1.3.24

Pode escolher a cor desde que seja laranja

 


«Devo começar por fazer o registo de interesses: participo semanalmente num programa da RTP sobre a situação política e faço uma rúbrica na TSF também sobre política. Não gosto da designação, mas sou “comentadora” e faço-o a partir da minha visão sobre os problemas dos país e do mundo, e assente nos meus valores. Tento ser objetiva, mas não sou “neutra” nas minhas intervenções. E também não sou, nem finjo ser, jornalista.

Nos últimos anos, a paisagem na comunicação social portuguesa teve sobressaltos e mudanças profundas, que merecem uma análise detalhada, mas que não faço aqui por agora. O quero discutir é a perspetiva de quem tem acompanhado, sentada no sofá, as longas emissões noticiosas das televisões privadas nestes tempos de pré-campanha. Não há forma subtil ou elegante de o dizer de outra maneira: creio que as televisões privadas têm hoje um profundo enviesamento à direita, quer no alinhamento e escolha dos temas, quer na maioria do comentário em emissão.

Nos últimos anos, a contabilização dos minutos televisivos dedicados aos principais dirigentes políticos feita pela Marktest mostra que o líder do partido da extrema-direita figurou quase sempre entre os mais favorecidos. Não explica tudo, nem todo o crescimento da extrema-direita em Portugal. Mas a verdade é que essa mediatização se vem somar aos de bots criados nas redes sociais e aos vídeos no Youtube da eficiente máquina de propaganda do Chega, paga pelos seus financiadores. O destaque dado a Ventura nas televisões não é o culpado disto tudo, mas certamente não é irrelevante.

Já no contexto pré-eleitoral, somaram-se painéis de análise política que tendem a ser compostos por comentadores, jornalistas e editores maioritariamente alinhados à direita, e onde figura depois um solitário jornalista/comentador mais ou menos à esquerda, que assegura o “pluralismo”. Na SIC, continuamos a ter preleções semanais e sem contraditório de um advogado com um passado na extrema-direita nacionalista e salazarista (José Miguel Júdice) e de um ex-líder do PSD (Marques Mendes). Na TVI é um ex-líder do CDS (Paulo Portas).

O que parece escassear são comentadores ou jornalistas/editores mais identificados com área do PS. O que, convenhamos, é bizarro num país em que a esquerda tem sido maioritária desde 2015 e onde, há apenas dois anos, o PS teve a maioria dos votos dos portugueses. A comunicação social não tem que mimetizar o país, mas não pode menorizar a participação da área política do maior partido português do seu espaço de opinião e análise.

Neste período em que nos aproximamos das eleições, aconteceram algumas coisas que me parecem extraordinárias. No debate entre Mortágua e Ventura, a líder do Bloco acusou Ventura de ter estado numa Comissão Parlamentar de Inquérito ao serviço dos privados que são acionistas dos CTT e que financiam o Chega. Não há acusação mais grave a um deputado. Nada é comparável: nem os deputados faltosos, nem mesmo a indicação de residência em Angola para ganhar abonos do Parlamento. Esta é a acusação de corrupção da democracia -- o deputado não representa os cidadãos que nele votaram, mas antes interesses particulares em troca de dinheiro para o partido. Pois, por esses mesmos dias, a acusação a Ventura morreu na praia e as televisões entenderam que a polémica interessante era a “avó da Mariana”. Posso discordar da pessoalização da intervenção política, mas a escolha do foco de análise jornalística parece-me inexplicável.

Como é inexplicável que o Diretor-adjunto de informação da SIC consiga argumentar que a associação entre a troika e Passos Coelho é “a grande mentira do século”, o governo da troika foi o PS de Sócrates. Nem sei o que diga… E, dias antes, dava a “vitória” a Montenegro no debate com Pedro Nuno Santos, porque “o modelo económico dele (Montenegro) é o melhor para criar riqueza”. Note-se: não é discordância política que aqui inquieta -- tenho calo, já nem pestanejo quando ouço um neoliberal. O que me deprime é o paroquialismo da análise. Que, discutindo modelos económicos, um jornalista de economia não tente informar os telespectadores sobre os debates que se hoje se fazem sobre a relação entre impostos e crescimento económico no contexto internacional. Isto depois desta estratégia ter sido tentada por Liz Truss no Reino Unido, e ter levado à quase imediata queda do seu governo, não pela oposição da esquerda, mas pela mão da própria direita neoliberal inglesa, tal era a sua falta de credibilidade. Que não se traga a debate as alterações que já se desenham no contexto europeu, que desaconselham a perda de receita fiscal num cenário de desaceleração do crescimento; que não refira o debate sobre a divergência do desempenho negativo da economia europeia em relação à americana -- que tem sido discutida à luz dos efeitos longos da austeridade pós-2010 e do fraco crescimento de salários na Zona Euro; que nada seja dito sobre a chamada nova política industrial e o que está a ser feitos pela Bidenomics. Enfim, que a opinião de um jornalista tenha o gosto de propaganda partidária sem um pingo de informação que capacite os cidadãos para as escolhas que têm de fazer.

Não creio que seja pedir demais às televisões: equilíbrio, informação, pluralismo real e sobriedade. Diz-me um amigo que estas minhas críticas não me ajudam a fazer amigos e que quem se mete com as televisões, leva. Seja. É a vida.»

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