«Passos Coelho já pairava sobre a campanha e não era por causa da sua ausência ou das teses que defendem que pode ser o senhor que se segue em caso de desaire de Luís Montenegro. Pairava porque parte da direita tem saudades dele e toda a esquerda gosta de o recordar. Os primeiros acreditam que ele consegue recuperar parte do eleitorado perdido para o Chega e quase todo o que foi para a IL e têm, em parte, razão. Os segundos acreditam que ele perde na comparação com estes oito anos de governo e parece-me que têm ainda mais razão.
Muitas pessoas acham que a reação ativa da esquerda ao regresso de Passos, a quem dedicaram todo o dia, resulta de “nervosismo”. É uma forma um pouco infantil de ver a política. Se os partidos de esquerda achassem que esta aparição era má para eles não faziam dela centro dos discursos. Passos mobiliza e recorda. Mobiliza o eleitorado de esquerda, que depois de oito anos de poder está menos motivado. Um inimigo de estimação dá sempre jeito. E ilustra o que o PS anda a tentar fazer antes de Passos aparecer: colar Montenegro ao período da troika. Não é preciso falar dos cortes das pensões e da austeridade quando os pensionistas veem a cara de Passos Coelho numa campanha. Ela é mais eficaz contra a tentativa de reconciliação de Montenegro com os pensionistas do que qualquer argumento. Porque uma imagem vale mais do que mil palavras.
Claro que a direita tem os seus argumentos e nem todos são falhos de razão. Eu próprio já o escrevi várias vezes: haveria austeridade mesmo sem Passos. Ela até começou antes, com Sócrates. Porque o erro económico dessa escolha (que só parece ter resultado em alguma coisa porque a Europa decidiu, por razões estritamente políticas, voltar a abrir-nos a porta aos mercados financeiros) não foi uma opção nacional.
O que ninguém tira a Passos é o “ir para alem da troika”. Ninguém lhe tira o “se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras". Ninguém lhe tira o ter dito aos professores para emigrarem porque havia docentes a mais (o tempo encarregou-se de o desmentir...) Deixando de fora a forma negligente como fez todas as privatizações, não há reescrita da história que faça ignorar que introduziu novos cortes nas pensões e em escalões de rendimentos muito mais baixos, passando anos num braço de ferro com o Tribunal Constitucional para ir mais longe do que estava no memorando. Nem que faça esquecer que queria um corte permanente num sistema de reformas que provou ser, como se vê, sustentável. Nem nada pode fazer esquecer que, terminado o período de intervenção externa, já em 2014, disse que não era possível voltar aos níveis de remuneração que tínhamos antes desta crise. Errou sempre porque acreditava na austeridade para lá do que nos foi imposto. Até havia, no seu discurso, uma certa volúpia castigadora.
Achar que a direita tem um problema com os mais velhos (os que mais votam) por causa do período de Passos Coelho e, ao mesmo tempo, que Passos é um ativo para a direita é um contrassenso. Ainda assim, como escrevi, a AD tem razão para achar que Passos é uma vantagem eleitoral para tentar ficar em primeiro, reconquistando algum eleitorado perdido para os partidos à sua direita. Da IL, obviamente. Mas também do Chega.
Ainda assim, só parte desses votos. O eleitorado que Passos Coelho disputa ao Chega é o que o Chega conquistou ao PSD nas últimas eleições. Esse é que vem da direita, dececionado com a oposição do PSD a António Costa. Este, que está a fazer crescer o Chega, parece-me ser mais indistinto, pouco ideológico e não há razões para achar que tenha Passos como referência especial. Parte dele até terá dado maioria absoluta a António Costa. Por outro lado, para o eleitorado mais saudosista, o discurso de Passos pode apenas sublinhar a diferença da sua clareza em relação ao discurso sempre vago de Montenegro. Foi por aí que Ventura, que também se vê, com alguma legitimidade, como um descendente de Passos, tentou pergar. Não se pode dizer que a intervenção do ex-primeiro-ministro não lhe tenha dado espaço para isso.
É verdade que, segundo algumas sondagens, o Chega está em grande crescimento no Algarve. É verdade que Pedro Passos Coelho pode ir a parte desses eleitores. Mas a razão porque foi àquele distrito é mais prosaica: é por ali que concorre o homem com quem, dentro da cúpula do partido, está mais alinhado – Miguel Pinto Luz. E uma das coisas em que está alinhado é na oposição ao cordão sanitário em torno de André Ventura. Cada um entendeu como quis a frase que disse no comício: “sei que o Luís não deixará de procurar o que lhe faltar para poder fazer o que é preciso”. Eu interpretei como muitos, até por conhecer as convicções de Passos nesta matéria. Não fica, com ela, apenas a pairar o fantasma de Passos. Fica a pairar o fantasma das relações com o Chega caso Montenegro seja derrotado.
Se alguém tem dúvidas sobre a ausência de muros entre o PSD de Passos Coelho e o discurso do Chega, a associação que fez entre imigração e insegurança deixa tudo muito claro: “Nós precisamos de ter um país aberto à imigração, mas cuidado que precisamos também de ter um país seguro". As duas afirmações separadas nada têm errado, as duas na mesma frase não são aleatórias. Ainda mais quando, acrescenta que hoje as pessoas “sentem” insegurança, faz uma associação ainda mais perigosa: entre estrangeiros e sentimentos de insegurança, que é a base da própria xenofobia.
Poderíamos fazer o debate sobre um suposto meio termo entre “portas escancaradas” e “portas trancadas” que, na realidade, seria um debate entre imigração legal e com direitos ou clandestina e sem eles (mais disponível para o abuso e a exploração) num país envelhecido cuja economia e a segurança social (para ficar pela relação interesseira, apesar de haver muito mais do que isso) depende dos imigrantes. Mas, apesar do esforço para torcer o que foi dito, não foi essa a discussão que Passos escolheu. E não foi um deslize. Como o próprio recordou, já fizera essa mesmíssima associação em 2016. Num tempo, é bom recordar, em que não havia extrema-direita para combater. Este discurso não é apenas uma arma para neutralizar o Chega. É o da direita que Passos hoje representa (já foi diferente) e que, não por acaso, não se chocou com o discurso sobre ciganos do seu candidato à Câmara de Loures, tendo ido, depois disso, dar-lhe apoio direto a um comício.
A associação que Passos fez não é apenas politicamente inaceitável, é factualmente errada. É a Polícia Judiciária que o diz, quando nos garante que apenas 1% da comunidade imigrante se envolve no crime e que “os dados não corroboram o aumento da criminalidade”. Como Marques Mendes já deixou claro, contra as pessoas que dizem e as que não dizendo o “insinuam” (exatamente o que fez Passos), a relação entre criminalidade e imigração é uma falácia: a imigração subiu 80% em dez anos, o número de reclusos estrangeiros diminui 27%. E, acrescento eu, nessa mesma década criminalidade grave e violenta diminuiu 24%. “Não faz sentido nenhum associar imigração e criminalidade”, disse o ex-líder do PSD que, nesta matéria, representa o que eram as posições tradicionais do partido.
O discurso mais cínico diz que esta é a forma de não deixar a extrema-direita à solta e disputar os seus eleitores. Tenho dúvidas que a cópia alguma vez consiga competir com o original. O que faz é normalizar esse discurso, dando-lhe ainda mais força junto da opinião pública e normalizando o seu concorrente. E é uma caminhada sem fim. A que levou a CDU alemã a defender a deportação de imigrantes para o Ruanda para tentar estancar o crescimento da AfD.
É possível que, na segunda-feira, Passos tenha animado algum eleitorado da IL e do Chega e entusiasmado as hostes da AD. Não por causa do discurso sobre imigração, que, por mais popular que seja, é um tremendo tiro no pé, mas pela dramatização que pode trazer à campanha. Só que a dramatização também funciona do outro lado. Como se viu como agarram este presente com as duas mãos, é o outro lado, há tanto tempo no poder, que mais precisa dela. Passos, que usou o discurso do “diabo” no início da geringonça, queixou-se do “papão” que a esquerda tenta agitar. Se não resultasse no eleitorado que ela quer segurar, a esquerda não usaria o nome de Passos. Se a direita achasse que não resultava não teria feito tudo para ser AD e não PàF. Passos fez o tempo andar para trás. Tenho dúvidas que isso seja bom para Montenegro. E acho que ele também tem.»
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