que são de todos, quem tem melhor rede de contactos. Mas esse incómodo não chega a ser uma indignação moral, de tal forma a cunha é usada por quase todos os portugueses em assuntos muitíssimo menos importantes do que este.

Se há coisa que este caso vai mostrando é que a disposição para abrir portas que eram de uso público serviram mais para os supostos facilitadores do que para a mãe que lá chegaria de forma normal. O que diz bem de como o desvio de percepção do que é o SNS também afeta os supostos facilitadores, habituados ao privilégio.

E há, claro, uma pitada de xenofobia que se confunde com o natural incómodo perante o turismo médico que põe em causa a sustentabilidade do sistema (o mesmo problema de fundo que se põe, na realidade, com a formação de quadros em Portugal para irem trabalhar para países ricos). Uma xenofobia que se indigna com uma lusobrasileira, mas aceita se ele vier de emigrantes que não pagam impostos em Portugal. Daniela Martins é portuguesa à luz da nossa lei e isso não está em debate. No entanto, parte da indignação do médico que espoletou este caso foi com a consequência da lei da nacionalidade, que nunca lhe diria respeito. Algum dos médicos envolvidos acha que aquele tratamento não era indicado para aquelas meninas? Alguém deixou de o receber ou recebeu mais tarde por causa delas?

Esperava, de qualquer das formas, que a proximidade emocional de muitos pais e mães àquele caso travasse a desumanidade de Ventura, durante a audição de Daniela Martins. Quanto mais não fosse, por puro pragmatismo: as pessoas podiam reagir mal à desumana humilhação daquela mãe. Não travou André Ventura e ele esteve certo na opção e eu errado na presunção.

UM HOMEM CONTEMPORÂNEO

Há, em Ventura, um desvio típico dos sociopatas. Ele consegue ir onde outros param. Não por ser mais corajoso (teme todos os que têm poder) ou mais esperto do que os outros, mas porque foi despojado dos mecanismos emocionais que nos travam perante a crueldade. Estes são os homens realmente perigosos. Não precisam de ser violentos e até podem ser muito simpáticos. Mas são, e provavelmente é isso que Ventura será, sociopatas. Se forem ver o canal de YouTube do Chega, verão como o partido tratou esta audição e percebem como Ventura e os seus companheiros não viram, naquela mãe, o mesmo que quase todos vimos. Viram uma adversária política como qualquer outra, pronta para ser arrasada.

Porque digo que Ventura tem razão e eu não? Porque ele sabe que o seu crescimento político depende do mesmo que dependeu o crescimento das correntes ideológicas de que é próximo: da apatia perante o sofrimento do outro. Não é da raiva que a extrema-direita se alimenta. É do egoísmo desumanizador. Aquele que as grandes ideologias usavam em nome de um “bem maior”, de um novo devir, mas que esta nova direita, que casa o autoritarismo neofascista com o individualismo neoliberal, usa em nome do ressentimento individual.

Para neutralizar a empatia não faria sentido, para além de umas palavras iniciais de circunstância, Ventura tratar aquela mãe com humanidade. Dizemos que a extrema-direita quer degradar o parlamento para degradar a democracia. É mais e menos do que isso. Degrada a humanidade para degradar a convivência social. Há uma diferença entre o assalto dos militares chilenos ao palácio de La Moneda para derrubar Allende e a invasão do Capitólio, em Washington, ou do Congresso, em Brasília, pela turba. Há uma diferença entre a ordem da repressão militar e a distopia daquelas imagens, onde “patriotas” defecam em salas de deputados. A desordem que estes novos políticos procuram não é política, é moral.

Isto pode não ser assim tão diferente da baderna criada pelas SA antes da subida de Hitler ao poder – alimentar a desordem para propor a ordem. Ou talvez seja mais profundo e novo do que isso – esta extrema-direita não propõe uma nova sociedade, anuncia uma sociedade que já chegou. A que podemos observar diariamente nas redes sociais, onde foram apagadas todas as regras de convivência. Este é o mundo novo, onde a empatia foi abolida e, descorporizados e anonimizados, nos vamos transformando todos em sociopatas. Talvez Ventura seja apenas o mais contemporâneo dos homens.»


23.6.24

Janelas, muitas janelas (3)

 


Arte Nova, Riga, Letónia, 2003.

Boris Vian morreu num 23 de Junho

 


Boris Vian morreu com 39 anos, vítima de crise cardíaca, em 23 de Junho de 1959. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, teve uma vida muito acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.

Célebre ficou também uma canção – Le déserteur – que foi, durante muitos anos, uma espécie de hino para todos os que recusavam a guerra – incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início da Guerra da Argélia.


(Serge Reggiani : Dormeur du Val , de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)

Mas não só. Ficam mais duas:





.

E que tal um novo imposto para bocas apatetadas como esta?

 


Sentados continuamos

 


Além de continuar “velho e macho”, o Conselho de Estado guinou à direita

 



«A utilidade do Conselho de Estado pode ser discutida e a sua importância para o contexto político questionada. Mas a sua composição não pode ser ignorada. Enquanto existir este órgão com membros escolhidos por representantes políticos legitimados pelo voto, não podemos baixar os padrões de exigência. Depois da eleição dos membros eleitos pela nova Assembleia da República, confirma-se o que se antecipava: o Conselho de Estado não espelha a realidade do país.

Desde logo, salta a vista a gritante desproporção entre homens e mulheres, como tão bem notou Susana Peralta no seu artigo de opinião neste jornal. Em 19 membros, apenas quatro são mulheres: Leonor Beleza, Lídia Jorge, Joana Carneiro e a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. As três primeiras escolhidas pelo Presidente da República e a última por inerência. Nenhuma escolhida pelos partidos.

Em segundo lugar, a média de idades dos membros deste órgão é igual à idade de reforma em Portugal: 66 anos. Entende-se que para um órgão consultivo do Presidente da República deva existir alguma senioridade e uma experiência acumulada relevante. Sabemos que o facto de os ex-presidentes da República terem assento por inerência não ajuda a fazer descer esta média. Assim como os cargos que dão direito a estar sentado à volta da mesa do Conselho de Estado são muitas vezes desempenhados por pessoas que precisam de muitos anos carreira para lá chegar, como os casos do presidente do Tribunal Constitucional ou do presidente da Assembleia da República. Ainda assim, este continua a ser um órgão demasiado envelhecido na sua composição.

Infelizmente, estes dois factos têm sido mais ou menos transversais às diversas composições que o Conselho de Estado foi tendo ao longo dos anos. No entanto, existe uma terceira observação sobre a qual vale a pena refletir e que incide especificamente sobre a atual composição. Destes 19 membros, apenas dois não são de direita. Descontemos, por honestidade intelectual, os casos das duas independentes nomeadas pelo Presidente da República (Joana Carneiro e Lídia Jorge) e dos dois independentes por função (presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes, e provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral). São, portanto, dois em 15.

A questão é relevante não por uma questão ideológica, mas pela desproporção em si. E pelo que ela nos diz sobre a falta de representatividade deste órgão.

Nas maiorias absolutas de Cavaco Silva, por exemplo, houve sempre, pelo menos, cinco representantes de centro-esquerda ou de esquerda no Conselho de Estado (Álvaro Cunhal chegou a ter assento). É certo que o Presidente da República era então o socialista Mário Soares, o que ajudava a alcançar este equilíbrio. Tal como nos oito anos de Governo de António Costa o equilíbrio entre esquerda e direita neste órgão foi sempre preservado pelo facto de haver um primeiro-ministro do PS e um Presidente da República do PSD.

Quando nos dois palácios houve coexistência de cores políticas, o desequilíbrio acentuou-se: com Jorge Sampaio e António Guterres havia apenas três sociais-democratas e com Cavaco Silva e Passos Coelho havia pelo menos cinco socialistas (dois eram ex-presidentes da República). Mas a estabilidade dessas legislaturas, a composição do Parlamento e a representatividade verificada nas eleições nacionais justificavam, em certa medida, essa desproporção. Podia considerar-se que havia alguma representatividade. Mas hoje em dia a questão é paradoxal.

Senão veja-se: temos atualmente o quadro parlamentar mais fragmentado desde o 25 de Abril; PSD e PS detêm o mesmo número de deputados; o PS é o maior partido autárquico; o Governo Regional da Madeira continua preso por arames; e o PS acaba de sair vitorioso, ainda que por uma curta margem, das eleições europeias. O que é que isto nos diz? Que temos um país dividido, embora com uma inclinação para a direita. No entanto, é precisamente na altura em que temos o quadro político mais instável, mais fragmentado e mais imprevisível, quer a nível nacional quer a nível regional, que temos também o Conselho de Estado mais desequilibrado de sempre.

Bem sabemos que o Conselho de Estado pouco ou nada decide e que, para cúmulo, este Presidente da República pouco recorre a consultas além do seu apurado instinto político, alimentado por Fortimel, por idas noturnas à Santini ou por passeios à beira-rio, tornando o adjetivo “consultivo” deste órgão num mero adorno decorativo.

Se a isto somarmos alguma perda de solenidade do Conselho de Estado nos últimos anos, com reuniões interrompidas para serem retomadas semanas depois ou com fugas de informação sucessivas e seletivas, não estará na altura de olharmos para este tema com seriedade? Para que serve e a quem serve afinal o Conselho de Estado? Os moldes em que existe atualmente fazem sentido ou precisam de uma verdadeira reforma?

Em vez de esperarmos 30 anos para podermos ter acesso à atas das reuniões, procuremos as respostas hoje. Olhemo-nos ao espelho para evitarmos lamentos quando só pudermos olhar pelo retrovisor.»