4.9.21

A política em forma de guerra

 


«A campanha para as eleições autárquicas ainda não começou oficialmente, mas já é bem visível, até nos cartazes cujas mensagens são declarações de guerra, que elas vão acentuar a tendência dominante de asfixia do pensamento. A desqualificação do adversário e o triunfo de um tom acusatório e de deslegitimação têm substituído progressivamente a argumentação racional no debate político. A radicalização em curso não resulta da afirmação de posições radicais fundadas, mas de uma incapacidade de discussão. E cada vez mais o discurso se centra na designação de um inimigo político.

Já seria preocupante se o fenómeno estivesse exclusivamente localizado na arena partidária, em momentos de luta por pequenos e grandes triunfos ou, pura e simplesmente, pela sobrevivência. Acontece, porém, que esse movimento tem uma dimensão mais vasta e penetrou progressivamente no espaço público, em geral, e já se instalou nos media sob várias formas, inclusivamente como feira das opiniões. E assim nos aproximamos de um apagamento da ideia de espaço público, no sentido em que ele foi teorizado a partir do século XVIII. O estremecimento dos quadros institucionais em que decorre a vida política atingiu também com severidade o espaço público. Não é apenas a lógica da guerra e da mobilização total que o afecta, é também a saturação. Por exemplo, a saturação do discurso económico.

Para perceber tudo isto, serve de ajuda o quadro proposto pelo jurista Carl Schmitt (nazi, é verdade, mas tão importante para o conceito de político e das suas categorias modernas), ao definir a comunidade política pela lógica binária amigo/inimigo. A distinção amigo/inimigo como critério do político é, na concepção de Schmitt, uma relação existencial, uma questão de vida ou de morte, um dos dois tem de desaparecer. Não é uma luta do Bem contra o Mal ou do Belo contra o Feio: Schmitt não pratica a amálgama desta oposição com considerações morais ou estéticas. Não estou a insinuar que está em curso a instalação do fascismo e a recuperação do conceito de político que foi tão importante para o Terceiro Reich. A lógica totalitária dos fascismos precisou de outros factores: o recurso ao mito, por exemplo (sobre este assunto, leia-se O Mito Nazi, um livro de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe que acaba de sair em tradução portuguesa na editora Documenta). E esses factores que engendraram uma ideologia como lógica de uma ideia levada às últimas consequências não são repetíveis, já não podem ser actualizados. Além disso, o medium dos conceitos já não tem qualquer importância no discurso político que procede pela desqualificação e deslegitimação do adversário. Toda a tendência para estabelecer comparações entre épocas diferentes e descontínuas é fonte de grandes equívocos.

Mas é bem visível a polarização e a radicalização que atravessam hoje o espaço público, onde cada vez é mais difícil distinguir os meios de comunicação clássicos daqueles que a digitalização colocou ao dispor de toda a gente. A vida pública e política decorre ao ritmo das grandes indignações e emoções. Governa-se fazendo apelo à adesão emocional; exerce-se a oposição cultivando o tom de indignação. E assim se progride na gritaria infecunda, em zonas perigosas de irracionalidade, de onde a política, em rigor, foi expulsa. O espaço político substituído por um campo de batalha: eis a manifestação mais visível de um mal-estar que não pode acabar bem. E as campanhas eleitorais, na medida em que são o momento em que tudo isto emerge no seu grau mais elevado, enquanto caricatura, tornaram-se um contributo notável para a degradação política e do espaço público. É a isto que estamos a assistir e não é coisa bonita de se ver: o espaço público político transformado numa feira onde cada um avança para o outro para lhe arrancar das mãos o objecto. E assim se medem as forças e as fraquezas. Nada resta para pensar, muito sobra para indignar e odiar. A comunidade política, que sofreu um enorme estremecimento provocado pelas forças do mercado e pela inversão da hierarquia entre interesse público e interesse privado, entrou num processo de suicídio assistido pelo espaço público.»

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