6.3.21

Cavaco e Mordaças



 

Quarenta e nove anos depois de Mário Soares ter publicado «Portugal Amordaçado» (em Paris porque havia muitas mordaças por cá), vem Cavaco Silva falar de «Democracia Amordaçada».
Percebe-se: ele sentia-se provavelmente mais livre em 1972 do que em 2021.
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Teletrabalho, pois claro

 

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06.03.1927 – Gabriel García Márquez

 


Gabriel Garcia Márquez faria hoje 94 anos e morreu há sete. Em rigorosa «peregrinação», fiz um desvio de dezenas de quilómetros para chegar a Aracataca, em 2012, sempre à espera de encontrar algum membro da família Buendía ao virar de uma esquina, um qualquer José Arcádio ou um dos muitos Aurelianos… Foi em Aracataca que se inspirou para criar a mítica aldeia de Macondo, de Cem anos de solidão.

Mais detalhes neste post do ano passado.
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Um ano entre crenças e lições

 


«Depois do acidente nuclear de Chernobyl (1986) acreditei que perante a brutalidade do evento todos os malefícios da indústria nuclear ficassem duradouramente à vista, e cheguei a propor a categoria de "pedagogia da catástrofe".

Depois disso tivemos o ainda maior desastre japonês de Fukushima (2011), cuja gravidade levou a Alemanha a acelerar o encerramento das suas centrais nucleares.

Contudo, sou obrigado a reconhecer que a combinação entre a higiene psicológica do esquecimento e a "indústria da mentira organizada", citando uma expressão de Hannah Arendt, reduz o alcance da minha proposta.

Hoje penso que a crença - herdada, inculcada, propagandeada ao longo da vida pelos interesses que dela se servem - tem precedência sobre o conhecimento. Se uma tragédia, por mais veemente que se afigure, puser em causa uma crença rudimentar, mas poderosa e confortável, não há qualquer garantia de as lições da tragédia serem aprendidas.

Voltando ao meu exemplo do nuclear: num recentíssimo livro, Bill Gates, o santo patrono dos bilionários filantropos, colocou o nuclear no lado dos remédios para a emergência climática. A lição da catástrofe fica escrita na areia, até ser apagada pela nova maré cheia...

Será que aprenderemos alguma coisa com esta pandemia global, que nos ataca em vagas sucessivas? Para todos aqueles que quando a tragédia começou já tinham uma resposta na ponta da língua, a crença prévia blindou qualquer possibilidade de aprendizagem. Não apenas cretinos certificados, como Trump e Bolsonaro, ou os milicianos das teorias conspirativas para quem o mundo é desprovido de mistério, mas também intelectuais como Giorgio Agamben não se sentiram interpelados pela voragem de interrogações e incertezas contidas no advento da covid-19. Foram ao baú dos seus preconceitos e fantasias, ou das suas sofisticadas grelhas teóricas e - imitando o Dr. Pangloss do Candide de Voltaire - decretaram que o assunto ficava demonstrado com um definitivo silogismo...

A covid-19 oferece hoje o espetáculo do maior campo de batalha entre a reafirmação dogmática da crença e a procura esforçada de um conhecimento que possa ser útil para salvar vidas e evitar tragédias futuras ainda maiores. Essa batalha ganha contornos claros quando se resume o objetivo final da luta contra a pandemia como sendo o regresso à normalidade. Para os partidários da crença, a pandemia não precisa de ser explicada, mas sim vencida, para podermos retomar o ritmo do crescimento económico ativo em 2019. Para quem, pelo contrário, insiste na necessidade de conhecer a raiz causal da pandemia, é na própria normalidade que se encontram as sementes do mal que nos aflige. Já em 2019, o mundo sabia que estamos a descer o perigoso declive da crise ambiental e da emergência climática. A União Europeia foi ao ponto, no final desse ano, de fazer do Plano Ecológico Europeu a sua bandeira estratégica.

É hoje inegável que a covid-19, como todas as novas doenças nascidas da destruição da biodiversidade, fazem parte integrante da crise ambiental e climática.

As medidas de recuperação e resiliência, apesar de aspetos positivos, estão ainda carregadas de uma dolosa pegada ecológica - de aeroportos e minas à agricultura e silvicultura intensivas. Mais entropia, mais impactos, menos serviços dos ecossistemas. É tempo de libertar a vontade e a imaginação coletivas das correntes que nos prendem a um passado sem janela para o amanhã.»

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5.3.21

Um sistema, dois países

 



«O agente da PSP Manuel Morais, conhecido pelo seu ativismo antirracismo nas polícias, foi esta sexta-feira notificado do indeferimento do seu recurso à suspensão de 10 dias por ter chamado "aberração" a André Ventura.»
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António Costa

 


António Costa, Público, 05.03.2021

E o. primeiro ministro também não representa aquilo que é o sentimento generalizado do país. Felizmente.
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A coragem de Mamadou Ba

 


«Mamadou Ba tem quase um metro e noventa, é corpulento e exibe um sorriso meio irónico, meio desafiador que parece dizer “eu vim para vos lixar a cabeça.” Sabe-se como, em geral, os brancos não gostam de negros impertinentes. A arrogância é uma característica deplorável, mas num negro ela torna-se quase inaceitável. Querem um exemplo? Ljubomir Stanisic, o último macho-alfa do planeta, tão seguro de si que quase explode de confiança. Desbocado, temerário, agressivo, parece um homem sempre pronto a recorrer à violência e que, por isso mesmo, e só por isso, não tem de recorrer à violência. Resultado? É uma estrela. Pagam-lhe milhões. Se fosse um negro? Deus nos livre!

O negro aceitável é humilde, bondoso, dócil, submisso. Pode ser intratável, mas apenas no raio limitado das suas competências. Por exemplo, o foco, a obstinação, o fervor maníaco de um Nélson Évora em competição é valorizado porque é lúdico, canalizado para uma atividade de regras estabelecidas e indiscutíveis. Fora isso, preferimos um Obikwelu, um tipo desarmante de tão simpático e genuíno, mas cujas características – que nada me faz acreditar que não sejam genuínas – tocam no nosso subconsciente: “este preto não é perigoso.”

Com Mamadou Ba a história é outra. Pela sua postura, pela sua função desestabilizadora, é uma ameaça à tranquilidade geral. Como se recusa a encaixar no tipo narrativo mais conveniente para a maioria da população – branca – é quase a personificação do negro malévolo, perigoso, vingativo, eventual assaltante ou violador, o “turra”, o negro insubmisso, ingrato, que recusa as migalhas da misericórdia branca e exige ser tratado como um homem e, assim, cria um abalo sísmico no interior de um sistema em que o negro que levanta a voz é sempre mais ameaçador que um branco – porque o branco nem sequer tem de levantar a voz.

Adversários e inimigos de Mamadou Ba gostam de dizer que é um provocador, retirando dessa forma substância e conteúdo à sua intervenção política. Ba seria apenas um agitador, alguém que se diverte a chatear os outros. E é possível que haja esse lado de provocação, mas o que é que quase certo é que, numa sociedade como a nossa, a tolerância para com um provocador negro é infinitamente inferior à reservada aos provocadores brancos.

Que se saiba, Mamadou Ba nunca usou de violência física nem advoga qualquer tipo de violência, não é líder de um grupo terrorista nem, que eu tenha conhecimento, alguma vez ameaçou alguém. Mas é uma ameaça ao sossego, a um certo consenso podre acerca do lugar apropriado para os negros na nossa sociedade. É normal que muitos canalizem para ele o ódio que têm de conter noutras circunstâncias e com outras personagens, que o vejam como uma ameaça porque ele, ao falar como fala, ao intervir como intervém sendo negro em Portugal, é um sujeito raro.

Muitos acusam-no de contribuir para a destruição da harmonia social ao inventar uma questão racial que não existe. Mas a maior ameaça a essa suposta harmonia social é a própria existência dele nos termos por ele escolhidos. E as reações a essa postura destroem o mito da harmonia social que é apenas a ideia de que harmonia é cada um se manter no lugar que lhe está destinado. E Mamadou Ba não aceita isso.

Em termos políticos, não concordo em quase nada com Mamadou Ba e acho que a atomização da sociedade em pequenas células identitárias é nefasta e contraria os princípios de uma verdadeira democracia e de uma República. Há dias, estava a ouvi-lo na televisão e acho que não concordei uma única vez com ele. Mas admiro-lhe a coragem e o desassombro. Num país de subalternos e medrosos, não é coisa pouca.» 

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4.3.21

Desconfinar?

 



Estou quase a concluir que é melhor continuarmos confinados para siempre e que não se fale mais do assunto.(Cansaço!…)
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Tempo delas

 


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Como será a nossa vida depois do pesadelo?

 


«Todos fomos surpreendidos pela chegada desta pandemia. Pela dimensão, fruto da capacidade de transmissão da covid-19, e pela rapidez com que nos atingiu. No início de Janeiro de 2020, as autoridades de saúde davam a notícia desta nova doença, ligada a hábitos estranhos dos chineses, que comem morcegos e pangolins. Nunca tinha ouvido falar dessa longínqua cidade de Huang, apesar de ter 12 milhões de habitantes, pelos vistos com infra-estruturas muito modernas, mas manias ancestrais. Considerava-se que a maleita não chegaria cá, a esta Europa tão civilizada como distante. Ainda me lembro da análise que se fazia ao vestuário dos chineses, que incluía as máscaras de cores garridas, que conhecíamos das nossas viagens exóticas. Talvez protegessem os chineses do ar poluído dos seus motores ruidosos, mas não tinham valor para evitar a propagação dessa nova doença. Enfim, é impressionante como nos enganamos! A velocidade com que esta pandemia se tornou global, parece estar ligada ao tráfego aéreo, que tardamos a proibir, se é que isso ainda era possível. As grandes pandemias que conhecíamos, a última há mais de um século, viajaram de barco para todo o mundo. Esta, rasgou os céus, em velocidade de cruzeiro low cost.

Esta situação opressiva que vivemos, vai acabar por passar, apesar das variantes inevitáveis dos vírus, que irão surgindo. As vacinas, que passaram por ser a afirmação da vitória do espírito europeu, até se tornarem no seu maior embaraço, vão acabar por chegar. A razia dos mais velhos, em conjunto com a legião dos imunizados, servirão de “corta fogo”, para termos algum descanso. Não vai ficar tudo bem, mas iremos sobreviver, como sempre. A dúvida que permanece é se aprendemos alguma coisa, depois desta catástrofe que se abateu sobre nós, e nos infernizou a vida, mais de um ano seguido.

A maior parte dos amigos com que partilho esta inquietação, garante-me que vai voltar tudo ao mesmo, talvez ainda de forma mais exuberante. Festas suadas de milhares de pessoas, compras desenfreadas, viagens intercontinentais em promoção. Parece que assim foi noutras pandemias, talvez porque a geração que as apanhou considera que o aperto não se repetirá nas suas vidas, e é preciso esquecer.

Gostava muito que desta vez não tivessem razão. O Homem, como ser inteligente que é, aproveitaria o confinamento para concluir que não precisa de renovar o guarda roupa em todas as estações, que pode fazer muito trabalho em casa e não precisa de voar para o outro lado do mundo, por uma reunião de três dias. O nosso modelo de desenvolvimento, está posto em causa. Mesmo para quem pode gozar com o aquecimento global, procurando os lugares aprazíveis que o dinheiro pode comprar, não escapa às novas pragas, em muito geradas pelas alterações do clima. E, agora, as pandemias podem ser mais frequentes e apoquentar mais vezes uma mesma geração. Estou com um otimismo contido. Talvez este abalo brutal tenha feito a humanidade repensar o mundo.»

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3.3.21

Viajar?

 


SE UM VÍRUS ACONTECER,
LAVE AS MÃOS,
PONHA UMA MÁSCARA
E DÊ UMA VOLTA AO QUARTEIRÃO.
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Dia da Mulher



 

Só com homens, eles é que sabem. Realmente...

(Está aqui, não é fake.)
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Uluru

 


Há quatro anos, andava pelo Uluru (Ayers Rock, Austrália), um grande monólito de arenito, com 8,5 km de largura e 348 metros de altura, que vai mudando de cor conforme a incidência do Sol.

Fiz uma longa caminhada lá dentro, que me permitiu ver uma pequena parte do conjunto de desfiladeiros, covas, vegetação, lagos e símbolos da cultura aborígene – tudo isto com… 39ºC.

Um dos pontos interessantes ligados a Uluru reside nas muitas lendas sobre as suas origens e características e algumas das grutas são utilizadas para dar aulas a crianças que frequentam escolas aborígenes, usadas como cozinhas em momentos especiais ou noutro tipo de actividades.

Inesquecível e sem se parecer com nada que tivesse alguma vez vislumbrado...






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E se a pandemia for uma lição preciosa?

 


«Há um ano, a 1 de março, regressava de uma viagem com os meus filhos. Foi a última vez que andei de avião ou saí do país. No dia 7 de março organizei um jantar com amigos, sabendo bem ser o último por muito tempo.

Tinha acompanhado particularmente de perto – através do Twitter dos jornalistas estrangeiros na China, fluentes na língua e com fontes locais, bem como de alguns sinólogos – os eventos de Wuhan. Ainda mantinha a memória viva da SARS em 2003 em Hong Kong. Cancelei na altura uma viagem de trabalho àquela cidade e a Cantão. Mas, meses depois, regressei e vi ainda muita gente usando máscaras na rua e transportes públicos, a temperatura era-me medida em aviões e comboios, insistiam na higienização das mãos e das superfícies.

Por isso, quando vi a covid chegar a Itália tive a ideia clara que seria muito mau para a Europa. Não por não sermos Estados ditatoriais – Taiwan, Coreia do Sul e Nova Zelândia também não são –, mas porque nos falta, no Ocidente orgulhoso e habituado a moralizar sobre o resto do mundo, humildade. Além disso, vítimas do nosso sucesso (paz, prosperidade, segurança), não estamos habituados a crises graves. Já não sabemos lidar com fenómenos disruptivos dos hábitos que nos dão prazer e felicidade. Disse já não sabemos? Bem, a minha geração, a anterior e as seguintes nunca souberam. Vivemos sempre no mundo mais pacífico e próspero que a humanidade criou. Pelo menos na América do Norte e na Europa Ocidental. Por isso, em 2020, portámo-nos como meninos mimados.

Viu-se em tudo. Os negacionistas da covid, verdadeiramente incapazes de compreender e conceber e processar uma realidade que lhes foge ao controlo e obriga a alterações significativas da vida. Inventaram-se as maiores alucinações. As máscaras não são eficazes (mas só contra a covid, porque praticamente eliminaram o contágio de gripe e de outras doenças de transmissão respiratória). Os testes positivos são falsos (o aumento de internamentos e de mortalidade foi toda encenado, certamente). A mortalidade é negligenciável e mais insignificante que a da gripe (num ano, comparando com números anuais de gripe, morreram entre cinco a dez vezes mais pessoas por covid). Enfim, um dia a Psicologia estudará este fenómeno.

Pela minha parte, comecei, como todos, este ano de pandemia querendo regressar à normalidade. Como se o interlúdio da pandemia não tivesse acontecido. Tenho mudado de opinião ao longo dos meses. Dou um exemplo: as escolas. Durante o primeiro confinamento estava preocupada com as assimetrias geradas com a educação à distância. Neste, a minha preocupação vai no sentido de assegurar, nas escolas físicas, a existência de um espaço seguro e de acolhimento para miúdos em risco e notificados pela CPCJ, os que não têm condições em casa (falta de computador ou de ambientes suficientemente confortáveis) e os que são alimentados diariamente nas cantinas (algo assegurado pelo Governo, note-se).

O ensino de matérias é-me indiferente agora, tenho de confessar. Preocupa-me garantir que as crianças não são violadas e espancadas neste período à conta de adultos agressores saberem que professores e vigilantes não estão a ver. Os programas e as aprendizagens? Podem bem ser retomadas mais tarde. (Já maus tratos familiares perduram a vida toda.) Dois períodos com aulas deficientes, em doze anos de escolaridade, não são nenhuma sentença de morte para nenhum aluno. Ou só são numa sociedade inflexível que não consegue integrar, numa vivência maioritariamente facilitada, um período de crise.

Sim, devemos ser exigentes com o ministro da Educação e o Governo. Criticar a falta de equipamentos prometidos. Mas não vale a pena exagerar a importância na vida futura dos miúdos do conhecimento da equação matemática da fotossíntese, ou da diferença entre kolkhozes e sovkhozes (ensinava-se no meu tempo e uso aqui pela primeira vez na minha vida profissional). Basta garantir que no pós-pandemia se transmitem os ensinamentos essenciais, que os programas são encurtados e os exames dos próximos anos têm em conta as falhas ocorridas.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo ocidental viveu trinta anos de crescimento económico. Não consta que os sobressaltos – muito maiores – à escolaridade dos miúdos europeus dos anos 1940 tenham redundado em pobreza e decadência.

Claro: são necessários apoios às pessoas e empresas afetadas financeiramente, por vezes de modo dramático, com esta crise. No entanto, tenho vindo a concluir que consequências boas virão desta pandemia. E não só pelos avanços médicos com a vacina para a covid – um feito de encher o coração e que terá provavelmente benefícios para outras doenças; para a esclerose múltipla já está em testes.

A Segunda Guerra Mundial levou as mulheres europeias e americanas para o mercado de trabalho e tal dinâmica nunca mais parou – mesmo com as políticas governamentais do pós-guerra informando às que asseguraram toda a produção que afinal deviam dar lugar aos soldados regressados e dedicarem-se ao papel feminino de tratar do marido e produzir filhos. Creio que se passará algo parecido com a valorização dos tais trabalhadores essenciais. Apesar de essenciais para o funcionamento das sociedades, mesmo as confinadas, são normalmente muito mal pagos. O desprezo da nossa sociedade próspera e escolarizada pelos trabalhadores de colarinho branco, aqueles cujos ordenados estão estagnados ou em diminuição comparativa há décadas, bem merece ser estilhaçado.

O mesmo digo para a miraculosa vacina. Foi uma feliz colaboração entre Estados e empresas privadas. Cada um fazendo o que melhor sabe e consegue. Os Estados com recursos para financiar a pesquisa e testes. Os privados com a agilidade para inovarem rapidamente. Não há melhor resposta aos ultraliberais que diabolizam o Estado nem aos neocomunistas que ventilam cada vez que pensam em iniciativa privada. Ambos atualmente muito numerosos.

E termino com as crianças. Em estando protegidas de maus tratos e escassez de comida, esta pandemia trouxe-lhes um ensinamento muito mais precioso que o teorema de Pitágoras. A minha geração não o teve. A perceção de que a prosperidade não nos protege de crises agudas. Que há disrupções globais obrigando a respostas concertadas por todos. Que a vida não é só o mundo risonho, otimista e esperançoso dos anos 80 e 90. Que temos de ser flexíveis e resilientes nos tempos negros.

Só os covidiotas continuarão sem aprender nada.»

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2.3.21

Um ano de Covid


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Hoje é dia de festa?

 

Os canais de TV, de informação e não só, estão quase todos a comemorar o primeiro ano de Covid em Portugal. É para animar os cidadãos confinados? Será que isto vai durar todo o dia? Não saberei porque o comando já exerceu a sua função.
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Desconfinamento: sem meta, a corrida cansa mais

 


«No dia 8 de fevereiro, o investigador Carlos Antunes defendeu que as medidas de confinamento só deveriam ser aliviadas quando tivéssemos menos de dois mil casos diários médios, o risco de transmissão estivesse abaixo de 0,9 e a positividade andasse pelos 5%. Acrescentando que o ideal seria esperar por ter menos de três mil internados e 300 camas de cuidados intensivos ocupadas. No final de fevereiro, alterou as suas metas, reduzindo o número de camas em UCI para 242 e de internamentos para 1300. Talvez seguindo as posições de Manuel Carmo Gomes, Presidente da República usou critérios apenas ligeiramente diferentes, definido uma meta de 200 camas em cuidados intensivos, os internamentos abaixo de 1250 e taxa de incidência que ronde a média europeia.

Há tantas metas como cabeças e a COTEC Portugal e a Nova IMS definiram outras: 366 casos diários, 1500 internados, 240 camas em UCI. Segundo os próprios, era previsível que estes números fossem atingidos em meados de março, poucos dias depois do governo anunciar o seu plano de desconfinamento, com metas oficiais respetivas. Se assim for, será um caso em que um objetivo antes de o ser já tinha sido.

Sabemos que há muita incerteza sobre o vírus, mas a cacofonia de critérios não resulta disso. Resulta de um jogo sem regras, em que cada decisor vai escolhendo os especialistas que quer. Até porque o governo continua a não ter qualquer órgão científico de aconselhamento para o combate à pandemia. Tem as reuniões no Infarmed e as opiniões dispersas de especialistas.

Neste momento, a média a sete dias está abaixo de mil casos diários, tendo ficado ontem abaixo dos 400. Estamos abaixo da média europeia. O risco de transmissão está na casa dos 0,7 (o mais baixo desde o início da pandemia, mas com tendência para ligeira subida nos últimos dias, graças a um desconfinamento informal que a continuação do confinamento formal não impedirá) e a taxa de positividade está nos 5%. Os únicos fatores acima do que do que foi definido por Carlos Antunes são as camas ocupadas em cuidados intensivos (469) e os internamentos (2167), dados que evoluem com desfasamento temporal.

Não sei que critérios devo usar. Se os de Carlos Antunes, se os da NOVA e COTEC, se os do matemático João Buescu, se os de Marcelo Rebelo de Sousa. Não serão seguramente os meus, que nada sei do assunto.

Do que percebi, as 242 camas em cuidados intensivos, que tem sido apontado como o fator mais sensível, deverão resultar de declarações públicas de João Gouveia, que lidera a coordenação da resposta em medicina intensiva. Corresponde a 85% da ocupação reservada a covid, para manter o espaço “não covid”. Com sinceridade, não sei se faz sentido manter um país encerrado com base numa meta definida por um responsável por uma única especialidade, por mais relevante que ela seja nesta pandemia. Não digo que não, mas teria curiosidade em saber se uma equipa pluridisciplinar a assumiria desta forma. Quanto aos internamentos, imagino que se terá em conta o desfasamento com o número de novos casos. Ainda assim, não disputo nada disto.

Não contesto estes ou outros critérios, estas ou outras metas. Elas até poderiam ser regionais e ser regional o desconfinamento faseado. Podiam ser mais apertadas ou mais leves. O que contesto é não termos metas claras e até termos um Presidente sem funções executivas a definir as suas. E, ao fim de mês e meio de confinamento, dizer-se que as metas oficiais serão anunciadas daqui a nove dias. Entretanto, jornalistas e políticos usam as de várias instituições académicas e de vários investigadores.

O confronto não é entre os defensores de confinamentos e os defensores da abertura. Muito menos entre os defensores da economia e os da saúde pública. A haver, é entre os que pedem ponderação de vários fatores e critérios rigorosos para cada decisão e os que defendem que se continue a seguir as euforias e medos de cada momento. Reconhecemos todos que esse foi o erro do Natal. Corrigir esse erro não é cometer o erro oposto. Seria ter uma comissão científica e a definição de critérios objetivos para fasear o desconfinamento.

Pelos seus enormes custos e a dificuldade de o prolongar no tempo, o confinamento não é a melhor forma de lidar com a pandemia. É a forma mais radical quando as outras falharam. E serve para preparar outras formas de o fazer. Porque não podemos confinar até a vacina nos garantir imunidade de grupo, temos mesmo de aprender a lidar com o vírus enquanto ele estiver entre nós. Testar e rastrear é a melhor forma, dizem os técnicos. Esse caminho está a ser preparado seriamente?

Não é só pelos efeitos que o confinamento tem na economia que ele não se pode prolongar por muito tempo, sobretudo num país pobre e desigual como o nosso. Não é só pelos efeitos para a saúde pública, com mortes associadas. Não é só pelos efeitos para a saúde mental. Não é só por ele ser pago de forma tremendamente desigual, fazendo dos mais pobres as principais vítimas. Não é só por ter efeitos estruturais nas crianças e jovens que se sentirão nas próximas décadas. É porque quanto mais tempo dura o confinamento mais desordenado e impactante tende a ser o desconfinamento. E “quanto mais tempo estiverem em confinamento, mais vão incumprir de uma forma encapotada”. É como uma mola que se empurra demasiado: quando a soltamos o salto é incontrolável. Sobretudo quando o confinamento leva, por falta de recursos e apoios, a situações sociais e económicas dramáticas. Por isso, espera-se que o governo pondere os riscos de prolongar o confinamento para lá do estritamente necessário. Para isso, precisávamos de saber com algum rigor o que é o necessário.

Num momento em que praticamente todos os indicadores estão abaixo do que foi informalmente definido como meta, estaremos à espera de dia 11 de março para saber quais são as metas oficiais e como se faz o desconfinamento. Compreendo o medo político de falhar. Mas como podemos ter a certeza que todos os valores são ponderados quando temos um Presidente que define metas como se governasse e um governo que adia a definição de metas oficiais para depois de grande parte delas serem atingidas? O improviso não é menos grave quando é cauteloso. Porque, se cada a dia a menos no confinamento pode custar vidas, cada dia a mais também se mede em tragédias tremendas»

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1.3.21

Eu, um filho do Império



 

Vale muito a pena ler este testemunho de João Teixeira Lopes.
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Sondagens? Mais uma

 


Lê-se mal na figura, mas está tudo detalhado AQUI.
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A geopolítica da vacina



 

«O processo de vacinação em curso é o passaporte para o início da recuperação das economias, progressivamente aliviadas de confinamentos e socialmente normalizadas. Dizem os especialistas que ultrapassada a emergência pandémica e o período de vigilância sanitária, cuja mistura ainda nos angustia, passaremos a conviver com o vírus de forma endémica, habituada e sazonal.

A duração disto é uma incógnita, o que não desmerece os entretantos. E, nestes, há muito em jogo: a vacina transformou-se num instrumento de poder, influência, prestígio e posicionamento estratégico. Se quiserem, deu origem a autênticas superpotências da saúde pública, dando à diplomacia da vacina um cunho que pode ir da salvação gloriosa de terceiros à chantagem por vantagens políticas. Será assim a natureza humana: é na desgraça que se revela.

Na última reunião do G7 falou-se muito em falência moral no auxílio à vacinação dos países mais pobres, através da iniciativa multilateral Covax, mas os milhões anunciados de Washington a Bruxelas não preencheram apenas falhas coordenadas na consciência ocidental, responderam diretamente à competição entre quem chega primeiro a África, à América Latina ou ao Sudeste Asiático. O investimento anunciado tem um carácter geopolítico evidente e sinaliza três variáveis de uma suposta abordagem comum: reforçar os recursos e a capacidade de coordenação da Organização Mundial da Saúde; articular uma estratégia euro-atlântica alargada a Japão, Índia, Coreia do Sul e Austrália; e arrepiar caminho perante o avanço da China na diplomacia da vacina. O passo lógico seguinte será envolver o G20 já na cimeira de Roma sobre saúde global, marcada para maio, capaz assim de exponenciar o investimento num tão desejado "bem comum", embora refém dos gigantes da indústria farmacêutica, o que acaba por ser uma contradição nos termos e que está na base da absoluta disfuncionalidade entre expectativas criadas pelos governos, incapacidade produtiva da fileira industrial e descrédito da OMS como plataforma agregadora. Olhar o copo meio cheio, como gosto de fazer, leva-me a acreditar que esta trilogia pode ainda ser alinhável e corrigida, sobretudo porque o investimento feito na investigação e na produção da vacina, nomeadamente o que a União Europeia disponibilizou, legitima uma reivindicação justa pela partilha temporária da patente, para não mencionar o imperioso cumprimento dos contratos. Essa massificação produtiva, não necessariamente em solo europeu, é a chave para o desanuviamento acelerado das economias e para a normalização da vida pública. Por isso é que trazer a Índia a bordo é importante, quer do ponto de vista da capacidade agregadora quer dos equilíbrios à passada chinesa.

Tradicionalmente, mais de metade da produção de vacinas no mundo tem ali lugar e, no caso da covid, só o Serum Institute of India produz dois milhões e meio de doses por dia. É daqui que vêm as 600 mil doses da AstraZeneca que acabam de chegar ao Gana, o primeiro país a recebê-las através da Covax, ou as 200 mil destinadas a capacetes azuis da ONU, numa operação brilhante de soft power. Mas as ambições de Nova Deli não se ficam por aqui e têm na política de prioridade à vizinhança um claro foco estratégico. Por exemplo, no Nepal, onde está a aproveitar algum espaço dado por Pequim na atual crise política, acelerando a chegada da vacina ao regime de Katmandu. O mesmo acontece na Birmânia, no Sri Lanka, nas Maldivas e no Afeganistão. Já a China, através das várias vacinas produzidas e aprovadas internamente, já as colocou no Paquistão, no Camboja, na Serra Leoa, no Zimbabué, nos Emirados, no Chile, no México, na Turquia e no Brasil, tentando recuperar assim, no caso da relação com Islamabad, de um quadro de crescente desalinhamento provocado por projetos polémicos incluídos na Belt and Road Initiative. Desta forma, a vacina tanto pode servir para Pequim ganhar vantagem económica nalgumas relações bilaterais, como para melhorar a reputação junto de relevantes opiniões públicas, facilitando a pegada comercial e o volume de investimentos em grandes infraestruturas logísticas, como as que estão projetadas para o Paquistão.

A Rússia é outra potência muito ativa neste tabuleiro. As suas três vacinas chegaram atempadamente ao Egito, à Argélia, à Argentina, à Venezuela, à Bolívia, ao México ou ao Irão, intrometendo-se ainda na coordenação europeia através da Hungria. Dizem algumas sondagens que é elevado o sentimento russo antivacinação e que isso pode estar na base da internacionalização rápida imposta pelo Kremlin. É uma hipótese, mas que não deve criar ilusões: Moscovo também está com tudo na corrida para ver quem chega com a vacina primeiro. Sabe que isso significa espaço político conquistado nos países-alvo, além de criar relação com a sociedade ajudada e trazer de volta vantagens intemporais em regiões estratégicas como o Médio Oriente e a Europa. Veja-se ainda o comportamento de Israel, ou melhor, do primeiro-ministro Netanyahu em campanha para as legislativas de março, que defendia a exportação de vacinas para países que já tivessem reconhecido ou estivessem em vias de reconhecer Jerusalém como capital, ou privando de quantidades generosas as populações palestinianas, ou ainda usando a vacina para conseguir a libertação de cidadãos em território sírio. A diplomacia da vacina carrega consigo uma dose ideológica cavalar, não uma mera beneficência pela saúde de terceiros.

Se quisermos olhar para a competitividade destas dinâmicas com a benevolência dos ingénuos, apenas porque se trata de uma vacina, estamos a falhar no ângulo que prevalece para explicar a pressa em produzir, distribuir e marcar território.

E sendo este eminentemente geopolítico, é preciso saber interpretá-lo e agir em conformidade, alinhando decisões políticas, maximizando recursos e usando o poder agregado de forma rápida e eficaz. O pós-covid joga-se agora.»

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28.2.21

28.02.1969 – O sismo de 1969

 


Já contei isto, mas repito. Eu dava então aulas na FLUL, o meu salário não chegava a 2 contos por mês (é só fazerem as contas, menos de 10 euros), acrescido de mais 1 conto e tal por dar também teóricas – uma vergonha, mesmo para a época.

Mas para meu azar e de muitos, já devia haver «cativações» na era de Marcelo I, e, chegados ao fim de Fevereiro de 69, ainda não nos tinha sido pago um tostão do tal acréscimo precioso a que tínhamos direito. Alguém se lembrou então de pedir uma audiência ao ministro da Educação, José Hermano Saraiva, e, audiência concedida, lá fomos recebidos em grupo ao fim da tarde do dia 27. Saímos com a certeza de que o problema seria resolvido (e foi) e resolvemos acabar a tarde e a noite a festejar em casa do irmão de uma das contestatárias (btw prima direita do ministro em questão – nada de estranho neste país de primos e primas…).

A conversa durou até altas horas da noite, cheguei a casa a caí num sono à prova de bala – e de tremor de terra. Ou seja: não senti nada, não acordei, e a minha mãe, com quem ainda vivia então, viu tudo tremer e, embora apavorada, não me acordou.

E foi assim que falhei a única hipótese de ver os meus vizinhos em cuecas nas ruas de Lisboa.
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Mamadou Ba – Aqui em Carne e Osso

 


O meu contributo AQUI.

«Mamadou, tu ficas. Como eu fiquei.
Nasci no mesmo continente que tu. Portuguesa de segunda, mas branca. E isso fez toda a diferença porque nunca me mandaram para a minha terra.
Hoje, estamos ambos neste país que é nosso e que precisa que continues a lutar para que seja melhor, para que os nossos filhos e os nossos netos tenham uma vida mais decente e de cabeça erguida. Para a frente, Mamadou, estamos contigo e o teu futuro é o nosso também.
Joana Lopes

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A irreversível descolonização de mentalidades

 


«Sou do tempo do lixo nas praias tolerado. Das touradas enaltecidas como um grande espectáculo. Do fumar nos aviões como sinal de requinte. Do casamento gay proibido. E do mito do país bom colonizador e integrador.

São apenas alguns exemplos. Outros haveria. No meu tempo de vida tenho vindo a assistir a mudanças profundas na forma como olhamos as questões ambientais. As touradas, com mais ou menos ruído, amanhã ou daqui a uns anos, irão acabar. O fumar em aviões provoca sorrisos hoje. Pessoas do mesmo sexo podem casar. A descolonização política já aconteceu. Falta cumprir-se a difícil descolonização de mentalidades.

Ela está em marcha há anos. É um processo, como todas as mudanças, com fases de avanços e recuos, adormecimentos e efervescências, durante muitos anos remetida para circuitos académicos, educacionais ou culturais, e agora também presente no espaço público como um todo.

As camadas de discussão variam muito — às vezes parecendo muito amadurecida na voz de alguns actores, mas na maior parte das vezes, embrionária, porque só agora está a chegar a alguns sectores da população. Uma coisa parece certa. Não existe, neste momento, forma de fugir ao debate sobre a colonização e o pós-colonialismo, e todas as estruturas racistas que daí emergiram.

E ele é irreversível até porque muito já mudou. É daí que surgem parte das polémicas com a linguagem e os símbolos. Não se trata de mudar o nome das coisas ou de apagar o passado e a história, mas de renomear a transformações já desencadeadas, pela revelação de outras lembranças que foram sendo ocultadas ao longo do tempo ao abrigo das representações dominantes.

Nos últimos dias, a propósito da petição para a deportação de Mamadou Ba, do voto de pesar no parlamento português pela morte de Marcelino da Mata ou da polémica em torno do Padrão dos Descobrimentos trazido por Ascenso Simões, foi isso em grande medida que se verificou. O que surpreende no meio disto tudo é a quantidade de auto-intitulados “moderados” que insistem em falsas simetrias, como se fosse possível comparar quem passa o tempo a reafirmar um discurso nacionalista, que vai facilmente buscar pontas soltas às representações oficiais supostamente neutras (do Estado, do ensino ou dos rituais quotidianos), com quem põe em causa essas narrativas hegemónicas, adicionando-lhe outras camadas de entendimento e quebrando pactos de silêncio sobre vidas violentadas, revisitando memórias para a sua reconstrução.

Acredito que isso acontece por razões diversas. Alguns porque se sentem postos em causa nos seus privilégios, baseados nas desigualdades estruturais, no tocante à classe, género ou raça, até porque está tudo ligado: colonização, opressão e exploração. Esses revelam-se até mais obstinados do que nunca, na sua rejeição da história, sentindo-se ameaçados. Mas também é justo dizer que outros simplesmente não tiveram condições para entender na plenitude o que está a acontecer.

Não é fácil pormo-nos em causa, individualmente ou colectivamente. No entanto, neste caso, existem razões para optimismo. A descolonização de mentalidades vai mesmo acontecer, por entre tensões, retrocessos, incompreensões e alguns excessos. Não só por isso, mas também porque hoje existe nitidamente uma nova geração que está disponível para lidar com os traumas coloniais, a história violenta do colonialismo, o racismo e a sua articulação com outras sujeições, abrindo brechas por entre a negação, o mito do bom colonizador e o romantismo do país integrador. Somos cada vez mais.»

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