«Confesso que às vezes me interrogo se determinados aspectos da actividade política não fazem mal à cabeça. Não encontro outra explicação para que homens inteligentes passem a limitados para não dizer outra coisa, homens íntegros passem a mentirosos em série, homens que sabem muito passem a rudimentares ignorantes, homens que têm mundo e experiência fiquem boçais, homens que percebem mecanismos complexos fiquem ao nível das “influenciadores/as” de revistas do nosso provinciano jet set, homens que tomaram muitas vezes decisões difíceis e arriscadas fiquem intimidados com medo pânico das aberturas dos telejornais de escândalos.
Veja-se o caso mediático obsessivo das “duas gémeas”, que devia enjoar qualquer pessoa de bem e saudável da cabeça. O que é que levou o Presidente a não ter dito desde o primeiro dia que “sim, de facto meti uma cunha a pedido do meu filho, porque fiquei condoído com a situação de duas meninas com uma doença terrível e estava convencido que podia fazer alguma coisa para lhes minorar o sofrimento e o dos pais. Reconheço que fiz mal, mas não foi por mal, criei uma situação de desigualdade e abusei da minha influência, pelo que peço desculpa aos portugueses”?
Ninguém pediria a queda do Presidente, chamaria a atenção para o problema nacional das cunhas, e ficaria aos olhos de todos como um homem que fez uma asneira, mas que nunca tinha actuado por interesse próprio e o fizera por sensibilidade para com o sofrimento. Não seria o primeiro Presidente que actuava assim, havia também no passado um outro presidente que, quando defrontado em visitas oficiais com pedidos para que alguém doente pudesse ser internado com celeridade, metia também uma cunha, ou remetia a pessoa doente para um seu ajudante ou um acompanhante da visita para resolver o problema. Dizia-se ironicamente que havia nos hospitais da província visitados uma “ala do Presidente”…
O Presidente não fez nada disto, e enredou-se e enreda-se todos os dias em todos os tipos de mentiras do catálogo que os antigos fizeram ainda em latim: mentira, omissão da verdade, sugestão de falsidade. E cada dia lhe cai em cima a contradição entre o que está a dizer, e um email, um testemunho, um telefonema, o rastro de actos a que certamente não atribuía na altura particular importância, porque não estava a esconder nada e não achava que houvesse alguma coisa a esconder. E todos os dias as suas contradições e as contradições de todos os que ficaram envolvidos nesta história abrem um telejornal. A que se segue mais outra contradição para tapar a anterior e o desgaste reputacional é infinitamente maior a cada dia que passa, com todos os que tocaram no caso das “gémeas” envolvidos num labirinto que eles próprios teceram.
O mesmo se aplica aos esquecimentos inverosímeis como o de Pedro Nuno Santos, e de muitos outros que nunca conseguirão explicar que “se esqueceram” de coisas que ou sabiam muito bem ou deveriam procurar, nem que fosse quando começou o escândalo, porque elas acabam por aparecer. E, pior, ainda que tentem dizer que não sabiam ou não se lembram de actos relevantes das suas responsabilidades, que, quando os praticaram, lhe pareciam normais, mas que numa dada altura ou em certas circunstâncias depois se revelaram graves.
Recordo que em nenhuma circunstância estamos a falar de crimes, porque aí as coisas mudam de carácter, mas de más práticas, negligências, incompetências ou desatenções. São graves e podem trazer custos para as pessoas e o país, mas que, a terem sanção, ela é de outra natureza, disciplinar, de carreira ou reputacional. Mas o exagero actual, se rende em termos de audiências, tem também o efeito maligno de transformar más práticas em crimes e assim relativizar o crime.
O clima de radicalismo que se vive em Portugal e nas democracias tem também que ver com isto. Não é que não deva haver denúncia e escrutínio, mas o efeito do exagero, o jornalismo persecutório que vive da excitação muitas vezes de trivialidades, o emergir do mundo sinistro da cloaca das redes sociais ao ar pressupostamente livre dos media aniquila aquilo que devia ser o trabalho fundamental do jornalismo e que dá o nome à coisa, mediar. O jornalismo lida com os factos, deve ser fiel aos factos, e deve procurá-los, quando aparecem mentiras, ocultações e enganos, mas não pode ignorar o contexto e o sistema de mediações que todas as escolas de Jornalismo ensinam, mas que a tendência para o “reality show” sensacional faz esquecer todos os dias.
O chamado “jornalismo de investigação” é uma das tarefas fundamentais do jornalismo em democracia, mas a “investigação” é um instrumento, o produto final é que é jornalismo sem adjectivação. E este não vale apenas pela qualidade do instrumento que é a investigação, mas por outras qualidades que fazem a mediação e que vão da qualidade da escrita ou da fala ao conhecimento da lei, do equilíbrio do julgamento e da ponderação da gravidade do que se está a dizer, na enunciação da complexidade, por adiante. Senão não há distinção entre o jornalismo e os pasquins de escândalos que precisam do exagero para se venderem ou a reprodução acrítica das denúncias anónimas e da bufaria vingativa ou dos telefonemas e espectáculos que o Ministério Público divulga ou anuncia quando não consegue ter provas.
Comecei este texto com a referência a “determinados aspectos da actividade política que fazem mal à cabeça” e acabei por falar das perversões do jornalismo, porque há uma forte correlação entre os dois. O que se passa é que cada vez menos a acção política tem autonomia do contínuo político-mediático, com políticos a serem formados e a viverem toda a sua vida útil dependurados obsessivamente nos jornais, nas rádios, nas televisões e agora, cada vez mais destrutivamente, nas redes sociais. Isso significa que quando o sistema mediático se volta para o sensacionalismo, para uma ténue distinção entre a verdade e falsidade, a ignorância agressiva, a calúnia como respiração, o mundo da denúncia e da vingança, eles que se alimentaram sempre da promiscuidade com os media, quando caem em desgraça, ficam desvairados e só fazem asneiras.
O sistema que alimentaram prepara-se agora para os comer. Vivos.»
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