«Nós vimos o desespero daquele povo. Nós vimos homens a morrer ao tentar subir para as rodas de um avião. Nós vimos mulheres com crianças ao colo a esborracharem-se para tentar entrar no aeroporto. Nós vimos. Nós sentimos. Nós sentimos empatia. E a empatia é o sentimento mais potente que o ser humano pode ter. Empatia é amor pelo desconhecido. É humanidade desconstruída peça a peça. É nesse momento que retiramos os rótulos, os títulos, a cor de pele, a religião e a nacionalidade... É nesse momento que percebemos que aquele mundo gigante de diferenças se transforma num espantoso nada.
A empatia é a coisa mais bonita que podemos sentir, é o que nos agarra os pés à terra, é aquela voz que nos sussurra ao ouvido a dizer que a bondade tem de ser sempre maior que a maldade. Agora seguremos essa empatia. Agarremo-la bem. Não a percamos já. Guardemo-la num lugar seguro. Guardemo-la no lugar mais seguro do nosso coração.
Há anos que penso sobre este assunto. Nem sempre sei para onde levar os meus pensamentos, mas esta relação entre a humanidade, a história, as estórias, a notícia e a nossa empatia ou a falta dela, para mim, é o centro do universo. O ser humano enquanto animal pouco ou nada evoluiu desde que saiu do vale do Rift nas montanhas da Etiópia. A relação entre a história e as estórias é complexa. É a história que nos ensina, é a história que nos explica o presente e aponta o caminho do futuro, mas por vezes nada nos diz sobre as estórias ou sobre todas as estórias. E isso é muito injusto porque as estórias são as nossas vidas e as vidas dos outros. A notícia é perversa. A notícia vive do entusiasmo, vive do medo, da extravagância, do espanto, do deslumbramento, mas também da empatia. A notícia conta apenas algumas estórias e por isso conta mal a história. A notícia só sobrevive da alternância. A continuidade mata a notícia. E quando matamos a notícia, aos poucos deixamos morrer a empatia. E ao deixarmos morrer a empatia, a história e as estórias vão perdendo a humanidade. E nós não somos ninguém sem o outro e por isso vamo-nos perdendo na imensidão de notícias que já não o são, e permitimos que a estória da nossa vida se faça apenas com pequenas doses de empatia, que não fazem história.
As preocupações humanitárias são algo de muito recente na nossa história. Estão ainda numa fase embrionária. A Cruz Vermelha foi fundada em 1863 para tentar tratar como pessoas as vítimas dos conflitos. A Carta Internacional dos Direitos Humanos é de 1948 e ainda não entrou nas nossas cabeças. Os Médicos Sem Fronteiras, a maior e mais antiga organização não-governamental médica do mundo, foi criada em 1971 com o intuito de oferecer cuidados médicos à proporção das necessidades, e ainda assim quão longe estamos de qualquer espécie de igualdade e justiça — há 50% da população mundial que não tem acesso a cuidados de saúde e 25% não tem acesso a medicamentos essenciais. Um ser humano preocupar-se com a vida de outro ser humano que não conhece, que não compreende a língua, que não se assemelha na cor ou na cultura, que não comunga da mesma religião, é algo que começou há um segundo, se olharmos para a história da humanidade como tendo 24 horas.
Eu tinha 20 anos quando começou a guerra no Afeganistão, em 2001, acho que foi a primeira guerra que vi com atenção na televisão. Se a memória não me atraiçoa, eu não senti qualquer empatia. Eu apenas achava que era espectacular ver a brutalidade bélica e os jornalistas de capacete na cabeça a gritar pela nossa atenção. Certamente, a comunicação era mais pobre, mais incompleta. “Ninguém” nos contava as estórias do Afeganistão e, por isso, a história tirou-lhe a humanidade.
Uns dez anos mais tarde, quando fui trabalhar para o Afeganistão, com os Médicos Sem Fronteiras, descobri uma coisa absolutamente incrível: são pessoas, como eu, que lá vivem. Incrível descoberta! Não sei como ninguém me deu um Prémio Nobel logo ali. Mas a minha ignorância de décadas tem explicações históricas, pela falta de estórias que me chegavam, pela falta de humanidade com que se fala de um conflito armado e, embora a guerra tenha piorado durante 20 anos, a notícia pouco passou de 2001 e por isso não me lembro de sentir empatia, essa força motriz que nos faz ser humanos.
Por isso, digo: seguremos bem essa empatia, guardemo-la num lugar seguro. Um lugar onde conheçamos bem o caminho. Porque a notícia vai passar, as estórias vão deixar de nos aparecer e a história vai continuar sedenta de humanidade.
Por todos os conflitos armados, por todas as pessoas que sofrem o inimaginável, por um mundo melhor, por amor ao próximo e por amor-próprio, guardemos bem essa empatia.»
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