«Sem pedir licença, hoje entro por esta coluna de opinião com uma crónica, forma canónica que admite o eu. Eu não vou falar de mim, os leitores não estão para isso e fazem muito bem. Mas eu vou falar do Branco, que foi a enterrar esta semana no Alto de São João com o peito para o céu, e das brancas t-shirts que viveram esta semana frente ao Palácio de São Bento de costas para ele. A relação é uma e não é una: o que significa “partir isto tudo”. Então cá vai disto, uma crónica que começa assim:
A história começa em Viseu, anos 80, onde desde os 12 já todos discutíamos política na rua depois de ouvirmos discutir política em casa. Era 25 de Abril, CEE, era Soares e Freitas, era Eanes e Cavaco e Cunhal e tudo, era esquerda-direita e volver, assim nos formávamos com naturalidade numa cidadania política. O grupo agregava muita rapaziada e raparigada, o grupo nem era bem um grupo, era a malta, e a malta cantava de ouvido tudo o que ia saindo na nossa língua, que mordia anzol e canção de engate nesta psicopátria de sete mares às vezes feita circo de feras e etc.. Dinis Machado escreveu sobre malta como esta em boleros de pancadaria. Como em todos os grupos, a malta era feita de pequenas coligações particulares e, numa delas, já nos décimos anos de liceu, três de nós juntávamo-nos numa praça de Goa para ouvir outros três enquanto girávamos copos de vinho tinto a 33 ou 45 rotações por minuto. Os três que ouviam eram o 25, que era revolucionário, o Arriaga, que era republicano, e o Fausto, que era poeta (ou, enfim, poético). E os três que os três ouviam eram o Zeca, o Zé Mário e o Adriano. Era um comício-pândega, em que convicções e afetos embatiam como gritos e risos num mesmo envelope. Não é errado referirem-se-lhes como os da “música de intervenção”, mas é mais audiência de lápide do que audição lapidar. O Zé Mário, que sempre se referiria atrás do Zeca, era de intervenção, sim, mas não do berro. O que ele sabia de música e o que ele escrevia de poético fez uma longa escadaria que não sobe quem vê apenas o primeiro degrau.
Não me vou pôr a citar, vou-me pôr a pensar. A pensar sobre o poder da subversão das narrativas para descadeirar os sentados nas torres e os sentadinhos que em baixo preferem tratar da vidinha sem grandes azimutes. Vou-me pôr a pensar em como um Movimento 0 ganha expressão pela impressão que coloca numa agressividade pós-rebelde, tendencial e tendenciosamente ameaçadora. Aquele zero é o contrário de zelo (“zero atuações, zero detenções”), é deszelo e desprezo, desprezo pelo diálogo, pelas instituições, pelos sindicatos e pelos movimentos que conquistaram demoradamente o lugar que eles querem usurpar numa penada, sem respeito pela lei que eles próprios juraram cumprir. O que está em causa com a explosão destes movimentos não é apenas o roer do equilíbrio democrático, mas do Estado de Direito. E, claro, à espera deles de megafone está quem já eles sabem que estará, dando espetáculo sem pudor de usar as próprias palavras sindicais a que eles se opõem. Não precisamos de gente bem comportadinha, não é, Zé Mário?, mas precisamos de quem dá a cara e conquiste e não de quem não tem rosto e usurpa. Porque muitas reivindicações dos polícias têm razão de ser — como as dos médicos, dos professores, dos militares e de muitas outras classes desmunidas, desautorizadas e até hostilizadas —, mas não é razão alguns extremarem ameaças, a que um oportunista se alcandora em corpo de triunfo.
Os populismos extremistas colhem resultados quando colhem o modo de pensamento de gente de uma socie-dade alienada ou desesperada. Hoje, ninguém aos 12 anos começa a discutir política e em casa até se ouve que falar de política à mesa é falta de educação. Não, é falhar na educação. E é escavar o vale que será leito para ideologias brutas de mensagens simplificadas. Hannah Arendt escreveu-o a vida inteira, se somos contemplativos em vez de ativos, se prescindimos de participar no reino da política, então tornamo-nos uma espécie sem mundo, cedentes a adotar como identidade as ideias e os valores que outros grupos querem impor: tudo o que é preciso para que o mal colonize, escreveu, é que as pessoas deixem de pensar por si próprias.
José Mário Branco foi e é o contrário disto. Fez, mesmo, da cantiga uma arma. Fê-lo enquanto cidadão politicamente comprometido, que partiu as ventas não aos narradores mas às narrativas, contra a manipulação de quem as quer controlar, pondo barras de dinamite nas estruturas que desejam impor-se pelo controlo de um sistema de valores, dando resposta a quem não faz perguntas.
Foi isto que a ouvir os três os três aprendemos. O 25 foi viver para a Ásia, o Arriaga para África e o Fausto para Lisboa, onde esta semana o Zé Mário seguiu para o Alto cantar com o Zeca e o Adriano. Suponho que eles não olharão para baixo enquanto nós olhamos para cima. É aquela coisa da cabeça levantada. É aquela coisa de os olhos quererem ver. É esta coisa, portanto, e por tanto. O melhor será fazermos como daquela vez em que a malta foi para a aldeia e era tão alta a música e tantas as rotações do vinho que o telefone tocou para clamar que o povo da terra estava em alvoroço, o que levou a malta a levar a viola para o campo distante e deixar escrito no gesso no braço partido de um já tombado a dormir: “Fomos ao céu, vimos já.”»
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