19.8.23

Escadas

 


Escada do Tribunal Regional de Halle, Saxónia-Anhalt, Alemanha, 1901-1905.

Daqui.
.

Dia Mundial da Fotografia

 


Alfredo Cunha, Paredes de Coura, 2023.
.

Já marchavam...

 

.

O grande êxodo

 


«Interroga-se o economista Branko Milanovic se o desejo de emigração levará ao desaparecimento de povos, culturas e línguas. Estamos habituados a centrar o problema das migrações nas fronteiras da Europa e nas tragédias do Mediterrâneo. Mas há outra dimensão menos falada.

Um grande inquérito do instituto Gallup, publicado em Janeiro passado, revela que 900 milhões de pessoas desejavam abandonar os seus países em 2021, o segundo ano da pandemia da covid. Significavam 16% da população mundial. Hoje, esse número terá crescido. Mil milhões? É um êxodo. Os europeus xenófobos pensam o fenómeno como uma invasão.

O inquérito foi realizado em 122 países e abrangeu 127 mil adultos. Note-se que similar sondagem feita dez anos antes (2011) "apenas" registava a vontade de êxodo de 12% dos habitantes. As migrações sofreram uma quebra durante os dois anos da pandemia, cerca de 30% em 2020, o ano mais baixo desde 2003.

Há casos alarmantes. Na Serra Leoa, 76% dos habitantes querem emigrar. Inesperadamente, em segundo lugar surgia o Líbano, em que a vontade de sair passava de 26%, em 2018, para 63% em 2021.

Mais de metade da população desejava emigrar em países como Honduras, Gabão, Afeganistão, República do Congo (Brazzaville), Gana ou Nigéria. Na Europa destacava-se a Albânia, com 50%. Por grandes áreas e durante a década: na América Latina e Caraíbas, esse número subiu de 18% para 37% dos adultos; na África subsariana passou de 29% para 37%. Em compensação, a Ásia Oriental não mostra propensão para emigrar: a taxa passou de 7% para 4%.

Os destinos preferidos são, sem surpresa, os Estados Unidos (18%), Canadá (8%), Alemanha (7%), seguidos da Espanha, França, Reino Unido ou Austrália, todos na casa dos 4%.

Se a África continuar estagnada, aumentará a propensão para emigrar. Do ponto de vista das nações pode vir a ser dramático, mas do ponto de vista dos cidadãos seria um comportamento racional. Observa Milanovic que um tunisino de salário médio que emigra para França, mesmo recebendo aqui um salário baixo, triplicará, no mínimo, o seu rendimento e terá melhores condições para educar os filhos.

A abundância de recursos naturais, combinada com a pobreza endémica e governos fracos, suscita a competição entre as grandes potências pelas riquezas do solo e não ajuda a África a sair do círculo vicioso. A incapacidade de resposta das economias vai fazer crescer a pressão migratória e, provavelmente, fortalecer os partidos xenófobos nos países ricos, em especial na Europa.

Milanovic é um estudioso da "desigualdade global" (A Desigualdade no Mundo, 2017). Argumentou há anos que a melhor forma de ajudar o mundo pobre seria encorajar a mobilidade dos trabalhadores e conseguir que os países prósperos abram as fronteiras. Falou no antigo modelo alemão da imigração temporária. Chegou a propor uma troca entre a liberdade de movimento e a renúncia a direitos políticos e algumas regalias sociais. Mas isso conduziria a uma nova modalidade de apartheid. Reconheceu: "Se não houver um meio para que essas pessoas se tornem cidadãos, isto terá fundas repercussões na democracia." E continua a sua reflexão na última Foreign Affairs.

Mas este é o problema dos países ricos. Milanovic insiste nos países pobres. "A diferença do PIB entra a UE dos 15 e a África subsariana passou de 7 para 1 em 1980, para 11 contra 1 na actualidade. (…) E, se aumentou o desequilíbrio de rendimentos reais, aumentou ainda mais a diferença entre as taxas de crescimento demográfico. Em 1980, a EU dos 15 tinha uma população maior do que a África subsariana. Hoje, a África subsariana tem 2,5 vezes a população da UE dos 15. Nas próximas gerações, alcançará 2500 milhões de habitantes." Com estas duas abissais diferenças, de rendimentos e população, será impossível evitar uma explosiva pressão migratória.

Mas vislumbra-se outro drama em que não estamos habituados a pensar. Pergunta Milanovic se alguns países e povos não estarão destinados a desaparecer.

Segundo a Gallup, há países em risco de perderem a maioria ou até 90% da sua população. "Podem deixar de existir."

E então? "Significaria isto o desaparecimento de diferentes culturas, línguas e religiões? Sim, mas se as pessoas não se preocuparem com essas culturas, línguas e religiões, por que deverão elas manter-se? (…) A conservação da variedade das línguas e culturas não é menos importante do que a variedade da flora e da fauna no mundo."

A Europa perdeu os marcomanos, os sármatas, os hunos, os visigodos, os alanos, os vândalos, os ávaros e tantos outros povos. Conclui o nosso economista, com alguma crueldade: "Desapareceram com as suas línguas, culturas e tradições. Quem sente hoje a sua falta?"»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 18.08.2023
.

18.8.23

Pequeno vaso

 


Vaso "Borboleta de Cobalto" com decoração de folhas de prata, cerca de 1900.
Loetz.

Daqui.
.

Cohen e Lorca

 


.

Há 48 anos, Vasco Gonçalves em Almada




 

Foi em 18 de Agosto de 1975 que Vasco Gonçalves proferiu, em Almada, perante 15.000 pessoas, um discurso que durou uma hora e meia e que foi transmitido em directo pela RTP. Pode ser visto e ouvido em dois vídeos AQUI e AQUI.

Um discurso que acabou com Vasco Gonçalves lavado em lágrimas, como descreve o Diário de Lisboa do dia seguinte:




Dramática foi a carta que Otelo lhe escreveu 24 horas depois: «Percorremos juntos e com muita amizade um curto-longo caminho da nossa História. Agora companheiro, separamo-nos. Julgo estar dentro da realidade correcta deste País ao assim proceder. (...) Peço-lhe que descanse, repouse, serene, medite e leia. Bem necessita de um repouso muito prolongado e bem merecido pelo que esta maratona da Revolução de si exigiu até hoje. Pelo seu patriotismo, a sua abnegação, o seu espírito de sacrifício e de revolucionário».

O V Governo Provisório, que tomara posse dez dias antes, tinha as semanas contadas e não houve muralha de aço que lhe valesse. A 19 de Setembro, Pinheiro de Azevedo assumiria as rédeas do VI. O 25 de Novembro estava à vista.
.

O que um jornalista ganha só pode ser fake news

 


«Neymar vai ganhar mais numa hora do que um jornalista com duas décadas de carreira num ano inteiro. É uma das conclusões que se pode tirar da tabela salarial do contrato coletivo de trabalho que o Sindicato dos Jornalistas revelou há dias, após oito anos de negociações. Diga lá, ilustre leitor, se não valeu a pena a espera: um jornalista com 10 anos de carreira terá um salário — base — a começar nos €1095; com 20 anos de carreira, €1328; com 40 anos de carreira, €2051. O novo valor de entrada na profissão passa a ser €903 e é apontado pela estrutura sindical como “um marco”. Só se for o marco alemão em 1923, pois não permite adquirir bens essenciais.

A primeira reação à tabela seria, naturalmente, “com sindicatos destes, quem é que precisa de patrões”, mas o mais deprimente é que o novo acordo representa efetivamente um avanço. Segundo um documento online em que profissionais da área partilharam anonimamente os seus vencimentos, há jornalistas com duas décadas de atividade a auferirem valores pouco mais altos do que o salário mínimo.

“Jovem, vem ser jornalista! Prometemos uma vida de constante pressão e responsabilidade. Em troca, oferecemos o salário de um trabalho de verão para adolescentes. Anda! Vem cobrir congressos partidários que acabam às quatro da manhã, momento em que poderás finalmente ingerir uma refeição encomendada no UberEats, entregue por um estafeta que ganha mais do que tu.” É, sem dúvida, uma carreira apelativa.

Há uma dúzia de cursos superiores de Jornalismo e Comunicação Social em Portugal. Seria interessante saber quantos dos formados vão efetivamente trabalhar na área. E, desses, quantos é que nela permanecem mais do que o tempo necessário para concluir que é um sector sem futuro. É que há toda uma geração de jovens que entraram em licenciaturas de Jornalismo convencidos de que chegariam à secção de internacional na “The Spectator”. Hoje são “colaboradores” no Departamento de Relações Públicas do ginásio Kalorias.

Desde que os jornais passaram a vender menos em banca e a dedicarem-se ao online, os aumentos salariais são praticamente inexistentes, mas um redator passou a ter de ser jornalista, videógrafo, gestor de redes sociais, especialista em SEO, blogger, podcaster, youtuber e tiktoker.

Simultaneamente, um jornalista precisa de saber quem é a ministra do Ambiente, estar a par das regras da utilização da vírgula de Oxford e dominar a pronúncia dos apelidos Aursnes, Gyökeres, Hjulmand, Schjelderup. Paradoxalmente, o declínio do jornalismo analógico tornou os profissionais da área em máquinas de escrever. Já não usam Remingtons, mas martelam furiosamente teclas em contrarrelógio para que o órgão para o qual trabalham seja o primeiro a revelar na homepage que o Marcelo deglutiu um gelado. Viver pelo clique, morrer pelo clique.

O estado atual do jornalismo representa bem a ideia de que a nova geração viverá uma vida mais precária do que a anterior. Jornalista nunca foi uma profissão que prometesse riqueza, mas, nos anos 90, o surgimento de novos e vigorosos meios de comunicação possibilitou salários justos e condições de trabalho atrativas. Na altura, ser jornalista era não só relativamente prestigiante como viável. Hoje, ser jornalista é mal pago e, frequentemente, malvisto. É difícil pensar numa função dentro dos media a que o público atualmente dê crédito. Talvez a de autor dos trocadilhos dos oráculos da CMTV.

Sim, já sei, já sei. A horda do “jornalixo” dirá que é bem-feita, que os jornais e os jornalistas ganham mais do que merecem, que foram subjugados à agenda globalista / capitalista / comunista / benfiquista / alfarrabista. Os jornais e os jornalistas são imperfeitos, mas sobretudo são “vendidos” quando noticiam coisas que não nos dão jeito e “corajosos” quando noticiam coisas que nos dão jeito. Agora, julgo que não é polémico afirmar que quem tem em mãos a responsabilidade do escrutínio deve ter direito a um salário digno. Especialmente quando o universo da informação é dominado por indivíduos como Elon Musk ou Mark Zuckerberg — homens adultos que, neste momento, estão a agendar um evento em que é suposto que andem literalmente à porrada.

Dir-me-ão, “Manuel, apresentaste um ou outro ponto interessante, mas não faz qualquer sentido que, no início do texto, tenhas comparado a situação dos jornalistas com a do jogador profissional de futebol Neymar”. Discordo, respeitável leitor. Também já houve jornalistas a acabar a carreira na Arábia Saudita.»

.

17.8.23

Portas

 


Porta de vidro manchado com trabalhos em ferro. Bruxelas, 1902.
Arquitecto: Franz Hemelsoet.

Daqui.
.

Sorrir não custa

 



Hugo van der Ding no Twitter. .

Federico García Lorca

 


Federico García Lorca conta-se entre as primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola. Foi fuzilado, com apenas 38 anos, em Agosto de 1936, entre os dias 17 e 19, pelo seu alinhamento político com os Republicanos e por ser declaradamente homossexual.

Todos os anos nesta data, em Viznar, perto de Granada, ciganos cantam, dançam e dizem poesia em honra de Lorca e de cerca de 3.000 fuzilados pelos franquistas, cujas ossadas se encontram por perto. De madrugada, à luz de velas e das estrelas, sem nada programado, sem nenhuma convocação formal.







.

Arábia Saudita: o dinheiro tudo lava

 


«Sportswashing é o nome dado à utilização do desporto como meio de melhorar a reputação de um Estado ou instituição, associados a injustiças como a violação sistemática de direitos humanos. O termo entrou no vocabulário corrente das discussões sobre política e futebol durante o Campeonato do Mundo de 2022, realizado no Catar, em estádios construídos por trabalhadores migrantes sujeitos a condições sub-humanas, muitos dos quais falecidos durante essa tarefa. Mas parece ter sido rapidamente esquecido.

Ao invés, o que tem ocorrido é a normalização e banalização da utilização do desporto para mascarar atrocidades. O exemplo mais evidente é o da Arábia Saudita, que financia milionariamente, através do seu fundo soberano, uma liga de futebol energizada com contratações a peso de ouro das maiores estrelas do desporto-rei. A mais recente foi a contratação de Neymar, por pouco menos de cem milhões de dólares.

Pouco se discute, a propósito destas e de outras contratações, como Benzema e o nosso Cristiano Ronaldo, o facto de na Arábia Saudita a pena de morte ser aplicada sistematicamente, na sequência de processos judiciais sem as mínimas garantias de defesa, inclusive por crimes praticados durante a menoridade dos arguidos. Que a liberdade de expressão e de protesto, mesmo se apenas exercida online, como no Twitter, seja punida com penas de prisão entre os quinze e os quarenta e cinco anos. Que as organizações de defesa dos direitos humanos estejam legalmente banidas, e os ativistas sejam perseguidos, impedidos de se deslocar livremente, e condenados a penas de prisão de vários anos. Que migrantes, incluindo mulheres e crianças, sejam submetidos a tortura e condições degradantes apenas por se encontrarem no território em situação irregular. Que a legislação estabeleça que apenas os homens podem ser tutores legais, impondo a obrigatoriedade de as mulheres terem um tutor masculino para se casarem, sendo depois obrigadas a obedecer ao marido. Que homossexuais sejam decapitados, sob alegadas confissões de sexo com outros homens, pois a homossexualidade é banida por lei.

A tudo isto poderia a imprensa e a opinião pública, sobretudo ocidentais, fechar os olhos se o futebol na Arábia Saudita fosse um assunto privado, gerido por entidades privadas apenas condicionadas pelas práticas repressivas de um Estado cujo líder, sabemo-lo com pouca margem para dúvidas, é o responsável direto pelo assassinato do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em outubro de 2018.

Mas a utilização do desporto, nomeadamente do futebol, como estratégia de soft power faz parte do Vision 2030, um grande programa desenhado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman para diversificar a economia saudita, impulsionar o turismo, diminuir a dependência do petróleo e modernizar o país.

Soube-se há poucos dias que o Instituto Tony Blair continuou a ser financiado pelo Vision 2030 mesmo após o assassinato de Kashoggi. Segundo o The Guardian, o próprio Blair considerou que, não obstante aquele “crime terrível”, se justificava manter a cooperação, dado o interesse estratégico para a região do programa.

Esta cínica troca de valores por dinheiro pode chocar, mas o certo é que as várias potências ocidentais se têm vindo a reaproximar de Riade, não obstante os públicos e generalizados atropelos aos direitos humanos praticados pelo regime. O Canadá decidiu, em maio, restabelecer relações diplomáticas com a Arábia Saudita, interrompidas em 2018. O Reino Unido e os Estados Unidos são os principais fornecedores de armas da Arábia Saudita, que por sua vez são usadas em ataques devastadores ao Iémen, causando a morte a milhares de civis e originando aquela que é a maior catástrofe humanitária do mundo.

Não é só o desporto, portanto. Também a política se move por caminhos tortuosos, onde os direitos humanos e a vida são sempre colocados num patamar inferior se do outro lado da balança pesam fortes interesses económicos.

E 2018, e a indignação internacional que aquele assassinato gerou, já vão longe. Hoje lemos e ouvimos as notícias destas transferências milionárias do futebol sem que as peças, provavelmente por fadiga ou esquecimento, nomeiem Khashoggi, o seu algoz, Mohammed bin Salman, ou o facto de a violação dos direitos humanos, na Arábia Saudita, ser prática corrente e, até, política de Estado.

Assistimos, indiferentes, à normalização do regime saudita na cena internacional, com Biden a cumprimentar Mohammed bin Salman em enorme familiaridade, e Rishi Sunak a convidá-lo para uma visita oficial ao Reino Unido no próximo outono. No desporto e na política, o dinheiro lava tudo.»

.

16.8.23

Mais um vaso

 


Vaso de vidro decorado com esmalte colorido metálico. Museus Reais de Belas Artes, Bruxelas, 1906-1907.
Henri e Désiré Muller.

Daqui.
.

Julio Cortázar

 

.

Ite Missa Est

 

Ora leiam este grande texto de Carlos Matos Gomes:

.

Parolice de perna curta para esquecer Francisco

 


«O patético episódio da escolha do nome para a ponte sobre o rio Trancão pode ser visto de vários modos e dificilmente se encontrará algum que abone pela sensatez dos intervenientes. Foi uma inflamação de Moedas, surfando a sua onda do aproveitamento político dos Jornadas, depois de se ter feito filmar a carregar uma cruz, o que até foi tomado como uma graçola? Teria ele avisado o cardeal, que agradeceu por vaidade e não pensou nas consequências, ou agido de surpresa? Estarão aqueles autarcas tão habituados a dar nome de pessoas vivas a avenidas (Av. Cavaco Silva) ou a estátuas e aeroportos (Cristiano Ronaldo) que nem se dão conta da parolice que isso representa? Em qualquer caso, fez bem Manuel Clemente em, dias depois da polémica lançada, se ter retirado desta vergonha. No entanto, há aqui alguns sinais que se adensaram depois das Jornadas. O primeiro foi esta corrida política em que o autarca de Lisboa e o governo competiram: que Moedas diga agora que não a comenta a ponte para não desvalorizar o impacto da iniciativa com o Papa não deixa de ter a sua piada, atirou a pedra e agora esconde a mão; e que o governo tivesse tratado aqueles dias não como uma ação de uma comunidade religiosa mas antes como uma procissão política não deixa de ser revelador. O segundo é o ressurgimento dos discursos conservadores e restauracionistas daquela Igreja que Francisco combate. Não me surpreendeu, por isso, ler um cronista a insistir na ideia de que a interdição das ideias de Copérnico e a proibição do seu livro demonstra a abertura daqueles juízes da Inquisição à ciência, invocando ainda o testemunho de Galileu para o mesmo efeito iluminante (convirá lembrar que, tendo Galileu sido condenado ao silêncio e a prisão perpétua em 1633, só o Papa João Paulo II reparou esta ignomínia depois de um processo que levou 13 anos de estudo e em 1992, 359 anos depois).

Esse duplo investimento na banalização e na restauração conservadora, e foi uma vaga desde que Francisco tomou o avião, tem sido a forma de ignorar os seus discursos incómodos: contra a pedofilia, uma patologia a cuja irradicação a cúpula da Igreja católica portuguesa foi das mais resistentes; contra a guerra, que agora é o pilar das políticas que se defrontam na Europa e que se estende ao mundo; pelos direitos dos migrantes, e quem o quer ouvir?; e, presumo que mais do que tudo, contra o economia e a finança que matam, os termos que escolheu para retomar a lição paulina (“A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro”, Paulo a Timótio, 1 Tim 6:10) e que ressoam como uma heresia para uma instituição construída na convivência com os poderes. A facilidade com que os conservadores abandonaram o simbolismo do nome na ponte pedonal não será a mesma com que cederão a uma noção de igualdade ou democracia que inclua toda a gente. O “todos, todos, todos” está por cumprir e Francisco será o primeiro a sabê-lo.»

.

15.8.23

Entradas

 


Entrada do Palácio Cantacuzino, (hoje Museu Nacional George Enescu), Bucareste, 1902.
Arquitecto: lon Berindey.

Daqui.
.

Um ritual desta data

 


.

15.08.1947 – Independência da Índia



 

Eduardo Galeano, Los hijos de los días:

.

René Magritte

 


56 anos sem ele.
.

A tragédia de Maui pode acontecer em Portugal

 


«Por mais que se tente ignorar, o que se passou em Maui, no Havai, podia muito bem acontecer em Portugal, e isto devia ser interiorizado. No ano passado comentei sobre este assunto, mas esta temática continua a ser ignorada pelos agentes construtivos e pelos engenheiros projectistas.

As alterações climáticas vieram para ficar. Assim sendo, devemos estar protegidos com medidas passivas para sobreviver à passagem do fogo florestal, quando este atingir as nossas habitações.

O que passou na ilha de Maui foi na realidade um evento extremo, como o que tivemos em Portugal em 2017. Mas desta vez foi ainda pior. Quando em conjunto com um incêndio florestal, começa um furacão, nada vai parar o fogo que avança rapidamente enquanto encontra combustível. O papel dos bombeiros nestes tipos de eventos é quase irrelevante. Estes heróis pouco podem fazer nestas situações extremas.

Resumindo, passou-se de um incêndio numa vegetação densa para um incêndio urbano, que nada parou enquanto o fogo conseguia encontrar combustível, fosse ele natural ou artificial. Como reportaram algumas testemunhas, a velocidade do fogo foi elevada e muitas pessoas foram apanhadas de sobressalto, algumas chegaram a saltar da estrada para o mar, numa tentativa desesperada de fugir às chamas. No momento em que escrevo, contabilizam-se mais de 90 mortes e 2200 edifícios destruídos. Algumas das vítimas morreram dentro de casas, envoltas pelas chamas. O fogo percorreu a cidade de Lahaina em menos de 17 minutos. Quando os bombeiros chegaram, as chamas já se tinham apagado. O valor dos danos tem sido estimado em cerca de 6 mil milhões de dólares.

Estas mortes e destruição das habitações podiam ter sido evitadas, quando o fogo atingisse a interface urbano florestal? Devido às alterações climáticas, garantir que não há fogos florestais é uma opção irrealista. Pelo que a resposta mais simples é: as habitações têm de ser à prova de fogo florestal, com tipologias construtivas antifogo nas fachadas exteriores.

Presentemente, em Portugal, já temos a possibilidade requerer estas tipologias construtivas e de permitir que os engenheiros promovam projectos de edificação com regras antifogo florestal, através do despacho n.º 8591/2022. Também no centro de investigação no CERIS [Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability), do Instituto Superior Técnico, através do projecto Wildfire House Protection (whp.tecnico.ulisboa.pt), já temos toda a informação sobre como tornar qualquer edificação um refúgio, para que, quando uma localidade urbana seja atingida por um fogo florestal, as pessoas se escondam com segurança em casa, em vez de fugir para a estrada onde o fogo alastra com temperaturas que podem chegar aos 800 a 900°C. Estes guias construtivos servem tanto para construções antigas como construções novas, sendo que as primeiras têm de passar por um processo de reabilitação.

As medidas do projecto Aldeias Seguras são de louvar, mas, no caso de eventos extremos semelhantes ao de Maui, estas medidas activas e reactivas não são suficientes.

Estará Portugal rural preparado para embarcar na protecção passiva das suas habitações, para num futuro próximo salvar múltiplas vidas?»

.

14.8.23

Vinhos

 


Abel Pereira da Fonseca, Lisboa, 1910-1917.
Arquitecto: Norte Júnior.

O edifício destaca-se pela originalidade da fachada: as grandes janelas circulares, com formato de barris, são encimadas por aglomerados de uva e folhas de videira em referência ao trabalho da empresa.
No piso superior, há uma grande estrutura circular de ferro que identifica a empresa proprietária, e um festão com videiras e uvas esculpidas em relevo.

Daqui.
.

14.08.1936 – Os massacres de Badajoz

 


Em 12 de Agosto de 1936, as tropas nacionalistas começaram o assalto a Badajoz, naquela que foi a luta mais dura desde o início da Guerra Civil. Quando a cidade se rendeu, todos os que tinham resistido foram levados para a praça de touros, ou para as imediações do cemitério, para serem executados ─ no dia 14 de Agosto de 1936. Não se conhece exactamente o número de mortos, que varia, segundo as fontes, entre 2.000 e quase 4.000.






O governo português foi cúmplice das tropas nacionalistas, tanto deixando que alguns dos seus elementos penetrassem no nosso território em perseguição aos republicanos, como colocando alguns destes na fronteira do Caia, de onde foram levados para Badajoz e executados.
.

14.08.1385 – A nossa Padeira

 


Conta a história ou a lenda, e para o caso pouco importa, que foi num 14 de Agosto que «uma mulher corpulenta, ossuda e feia, de nariz adunco, boca muito rasgada e cabelos crespos», com seis dedos em cada mão, Brites de Almeida de seu nome, pegou em armas e se juntou às tropas portuguesas que se fartaram de matar castelhanos. Veio a casa, despachou mais sete que encontrou escondidos no forno e fez-se de novo à estrada. Ah, valente!
.

Carlos Moedas, Manuel Clemente e uma comunidade melhor

 


«A escolha do nome para a nova ponte ciclopedonal que liga Lisboa a Loures não terá passado pela Comissão de Toponímia, como deveria. Desconhece-se também que tenha sido aprovada em reunião de câmara ou que tenha sido ouvida a junta de freguesia da área. Tratou-se de uma escolha deste executivo, ou seja, de uma escolha de Carlos Moedas, que ignorou os vários preceitos legais e boas práticas aplicáveis ao procedimento. Outro exemplo é o de dar o nome de uma personalidade ainda viva. Qual a razão para esta exceção à regra de que se deve aguardar cinco anos após o óbito da pessoa que se pretende homenagear?

Não foi por isto que a decisão de Carlos Moedas desagradou. Há mais e é pior. Manuel Clemente é um nome ligado ao encobrimento dos casos de abuso sexual por parte de padres da Igreja. Esta ligação foi amplamente noticiada na comunicação social e chegou a ser relatado que a atuação do cardeal contrariou as próprias normas internas da Igreja Católica ao não comunicar um caso às autoridades civis e tendo deixado o alegado abusador continuar em funções.

Quem se dedicou à leitura do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa terá uma menor tolerância a qualquer iniciativa que tenha implícito ignorar a sensibilidade das vítimas. São mais de quatrocentas páginas de horror. Não falo de opiniões e considerações, falo de factos e de relatos. O relatório continua disponível para quem o quiser ler.

A JMJ correu bem. Correu bem sobretudo a Carlos Moedas, que compareceu a todos os eventos, chegou a carregar um crucifixo publicamente (apesar de não ser católico) e contratou várias empresas especializadas em comunicação para garantir que tudo seria bem comunicado. Montou uma verdadeira máquina de propaganda. Pode-se duvidar do retorno da JMJ para todos nós, mas o de Carlos Moedas está à vista. O seu entusiasmo com o sucesso da JMJ é evidente e notório. Talvez propício a esquecimentos e distrações. Certo é que tomou uma decisão que ignora completamente o sofrimento de milhares de vítimas e que dá uma nova razão para o reavivar.

Não tenho elementos para avaliar a atuação do cardeal e este artigo não pretende fazê-lo. Mas há aqui evidências. Se o seu nome está ligado ao encobrimento de abusos sexuais e essa ligação nunca foi claramente esclarecida ou afastada, devemos todos exigir que equipamentos construídos com dinheiros públicos não sirvam para o homenagear. Essa é a nossa solidariedade para com as vítimas. É uma pena que o poder político não seja porta-voz desse princípio ético.

E existe aqui um aspeto que deve ser esclarecido. Ao contrário do que resulta do comunicado da CML, a nova ponte resultou de uma ideia e de um projeto anteriores à JMJ e numa altura em que ainda não se falava do evento. Veio do gabinete de José Sá Fernandes, na altura vereador na CML, a decisão de fazer a ponte e o respetivo desenho. Foi também Sá Fernandes que tentou, e conseguiu, obter fundos europeus para a sua construção, e o concurso para a obra foi lançado pela Emel. Mais: a obra teve início antes das eleições autárquicas que elegeram Carlos Moedas. Do outro lado do rio, Bernardino Soares candidatou a fundos um passadiço junto ao rio e assim ficou na calha uma ligação ciclopedonal de Lisboa a Vila Franca, passando pela frente ribeirinha de Loures. Associar tudo à JMJ é uma moda que aborrece.

Foi Manuel Clemente quem, junto de Fernando Medina e de António Costa, primeiro defendeu a ideia de apresentar uma candidatura para se realizar em Lisboa a JMJ. Faz sentido chamar-lhe o principal impulsionador do evento. É justo, esse mérito é seu. Talvez por isso, Manuel Clemente foi pronto a aceitar e a agradecer a homenagem. Tal como aconteceu a Carlos Moedas, não lhe terá passado pela cabeça a situação das vítimas. Sobretudo não passou pela cabeça de nenhum dos dois que isto não iria passar em branco e que as pessoas iriam reagir. Mas enganaram-se bem. Está a circular uma petição pública contra o nome do cardeal e milhares de pessoas já a assinaram. Estamos a ficar melhores, enquanto comunidade.»

.

13.8.23

Mais portas

 


Porta ornamentada Arte Nova, Paris, 1898.
Arquitecto: Jules Lavirotte.

Daqui.
.

13.08.1961 – O dia em que nasceu um Muro em Berlim







Este começou a ser construído há 62 anos e durou 28. E o mundo nunca mais foi o mesmo.




.

Onde o setor público falha

 


«Um quinto dos portugueses vive em 133 concelhos com elevada concentração de oferta hospitalar privada. E em 88 desses municípios, sobretudo do interior, a posição dos privados é potencialmente dominante. O alerta é da Entidade Reguladora da Saúde, que descreve com toda a clareza os riscos para os utentes - custos mais elevados, menor qualidade na prestação de cuidados e restrições à liberdade de escolha.

De uma penada, o relatório mostra duas conclusões: a debilidade do Serviço Nacional de Saúde, desprotegendo cidadãos que se veem arredados da sua cobertura, e o círculo vicioso que torna os territórios do interior cada vez menos atrativos. A menos gente vai-se respondendo com menos serviços públicos, mas com falta de serviços de qualidade é ainda mais difícil atrair ou fixar população.

Um dia depois da divulgação deste relatório, outro exemplo demonstrou isto mesmo. O Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado promoveu o “funeral” simbólico de duas conservatórias, em Góis e Penamacor, desprovidas de funcionários suficientes para evitar o fecho de portas em período de férias. São apenas duas de muitas notícias da semana, a que se poderiam somar alertas do Banco de Portugal sobre a cobertura da rede multibanco ou sobre tantos outros serviços.

O Governo bem pode fazer declarações públicas de amor ao SNS, ao mesmo tempo que promete mais coesão territorial, que no terreno aquilo que vamos vendo é cada vez mais fragilidades e assimetrias. Na educação, na saúde, nas finanças, nos registos, é obrigação do Estado assegurar o acesso a todos os cidadãos. A interioridade não é uma questão geográfica, nem um lugar vago no mapa. É uma condição de fragilidade e abandono sempre que os serviços públicos não dão resposta. O drama é que essa incapacidade é cada vez mais visível.»

.