9.8.25

A ocasião faz o extremista

 


«É mau sinal quando as instituições do sector são surpreendidas por uma reforma. Quer dizer que não foram ouvidas e ela resultou de verdades apriorísticas, ideológicas no pior sentido. A FCT, responsável pelo financiamento da ciência, será extinta e fundida com a Agência Nacional para a Inovação, fazendo depender o investimento em ciência dos interesses das empresas. O Governo acredita que a inovação tem retorno económico imediato. Com este raciocínio nunca teriam existido vacinas contra a covid e boa parte das inovações tecnológicas. Porque a investigação fundamental arrisca e inova e, por isso, precisa do Estado. A investigação dependente das empresas é tendencialmente conservadora, só apostando no que já conhece. Além disto, a ciência é necessária para desenvolver políticas públicas, sem retorno financeiro. Também foi o automatismo ideológico que levou ao descalabro nas políticas da habitação. Enquanto punha fim à penalização das casas devolutas e às medidas de contenção do alojamento local, “socialistas”, o Governo avançou com garantias bancárias e isenção de IMT até aos 35 anos, “liberais”. A inflação foi imediata: 16% no primeiro trimestre, três vezes mais do que no resto da Europa. A Comissão Europeia criticou o baixo controlo dos preços e a pressão do AL. Até os bancos já assumem o erro. Foram achas para uma fogueira que já ia alta.

Mas nada foi tão longe como a contrarreforma laboral, apresentada em véspera de férias para ser discutida em campanha autárquica. Estava no programa eleitoral para promover “relações laborais estáveis e uma melhor conciliação da vida profissional, pessoal e familiar”, mas será, afinal, um recuo na grande evolução da última década — a redução do trabalho precário — e na vida familiar. Quanto à precariedade, alimentam-se os falsos recibos verdes, os trabalhadores das plataformas digitais perdem o que conseguiram, desaparece a criminalização do trabalho não declarado que levou à inscrição de dezenas de milhares de domésticas na segurança social, o tempo limite para o contrato a termo é aumentado, incentiva-se o trabalho temporário fraudulento. Quanto à conciliação com a vida familiar, além do regresso dos bancos de horas individuais e do alargamento da isenção de horário, propõem-se perdas nos direitos de parentalidade. Para justificar as alterações, da amamentação ao direito a recusar trabalhar à noite e ao fim de semana quando se têm filhos com menos de 12 anos, a ministra garante que há “muitas práticas” abusivas, mas nem sabe quantas mães pedem redução de horário, quanto mais as que abusam. Sabe, no entanto, como é a criadagem. A confiança que permite cada vez mais arbitrariedade do patrão fica para os de cima. Para o Governo, a família é o núcleo central da sociedade até pôr o lucro em causa. Segundo os defensores de outro recuo, só podem ser os pais a garantir a educação sexual dos filhos, mas não é por isso que precisam de estar com eles ao fim de semana e à noite. A CAP exige 60 horas semanais de trabalho, a CIP quer despedimentos livres e faltas justificadas não remuneradas e, tal como fez com o Chega na imigração, o Governo usará estas absurdas reivindicações para aparecer como a bissetriz deste tempo.

Os dois terços da direita no parlamento são a ocasião que faz regressar um passismo sem troika, com o forte tempero da IL e do Chega. É provável que, depois do chumbo constitucional de algumas propostas, até comece a ganhar fôlego uma revisão e uma radicalização da composição do TC. E é por isso que a resignação da esquerda, preparada para ter como candidato presidencial derrotado o protagonista da cedência sem luta à troika e ao passismo, me deixa atónito.

Perante a tática governamental do “choque e pavor”, disparando ao mesmo tempo para todo o lado, o novo líder do PS foi de férias com este post: “Hoje, no primeiro dia de férias, fiz o almoço. Arroz, salmão e uns legumes frescos. Nada de especial, mas soube bem. Usei ingredientes simples, ideias claras e um pouco de bom senso.” Além do incómodo do Presidente com a guinada em direitos fundamentais na imigração, as últimas semanas foram marcadas por uma contrarreforma laboral agressiva, uma reforma na ciência em que nem os envolvidos foram ouvidos e recuos na educação sexual, recorrendo sempre a um prefabricado ideológico que já teve resultados desastrosos na habitação. E o líder do PS oferece arroz. “Nada de especial.” O Governo mais extremista da nossa democracia constitucional não se explica apenas com os dois terços de direita. Também se explica com o outro terço. O problema não é a polarização. É haver um lado que se calou, levando a este perigoso desequilíbrio.»


1 comments:

Fenix disse...


"Sabe, no entanto, como é a criadagem."

... e o nosso maior drama é que a maioria do eleitorado que de certa forma pertence à "criadagem", se deslumbra com os ricaços desta vida, e querem "subir a pulso" (termo que abomino), para o lugar do patrão!

Se tivéssemos um pingo de solidariedade e humanismo, em vez de umbiguismo e cupidez, certamente que a composição deste desgraçado parlamento seria muito diferente!