«Em França, a esquerda une-se para ser alternativa à extrema-direita e os seus eleitores não serem obrigados a votar em neoliberais para derrotar os fascistas, a votar na causa para evitar a consequência. Em Portugal, apesar da vontade de amarrar o PS a este governo, ainda não chegamos a esse ponto. Mas há o risco de não estarmos a viver apenas mais um momento de alternância no poder. Costa pode ter sido para o PS o que Hollande foi para o PSF: a última oportunidade desperdiçada.
Perante a onda que varre a Europa, a esquerda deve olhar para cada eleição como uma oportunidade para reverter a situação perigosa em que se encontra. O PS tinha de vencer as europeias, por pouco que fosse. Era a única forma de manter alguma autonomia estratégica no debate sobre o próximo orçamento. Se o governo não cair no fim do ano, como o PSD secretamente desejou mal tomou posse (é de fontes da AD a confissão, logo nos primeiros dias de governo, de querer repetir Cavaco Silva de 1987), os dois próximos atos eleitorais serão fundamentais para a esquerda.
Os convites do Livre para reuniões inter-partidárias são tão irrelevantes como foram os do Bloco, no início da legislatura. São os possíveis aliados juniores a querer ganhar relevância para uma possível negociação. Estes entendimentos não se começam assim, com os jornalistas à porta das sedes partidárias. Mas uma coisa é certa: é agora que este debate se faz. Se, como alguns parecem pensar no PS, as conversas esperarem pela proximidade das eleições, preparam-se para o desastre. Os candidatos são os que estiverem à mão ou já se tiverem chegado à frente. Podem nem ser compatíveis com entendimentos.
Em autárquicas e presidenciais, a correlação de forças obriga a esquerda a unir-se, sem medo das acusações de “frentismo” ou de “radicalismo” de quem a quer ver defensiva e derrotada. As diferenças entre os vários partidos são tão consideráveis que nem os três à esquerda do PS – BE, PCP e Livre – se poderiam unir sem que o resultado fosse uma soma negativa. Mesmo o BE e o Livre, com mais proximidade, têm culturas de militância tão radicalmente diferentes que nunca se conseguiriam entender. Não há condições para frentes de esquerda como vemos em França. Mesmo lá, ela só acontece pela dimensão da derrota histórica, pelo risco de continuar a deixar ao macronismo neoliberal a oposição à extrema-direita, engordando Le Pen. Ainda estamos longe desse cenário. Se o PS se tornar bengala da AD, chegaremos lá rapidamente.
Mas quer em autárquicas, quer em presidenciais, as alianças de esquerda são perfeitamente possíveis. E são necessárias. Em autárquicas, ganha quem ficar em primeiro e fragmentação da direita favorece a esquerda. Em Presidenciais, há um sistema de duas voltas. E estes são os próximos desafios eleitorais.
Nas autárquicas, não está em questão o peso de cada partido no país, mas o peso simbólico das câmaras de Lisboa, Porto e mais algumas cidades importantes em que os entendimentos façam sentido e a direita esteja no poder. No caso de Lisboa e Porto, as próximas eleições podem ser a última oportunidade para recuperar as autarquias, se é que ainda se vai tempo. O processo de gentrificação, com a expulsão das classes média e pobres, fez delas condomínios de ricos e estrangeiros rodeados de alojamento local e de uns poucos bairros sociais. Concelhos como Sintra ou Vila Nova de Gaia podem ser demograficamente relevantes, mas o peso político de Lisboa e Porto não pode ser desprezado.
Em Lisboa, é preciso um candidato capaz de derrubar a impressionante barreira de propaganda de um dos mais incompetentes presidentes de Câmara que a capital já conheceu. Se Duarte Cordeiro, o candidato mais sólido contra Carlos Moedas, se mantiver indisponível para regressar à política, o PS terá de encontrar uma figura politicamente muito forte para este combate. No Porto, com a saída de Rui Moreira, não me parece que a esquerda lá vá com figuras como Manuel Pizarro. Não permitir que este período se transforme numa enorme travessia no deserto – ou até no início de um inexorável declínio – implica abandonar as lógicas paroquiais dos partidos. E talvez seja fora delas que a esquerda consiga encontrar uma figura que a leve de volta à Câmara do Porto para reverter a violenta gentrificação que o está a esvaziar.
Poucos meses depois das autárquicas, vêm as presidenciais. Há duas décadas que a direita consegue, através do Palácio de Belém, condicionar a governabilidade e a vida política. Com o seu regresso ao governo e uma maioria larga na Assembleia da República, esse poder renovado seria um enorme risco para a oposição. Com António Costa à frente do Conselho Europeu e António Guterres bloqueado pelo calendário do seu mandato na ONU (se pudesse e quisesse, limparia as presidenciais logo na primeira volta), a esquerda tem de encontrar um candidato único para enfrentar as imensas possibilidades que a direita, com a ajuda das televisões ou do próprio PS, inventou – Marques Mendes, Paulo Portas, Passos Coelho, Durão Barroso, Santana Lopes, Gouveia e Melo. Não me parece que a repetição de candidaturas passadas resulte.
Claro que o PS pode apostar num candidato como Mário Centeno, o herói das “contas certas” para um país adiado, tentando que todos se esqueçam do preço que isso teve no estado lastimável em que está a administração pública. Mas continuará a jogar no campo da direita, nos critérios de credibilidade da direita, na narrativa política e económica da direita. E tem sido esse hábito a determinar a derrota estrutural que tem pela frente: não ter um discurso próprio, alternativo e mobilizador. Não perceberá que as batalhas que perde são episódios de uma guerra mais trágica, em que é incapaz de construir a sua própria narrativa.
A direita governa o país, as duas principais cidades, as duas regiões autónomas e tem a Presidência da República e a maioria no Parlamento. Romper este quase monopólio de poder é condição para que a saudável alternância não se transforme num bloqueio estrutural. Basta olhar para a Europa e para o voto jovem para perceber que esse risco é bem real.»
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