«O patético episódio da escolha do nome para a ponte sobre o rio Trancão pode ser visto de vários modos e dificilmente se encontrará algum que abone pela sensatez dos intervenientes. Foi uma inflamação de Moedas, surfando a sua onda do aproveitamento político dos Jornadas, depois de se ter feito filmar a carregar uma cruz, o que até foi tomado como uma graçola? Teria ele avisado o cardeal, que agradeceu por vaidade e não pensou nas consequências, ou agido de surpresa? Estarão aqueles autarcas tão habituados a dar nome de pessoas vivas a avenidas (Av. Cavaco Silva) ou a estátuas e aeroportos (Cristiano Ronaldo) que nem se dão conta da parolice que isso representa? Em qualquer caso, fez bem Manuel Clemente em, dias depois da polémica lançada, se ter retirado desta vergonha.
No entanto, há aqui alguns sinais que se adensaram depois das Jornadas. O primeiro foi esta corrida política em que o autarca de Lisboa e o governo competiram: que Moedas diga agora que não a comenta a ponte para não desvalorizar o impacto da iniciativa com o Papa não deixa de ter a sua piada, atirou a pedra e agora esconde a mão; e que o governo tivesse tratado aqueles dias não como uma ação de uma comunidade religiosa mas antes como uma procissão política não deixa de ser revelador. O segundo é o ressurgimento dos discursos conservadores e restauracionistas daquela Igreja que Francisco combate. Não me surpreendeu, por isso, ler um cronista a insistir na ideia de que a interdição das ideias de Copérnico e a proibição do seu livro demonstra a abertura daqueles juízes da Inquisição à ciência, invocando ainda o testemunho de Galileu para o mesmo efeito iluminante (convirá lembrar que, tendo Galileu sido condenado ao silêncio e a prisão perpétua em 1633, só o Papa João Paulo II reparou esta ignomínia depois de um processo que levou 13 anos de estudo e em 1992, 359 anos depois).
Esse duplo investimento na banalização e na restauração conservadora, e foi uma vaga desde que Francisco tomou o avião, tem sido a forma de ignorar os seus discursos incómodos: contra a pedofilia, uma patologia a cuja irradicação a cúpula da Igreja católica portuguesa foi das mais resistentes; contra a guerra, que agora é o pilar das políticas que se defrontam na Europa e que se estende ao mundo; pelos direitos dos migrantes, e quem o quer ouvir?; e, presumo que mais do que tudo, contra o economia e a finança que matam, os termos que escolheu para retomar a lição paulina (“A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro”, Paulo a Timótio, 1 Tim 6:10) e que ressoam como uma heresia para uma instituição construída na convivência com os poderes. A facilidade com que os conservadores abandonaram o simbolismo do nome na ponte pedonal não será a mesma com que cederão a uma noção de igualdade ou democracia que inclua toda a gente. O “todos, todos, todos” está por cumprir e Francisco será o primeiro a sabê-lo.»
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