«A TAP é uma das bandeiras políticas de António Costa. Em dezembro de 2014, então líder da oposição, dizia, num comício em Castelo de Paiva: “É fundamental termos hoje a TAP, como foi fundamental no passado termos as caravelas que fizeram os Descobrimentos.” Menos de um ano depois, foi a votos com um programa que afirmava que a TAP era “uma ferramenta de primeira ordem para a projeção internacional de Portugal”, “um veículo fulcral de ligação à África lusófona, ao Brasil, aos principais destinos da emigração portuguesa”.
A sofreguidão de recuperar as caravelas levou Costa a negociar, através de um consultor informal, seu amigo, um acordo que trouxe a TAP de volta à esfera pública, deixando a companhia refém de uma governança bizarra, segundo a qual o Governo tinha metade do capital, mas apenas 5% dos direitos de decisão. Data de então outra frase lapidar de Costa a propósito da TAP: “A execução do programa do Governo não depende da vontade de particulares que resolveram assinar um contrato com o Estado português em situações precárias.”
Depois veio 2020 e a decisão crítica de salvar uma companhia à beira do colapso – devido a anos de prejuízos acumulados e a uma pandemia que colou os aviões ao chão – com mais de três mil milhões de dinheiro público. Em dezembro de 2021, a TAP voltava a ser 100% pública. Todo o processo foi, como não podia deixar de ser, acompanhado das correspondentes frases pomposas acerca da natureza estratégica da companhia.
Critiquei várias vezes a decisão de salvar a TAP. A prioridade de um país com carências graves na Saúde, na Educação ou nos transportes públicos não pode ser gastar dinheiro público numa companhia aérea que não fornece um serviço essencial. Quanto aos vários argumentos acerca do contributo da TAP para o PIB, o turismo, o emprego ou as exportações da economia portuguesa, todos eles enfermam de uma falácia comum. Essa falácia consiste em supor que na ausência da TAP toda a sua atividade económica desapareceria, ao invés de ser retomada (pelo menos em grande parte) pelas companhias concorrentes, ou até por uma nova que começasse do zero, tendo adquirido parte da massa falida da TAP.
Recomendo a leitura do excelente livro Milhões a voar, de André Pinção Lucas e Carlos Guimarães Pinto. Os autores recorrem a estatísticas do turismo, do negócio aéreo e a exemplos de empresas que faliram noutras paragens, para desmontar os argumentos fatalistas acerca do nosso futuro coletivo, se, em 2020, a companhia tivesse ido à falência.
Por esses dias, Pedro Nuno Santos certificava: “Se é o povo português a meter dinheiro na TAP, é bom que seja o povo português a mandar.” “ [Isso implica que] o Estado acompanhe todas as decisões com impacto relevante para a empresa.” E deixava no ar o aviso: “A música agora é outra.” Num mundo ideal, estas afirmações traduziriam o compromisso do Governo de António Costa com o desígnio histórico-patriótico-económico de uma empresa que ficou estreitamente ligada ao seu legado político. Isso não tornaria a despesa de 3,2 mil milhões de euros numa boa decisão, já que estes teriam feito muito mais falta para suprir as carências que já mencionei. Mas teríamos de reconhecer a honestidade e competência do Governo nesta matéria tão crítica. Ao invés, a comissão de inquérito que começou esta semana revela uma verdadeira bandalheira, uma palavra que escolhi de forma ponderada: “situação de grande desordem ou de desrespeito de regras, leis, princípios ou ordens”, de acordo com o Priberam.
Em primeiro lugar, parece estranho que o Governo não tenha explicado a Christine Ourmières-Widener, quando esta foi contratada, que se tratava de uma empresa sensível, salva pelo dinheiro dos contribuintes e (felizmente) sob grande escrutínio mediático, na qual importava exercer alguma contenção, evitando encomendas de carros luxuosos, mudanças de sede despesistas ou excesso de contratações de pessoas próximas. Nenhum destes atos é ilícito, mas são de moralidade duvidosa, tendo em conta que são pagos com dinheiro dos contribuintes e dos trabalhadores da TAP, que sofreram cortes salariais, em nome da saúde financeira da empresa. De toda a bandalheira, este é o mal menor.
Em segundo lugar, as explicações dos vários membros do Governo envolvidos nas trapalhadas não são exercícios da transparência democrática que se exigia perante a sensibilidade do tema.
Há o estilo cândido: Medina que convida Alexandra Reis para secretária de Estado sem fazer o trabalho de casa relativamente ao seu passado na TAP e na NAV, com uma indemnização a fazer a ponte entre as duas e depois é apanhado de surpresa pelas revelações mediáticas.
Há o estilo mentiroso: Pedro Nuno Santos que escreve, no ponto seis do seu comunicado de demissão: “Tendo o ministro tido agora conhecimento dos termos do acordo e perante as dúvidas, entretanto suscitadas, solicitou à TAP explicações em torno deste processo.” Sabemos hoje que ele conhecia os termos do acordo e participou ativamente, por intermédio de Hugo Mendes, na negociação da indemnização paga a Alexandra Reis.
Há o estilo espertalhão: João Galamba que vem dizer que a reunião entre membros do seu gabinete e deputados na véspera da audição parlamentar de Ourmières-Widener foi a pedido da TAP, que terá portanto sido informada da agenda dos membros do seu gabinete e dos nossos representantes eleitos por um passarinho.
Em terceiro lugar – e esta é porventura a questão que mais me preocupa –, como é que a orgânica e o funcionamento do Governo refletiam a importância e a sensibilidade de tudo o que tivesse que ver com a TAP? Sabemos hoje que o Governo tomava decisões críticas com uma sucessão de meras mensagens WhatsApp. Sabemos também que o secretário de Estado da tutela pressionou a CEO com o objetivo de alterar um voo (transtornando a vida a mais de duas centenas de pessoas e obrigando a TAP a pagar as devidas compensações) por conveniência de agenda do Presidente da República. O mesmo secretário de Estado avisou a CEO por SMS, num tom ríspido e informal, para não falar com a outra tutela ministerial da TAP (Ministério das Finanças), arriscando assim que decisões críticas da companhia fossem consideradas nulas ao abrigo das regras da sua gestão.
Temos igualmente conhecimento da famigerada reunião entre deputados do PS, membros do gabinete ministerial e a CEO da TAP na véspera de a mesma ser inquirida no Parlamento. Pode ter servido para comparar a receita da bouillabaisse com a caldeirada? Pode, mas não se livram da suspeição de terem preparado a audição do dia seguinte por forma a beliscar ao mínimo o Governo, sobretudo agora que nós sabemos que Ourmière-Widener sabia coisas e tinha mensagens e emails que o PS não queria que nós soubéssemos que existiam.
Bem sei que Pedro Nuno Santos e Hugo Mendes já saíram do Governo. Mas quem tinha obrigação de montar uma orgânica interna que assegurasse a lisura de tudo o que tem que ver com a TAP, como processos formais e colegiais de decisão e a mais absoluta transparência de tudo, era o primeiro-ministro – que ainda não nos deu explicações.»
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