«Este é um texto que nunca pensámos ter de escrever. No entanto, após testemunharmos o modo como a tragédia do passado 28 de março no Centro Ismaili de Lisboa, que tirou a vida à Farana Sadrudin e à Mariana Jadaugy, foi instrumentalizada para gerar mais-valia mediática e política, vemo-nos forçados a vir a público com esta intervenção.
Se falamos apenas em nosso nome, estamos certos, contudo, de que não estamos sós ao dizer que honrar a memória das vítimas significa não condescender com narrativas, no melhor dos casos, equivocadas pela ignorância e, no pior, movidas pela malícia da xenofobia, do racismo e da islamofobia que vão permeando com uma crescente e preocupante visibilidade a sociedade portuguesa.
As manifestações de solidariedade que nos chegaram demonstram como organizações e instituições da sociedade civil portuguesa partilham connosco uma profunda tristeza pela perda de duas mulheres cuja humanidade, altruísmo e dedicação aos outros expressavam o melhor de nós. Se tal nos conforta, a verdade é que para a comunidade ismaili a dor e o trauma são colectivos e transversais: jamais esqueceremos o desespero que vivemos naquele início de tarde, enquanto procurávamos a todo o custo descobrir a identidade das vítimas ou as motivações por detrás de algo que não queríamos acreditar ter acontecido.
A nossa incredulidade e sofrimento foram exacerbados pelo discurso público em torno do sucedido, que, rapidamente, assumiu contornos populistas e falaciosos. Igual a si mesma, a extrema-direita, pela voz de André Ventura, usou de forma grotesca o ataque para denunciar uma suposta “política de bandalheira e de portas abertas”, sendo as suas declarações incessantemente reproduzidas pelos órgãos de comunicação social, muitas vezes de forma acrítica e sem contraditório.
A extrema-direita seria, contudo, incapaz de retirar dividendos políticos de uma tragédia como esta se não beneficiasse de plataformas para o fazer. Vimo-lo na própria noite do ataque, com Ventura a ser convidado a participar num debate sobre “migrações”, que mais não foi senão um palco para disseminar falsidades sobre uma suposta política de imigração descontrolada. Num momento em que a nossa comunidade procura superar a dor e fazer sentido de um ato vil e, aparentemente, isolado, o oportunismo da extrema-direita ofende-nos não só pela sua enorme insensibilidade para com todos aqueles que sofreram direta e indiretamente com esta tragédia, mas também por desonrar a memória da Farana e da Mariana, e do trabalho que desempenharam, incansavelmente, em vida.
Da mesma forma nos ofendeu Mário Machado quando, em frente ao Centro Ismaili de Lisboa, afirmou que “estes templos são locais onde se praticam vários crimes, onde se incentiva à migração ilegal (...) [e] ao tráfico de drogas”. Se de um líder neonazi não esperávamos senão calúnias e falsidades, sabemos que as mesmas têm terreno fértil num contexto em que as realidades das comunidades minoritárias e racializadas como a nossa são ignoradas e tornadas invisíveis.
O Centro Ismaili integra no seu interior um espaço de oração a que chamamos “jamatkhana”, uma fusão da palavra árabe jama’a (grupo ou comunidade) e khana (casa), mas também um espaço aberto de reflexão intelectual e espiritual com vista a promover o diálogo inter-religioso e cultural. É um lugar que ocupa um espaço central nos mapas afetivos e sociais de um sem-número de pessoas das nossas sociedades.
Dizia uma jornalista que, com este ataque, o Centro Ismaili de Lisboa se transformaria num “lugar de paz que nunca o irá voltar a ser”. Gostaríamos de lhe dizer que a paz não é apenas um sentimento mas uma prática e uma construção colectiva e que, no que depender de nós, essa prática irá continuar. Sim, levará algum tempo até que as nossas feridas sejam curadas – ou pelo menos amenizadas – mas, tal como em tantos outros momentos da nossa história, persistiremos na busca de um mundo mais justo e tolerante, também para que tragédias como esta não se repitam.»
Membros da Comunidade Ismaili e activistas anti-racistas
.
0 comments:
Enviar um comentário