3.3.21

E se a pandemia for uma lição preciosa?

 


«Há um ano, a 1 de março, regressava de uma viagem com os meus filhos. Foi a última vez que andei de avião ou saí do país. No dia 7 de março organizei um jantar com amigos, sabendo bem ser o último por muito tempo.

Tinha acompanhado particularmente de perto – através do Twitter dos jornalistas estrangeiros na China, fluentes na língua e com fontes locais, bem como de alguns sinólogos – os eventos de Wuhan. Ainda mantinha a memória viva da SARS em 2003 em Hong Kong. Cancelei na altura uma viagem de trabalho àquela cidade e a Cantão. Mas, meses depois, regressei e vi ainda muita gente usando máscaras na rua e transportes públicos, a temperatura era-me medida em aviões e comboios, insistiam na higienização das mãos e das superfícies.

Por isso, quando vi a covid chegar a Itália tive a ideia clara que seria muito mau para a Europa. Não por não sermos Estados ditatoriais – Taiwan, Coreia do Sul e Nova Zelândia também não são –, mas porque nos falta, no Ocidente orgulhoso e habituado a moralizar sobre o resto do mundo, humildade. Além disso, vítimas do nosso sucesso (paz, prosperidade, segurança), não estamos habituados a crises graves. Já não sabemos lidar com fenómenos disruptivos dos hábitos que nos dão prazer e felicidade. Disse já não sabemos? Bem, a minha geração, a anterior e as seguintes nunca souberam. Vivemos sempre no mundo mais pacífico e próspero que a humanidade criou. Pelo menos na América do Norte e na Europa Ocidental. Por isso, em 2020, portámo-nos como meninos mimados.

Viu-se em tudo. Os negacionistas da covid, verdadeiramente incapazes de compreender e conceber e processar uma realidade que lhes foge ao controlo e obriga a alterações significativas da vida. Inventaram-se as maiores alucinações. As máscaras não são eficazes (mas só contra a covid, porque praticamente eliminaram o contágio de gripe e de outras doenças de transmissão respiratória). Os testes positivos são falsos (o aumento de internamentos e de mortalidade foi toda encenado, certamente). A mortalidade é negligenciável e mais insignificante que a da gripe (num ano, comparando com números anuais de gripe, morreram entre cinco a dez vezes mais pessoas por covid). Enfim, um dia a Psicologia estudará este fenómeno.

Pela minha parte, comecei, como todos, este ano de pandemia querendo regressar à normalidade. Como se o interlúdio da pandemia não tivesse acontecido. Tenho mudado de opinião ao longo dos meses. Dou um exemplo: as escolas. Durante o primeiro confinamento estava preocupada com as assimetrias geradas com a educação à distância. Neste, a minha preocupação vai no sentido de assegurar, nas escolas físicas, a existência de um espaço seguro e de acolhimento para miúdos em risco e notificados pela CPCJ, os que não têm condições em casa (falta de computador ou de ambientes suficientemente confortáveis) e os que são alimentados diariamente nas cantinas (algo assegurado pelo Governo, note-se).

O ensino de matérias é-me indiferente agora, tenho de confessar. Preocupa-me garantir que as crianças não são violadas e espancadas neste período à conta de adultos agressores saberem que professores e vigilantes não estão a ver. Os programas e as aprendizagens? Podem bem ser retomadas mais tarde. (Já maus tratos familiares perduram a vida toda.) Dois períodos com aulas deficientes, em doze anos de escolaridade, não são nenhuma sentença de morte para nenhum aluno. Ou só são numa sociedade inflexível que não consegue integrar, numa vivência maioritariamente facilitada, um período de crise.

Sim, devemos ser exigentes com o ministro da Educação e o Governo. Criticar a falta de equipamentos prometidos. Mas não vale a pena exagerar a importância na vida futura dos miúdos do conhecimento da equação matemática da fotossíntese, ou da diferença entre kolkhozes e sovkhozes (ensinava-se no meu tempo e uso aqui pela primeira vez na minha vida profissional). Basta garantir que no pós-pandemia se transmitem os ensinamentos essenciais, que os programas são encurtados e os exames dos próximos anos têm em conta as falhas ocorridas.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo ocidental viveu trinta anos de crescimento económico. Não consta que os sobressaltos – muito maiores – à escolaridade dos miúdos europeus dos anos 1940 tenham redundado em pobreza e decadência.

Claro: são necessários apoios às pessoas e empresas afetadas financeiramente, por vezes de modo dramático, com esta crise. No entanto, tenho vindo a concluir que consequências boas virão desta pandemia. E não só pelos avanços médicos com a vacina para a covid – um feito de encher o coração e que terá provavelmente benefícios para outras doenças; para a esclerose múltipla já está em testes.

A Segunda Guerra Mundial levou as mulheres europeias e americanas para o mercado de trabalho e tal dinâmica nunca mais parou – mesmo com as políticas governamentais do pós-guerra informando às que asseguraram toda a produção que afinal deviam dar lugar aos soldados regressados e dedicarem-se ao papel feminino de tratar do marido e produzir filhos. Creio que se passará algo parecido com a valorização dos tais trabalhadores essenciais. Apesar de essenciais para o funcionamento das sociedades, mesmo as confinadas, são normalmente muito mal pagos. O desprezo da nossa sociedade próspera e escolarizada pelos trabalhadores de colarinho branco, aqueles cujos ordenados estão estagnados ou em diminuição comparativa há décadas, bem merece ser estilhaçado.

O mesmo digo para a miraculosa vacina. Foi uma feliz colaboração entre Estados e empresas privadas. Cada um fazendo o que melhor sabe e consegue. Os Estados com recursos para financiar a pesquisa e testes. Os privados com a agilidade para inovarem rapidamente. Não há melhor resposta aos ultraliberais que diabolizam o Estado nem aos neocomunistas que ventilam cada vez que pensam em iniciativa privada. Ambos atualmente muito numerosos.

E termino com as crianças. Em estando protegidas de maus tratos e escassez de comida, esta pandemia trouxe-lhes um ensinamento muito mais precioso que o teorema de Pitágoras. A minha geração não o teve. A perceção de que a prosperidade não nos protege de crises agudas. Que há disrupções globais obrigando a respostas concertadas por todos. Que a vida não é só o mundo risonho, otimista e esperançoso dos anos 80 e 90. Que temos de ser flexíveis e resilientes nos tempos negros.

Só os covidiotas continuarão sem aprender nada.»

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