«Muitos dos que estudam a morte de Cristo esbarram em Judas: trai-O por 30 moedas ou voluntariou-se para o mais vil papel da história a fim de que a missão fosse cumprida?
A saída de António Costa obriga-nos a voltar ao princípio: à missão, ao sucesso, ao acidente político de 7 de Novembro. E ao gabinete de São Bento, onde foram encontrados 76 mil euros em notas escondidas nos armários do chefe de gabinete.
Traído... António Costa? Não lhe passava pela cabeça tal, claro. Mas o principal problema desta história não é a descoberta do dinheiro. Ou mesmo a falha na avaliação da personalidade de Vítor Escária. É, pelo contrário, a razão para a sua escolha. Porque o talento essencial de Escária passaria por monitorizar e acelerar a máquina do investimento dos fundos europeus. Desbloquear problemas. Essa passou a ser a principal motivação do chefe do Governo: executar o PRR que ajudou a criar em Bruxelas, como resposta à estagnação da pandemia. E António Costa sabia que teria de lutar contra a própria legislação que emperra o investimento e que ele não conseguiu mudar em oito anos.
Antes de Vítor Escária, António Costa tinha tido como chefe de gabinete a jurista Rute Faden (atual presidente do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento) e Francisco André, igualmente jurista com experiência em assuntos europeus e atual secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Perfis claramente diferentes de Escária, economista, que entra apenas em 2020 e representa um salto de conceito. Tão grande, aliás, que chega a ser perplexizante, visto hoje. Contudo... um ex-assessor económico de Sócrates com dinheiro vivo proveniente de Angola (como afirmou o seu advogado), não é uma circunstância absurda atendendo ao que se passou naquele mundo opaco narrado pela Operação Marquês. Escária esteve também, por razões que o próprio não esclareceu ao Expresso, em contacto com o mundo de Ricardo Salgado no estranho caso do banco líbio comprado em parte pelo GES, o Aman Bank.
Quando se contrata um motorista especializado em altas velocidades, há sempre o risco de despiste. António Costa é a Lady Di do banco de trás de um Mercedes na Ponte d"Alma.
O país mergulha assim numa tragédia política e económica. Costa tenta que a linha de alta velocidade não fique meio ano parada, que os fundos comunitários mais importantes mantenham o ritmo, que os investidores internacionais não se assustem e continuem cá. O diagnóstico é claro: não podemos viver sem capital estrangeiro.
O caso "Influencer" trouxe à superfície essa inevitabilidade dos próximos anos: a dupla Costa-Galamba estava tão empenhada na dinamização das máquinas de investimento das grandes corporações da energia quanto estará o PSD, ou Pedro Nuno Santos se chefiar o Governo. Porque, como disse anteontem a secretária de Estado da Energia e Clima, Ana Fontoura, na COP-28, no Dubai, "não teremos transição climática se não for geradora de emprego". E todos sabemos que a anestesia para os crimes ambientais nunca foi outra senão a da criação dos postos de trabalho.
Costa enfrentou ainda outro paradoxo. A União Europeia instala princípios e legislações que travam esta espiral desenvolvimentista sem limite, mas também é a própria UE a querer resultados para além desses limites. A proposta do lítio é essa: Portugal, a mina africana da Europa. Há que salvar a Volkswagen, a Renault e a Peugeot-Citroen a qualquer custo. E sem baterias de lítio não conseguem, pensam. Por isso mesmo, quatro dias depois de pedir a demissão, o primeiro-ministro faz uma conferência de imprensa em São Bento a defender os processos de investimento para que este progresso não pare.
Repetiu o mantra, aliás, na última terça-feira, quando foi inaugurar uns navios elétricos à Margem esquerda do Tejo ("a certa", disse), sublinhando então que o país tem energia solar, eólica e hídrica, e deve ter também o lítio - como se não tivesse compreendido que foi exatamente isto que criou condições para o acidente: levar ou limite a legislação que protege áreas naturais e pequenas comunidades. Já para não falarmos que a margem "certa" de Costa, subliminar, é também a margem esquerda do aeroporto - Alcochete ou Montijo - sobre a qual a Comissão Técnica Independente se pronunciará esta semana e com quem Escária falava sistematicamente. Uma nova cidade aeroportuária do outro lado. O betão virtuoso.
António Costa continuaria a alienar as joias em nome do PIB. Há também que acelerar a exploração dos metais raros marinhos, porque os temos., etc... Talvez não tenha ouvido a chefe do Governo da Islândia, que falou na COP-28, poucos minutos depois dele: "Temos também de fazer menos. Os sistemas económicos concentram-se em maximizar a produção e o consumo, em vez da sustentabilidade e do bem-estar".
Simon Sebag Montefiore diz no livro O mundo - uma história da humanidade que "nenhuma época se apercebe da sua sorte até ter passado". Se as novas gerações não votarem nem estimularem a consciência dos mais velhos, será exatamente assim. Entretanto, sem notar, envolvido na bolha do poder, Costa, o político do Nissan elétrico, equilibrado e por vezes vanguardista, envelheceu.»
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