6.5.23

Lojas

 


«La Samaritaine», Paris, 1910.
Arquitecto: Frantz Jourdain.

[Mais sobre «La Samaritaine» aqui.] 

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06.05.1968 em Paris: as barricadas



 

Na segunda-feira, 6 de Maio, começou a semana das barricadas. A partir das 15:00 horas, registaram-se muitos e graves confrontos entre estudantes e polícia. Neste vídeo, o resumo do que se passou durante os dias que se seguiram, até à reabertura da Sorbonne:



Na véspera, 5 de Maio, Cohn-Bendit, fizera a seguinte declaração: «Nous disons que l'État est partie prenante de l'antagonisme de classe, que l'État représente une classe. La bourgeoisie cherche à préserver une partie des étudiants, futurs cadres de la société. Le pouvoir possède la radio et la télévision, et un parlement à sa main. Nous allons nous expliquer directement dans la rue, nous allons pratiquer une politique de démocratie directe.»
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O “grito do Ipiranga” de António Costa

 

«Mas há mais irregularidades que implicam directamente o ministro João Galamba. Ele mentiu ao emitir um comunicado, a 6 de Abril, em que afirmava que tinha sido a presidente executiva da TAP a pedir para ir à reunião com o deputado Carlos Pereira, na qual foi preparada a audição na Comissão Parlamentar de Economia. E envolveu uma colega de Governo, a ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendonça Mendes, ao dizer que a reunião foi por esta marcada. Isto, porque na inacreditável conferência de imprensa, do passado sábado, o ministro revelou que foi ele mesmo que lhe sugeriu a participação na reunião de 16 de Janeiro, numa outra reunião que ambos mantiveram na véspera. Assim como não é normal nem cordial a forma como João Galamba, na conferência de imprensa de sábado, expôs a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, e o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, António Mendonça Mendes.

A partir de agora, depois de assumir a autonomia política em relação ao Presidente da República, o primeiro-ministro sabe que, no seu caminho até ao fim do mandato, não pode estar sujeito a mais armadilhas lançadas de dentro do próprio Governo. Nomeadamente, pelo que ainda vai ser tornado público na comissão parlamentar de inquérito à TAP, a começar pelas audições do ministro das Infra-Estruturas e do adjunto que demitiu. A alteração do relacionamento institucional entre os dois cria espaço para Marcelo Rebelo de Sousa poder dar o passo em frente e convocar mesmo eleições.»

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Quantos Chicos Buarques valem um Roman Abramovich?

 


«A genealogia de Chico Buarque é debatida desde a sua primeira aparição pública. Filho do sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda e descendente de diversas famílias tradicionais do Nordeste e do Sudeste brasileiros, sua história familiar sempre chamou atenção. Em sua música Paratodos, Chico usa sua genealogia como alegoria para dizer que em seu sangue carrega todos os povos e regiões do Brasil. A letra é um convite à reflexão sobre preconceitos étnicos e geográficos e a abraçar a diversidade do país.

Ao citar essa música, Chico Buarque fez a surpresa de seu discurso de aceitação, há dias, do prémio Camões relativo a 2019. É descendente de Brites Mendes de Vasconcelos, António Bicudo, Belchior da Rosa, até mesmo Abraham Sénior, último rabino-mor da Espanha, e outros judeus reconhecidos pela Comunidade Israelita de Lisboa (CIL). Optou por falar no cristão-novo Diogo Pires, nome cristão de Shemtob Ben Abraham, também conhecido como Santo Fidalgo. Nesse trecho, Chico revela sua origem sefardita e considera a nacionalidade a que teria direito uma importante reparação histórica.

Ele não usou esse termo levianamente. Sua família participou na construção da esquerda e redemocratização do Brasil. Seu pai foi autor de Raízes do Brasil e Visão do Paraíso, duas das principais obras que investigam a formação da identidade cultural brasileira e que foram inspiração para políticas públicas de reparação histórica no Brasil, como quotas raciais e sociais nas universidades. Foi também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), do Presidente Lula.

Até o dia 24 de abril de 2023, à luz do caso Abramovich, requerentes da nacionalidade eram retratados como oportunistas ou como pessoas que não iriam contribuir para Portugal nem sequer migrar ao país. No entanto, Chico Buarque cita a nacionalidade ao receber o maior prémio da lusofonia. E não o fez por oportunismo, já que é cidadão italiano. Mas o fez por amor e respeito à cultura portuguesa.

Para cada Abramovich, há inúmeros Chicos Buarques. A cantora Marisa Monte, que já é cidadã portuguesa, é notadamente descendente da cristã-nova Branca Dias, assim como a cantora Anitta. A atriz Mariana Ximenes e o comediante Renato Aragão, conhecido como o trapalhão Didi, são ambos descendentes tanto de Branca Dias quanto de Abraham Sénior. E mais tantas outras pessoas nas artes e nas ciências.

A Proposta de Lei n.º 72/XV/1.ª, se aprovada, pode encerrar de vez as chances de Chico Buarque ser português – não pretende obter naturalização por residência, já que não deseja morar fora do Brasil. A regulamentação pode não ser o bastante para ele, uma vez que receber o Prémio Camões não constitui vínculo com Portugal, somente viagens ao país ao longo da vida, sem discriminar o número ou ponderar por idade, ou receber herança em Portugal, algo cruel para descendentes de quem teve seus bens tomados há séculos.

A proposta apresenta vícios de origem. Chico seria apenas um de entre vários artistas, intelectuais, empresários, cientistas e trabalhadores que mesmo à distância de Portugal poderiam contribuir com o desenvolvimento da comunidade portuguesa no mundo, que cada vez mais se espalha em diáspora de forma a enriquecer o mundo com a sua cultura. É necessário que as regras sejam viáveis, assim como o processo transparente para a sociedade. O preconceito não pode ser uma condição para tomar decisões em uma lei de reparação histórica. Quanto Chicos Buarques perderá Portugal por medo de deixar entrar mais um Roman Abramovich? Quantos Chicos Buarques valem um Abramovich?

Se Paratodos é uma reflexão sobre a formação brasileira, seu discurso no Prémio Camões acrescenta mais uma estrofe à música, e convida a uma nova reflexão sobre a condição em que se torna português, e como a ancestralidade sefardita é parte da conexão com Portugal. Hoje, podemos dizer que a cultura trazida por Chico Buarque é também portuguesa legítima, com sangue e tradições de judeus portugueses perseguidos. E é assim que ele pode ser cidadão português: com reconhecimento de sua ancestralidade judaica. Pela sua história. E Paratodos.»

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5.5.23

Casas

 


«Casa com Gatos», Kiev, Ucrânia, 1909.
Arquitecto: Volodymyr Bezsmertnyi.


Daqui.
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Gélidos e viperinos

 


Os OCS e muitos republicanos das redes sociais estão já a virar-se, deliciados, para as imagens da coroação de um rei, mas regressemos ainda ao nosso passado recente.

Resumindo:
- Um delegado de turma não conseguiu manter a ordem numa aula do terceiro ciclo e veio queixar-se a toda escola com pompa e muitos detalhes;
- O director deu-lhe razão e manteve-o na função;
- Uma autoridade sénior do país não concordou, tentou em vão demover o director e veio dizer ao país que o delegado de turma nem para porteiro da escola servia.

Mais a sério: Galamba já trazia um fardo de inconsequências às costas, geriu pessimamente uma situação mais ou menos elementar, era mais do que generalizada a convicção de que seria demitido pelo primeiro ministro e este não a concretizou, não por ser a melhor decisão para o país (alô, TAP...), para o governo e para o próprio Galamba, mas apenas para criar um braço de ferro com o presidente da República que estava a querer imiscuir-se nos seus domínios. Marcelo não gostou, deixou ameaças de controle apertado ao governo e espezinhou Galamba para além do imaginável.

Tudo isto é normal em política? Não, não aceito. Há políticos, mesmo a alto nível, que são pessoas decentes e boas e já tivemos algumas. Neste caso, Marcelo e Costa não pertenceram a essa categoria: foram maus – maus de maldade, mesmo. Gélidos e viperinos.
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Estabilidade não inibe Marcelo de aniquilar o ministro e o governo

 


«O Presidente foi fiel a si próprio, institucionalista e com sentido de Estado ao não ativar a bomba atómica. Sabendo que a Oposição ainda tem um longo caminho a percorrer e não querendo ficar para a História como o presidente que abriu a porta a uma coligação de Direita que poderia permitir levar o Chega para o poder, Marcelo foi duro no discurso e não se inibiu de usar todas as palavras que expressam o seu desagrado. Marcelo deu um murro na mesa.

Passada a fúria ou o desalento, Marcelo foi tão gelado quanto a sobremesa que comia na última quarta-feira à noite. Duro e implacável, não poupou nem o ministro nem o governo. Por outras palavras, Marcelo aniquilou ambos. No que diz respeito ao ministro João Galamba, em particular, rotulou-o de incapaz. Afirmou não ser responsável, não ser confiável.

As palavras de Marcelo deixaram clara a razão da discordância com António Costa quando este decidiu manter Galamba no Executivo. Marcelo fala em "divergência de fundo" sobre uma realidade muito mais importante do que as características pessoais: a autoridade, a confiança, a credibilidade.

António Costa sai beliscado de tudo isto e vai custar-lhe caro, no presente e no futuro, pela forma como fica colado ao caso do ministro Galamba, um governante que não é alheio a polémicas. Basta continuar a prestar atenção aos resultados da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP, qual panela da qual ainda vão sair muitas pipocas e algumas delas esturricadas, para antever novos problemas.

Nos últimos dias, António Costa tentou fazer xeque-mate ao Presidente, mas acabou por ser Marcelo a mexer a última peça no tabuleiro. Deste conflito institucional, até esta quinta-feira parecia resultar um primeiro-ministro mais forte, um presidente mais fraco e um ministro acabado. Mas Marcelo tentou virar o jogo. Não se pode concluir que o Presidente saia desta situação reforçado, até porque, por diversas vezes, ameaçou ativar a bomba atómica, mas neste dia mostrou liderança e firmeza. Na opinião do vice-presidente do PSD, Miguel Pinto Luz, e que nesta edição de sexta é entrevistado no DN e na TSF, "Costa vai sentir, pela primeira vez, um Marcelo que não conhecia". Na prática, pode tornar-se um Soares no final do cavaquismo, muito escrutinador, quase um polícia (ainda mais musculado) da legislatura.

A partir daqui uma coisa é certa: a convivência entre os dois palácios mudou. Começa uma nova era nas relações São Bento-Belém. Marcelo não dará mais "colo", como diz a Oposição, ao Executivo. E face a tão grande divergência parece igualmente certo que, mais cedo do que tarde, o país vai ter eleições antecipadas. Como disse Marcelo "há que olhar para os custos objetivos do que aconteceu. Estas coisas não se apagam, não passam, reaparecem".»

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«A mentira como método corrói a democracia»

 


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4.5.23

Nem algemada

 


… alguém me obrigaria a ir amanhã retomar a actividade de ministra, depois de ouvir o que o PR, que me deu posse no cargo, disse de mim esta noite.
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Hoje, às 20:00: Santini ou Vichyssoise?

 

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Kindergarten

 

«E, depois disto tudo, mais encenação. O ministro Galamba, por acaso detentor de uma das pastas mais relevantes do Governo, a demitir-se quando sabia que a demissão não seria aceite pelo primeiro-ministro, o primeiro-ministro a esticar para lá do limite as relações com o presidente da República.

Já não temos um Governo. Vivemos tempos em que a política, pela qualidade dos protagonistas, se resume a um jogo de bastidores para ver quem encosta quem, quem se salva no final do dia. Em que o brilhantismo político, que deveria ser dedicado ao país, está enredado na tática.»

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O maior aliado é o maior pesadelo

 


«“É o nosso maior aliado político, mas pode tornar-se o nosso maior pesadelo.” Quem o escreveu, referindo-se a Marcelo Rebelo de Sousa, a partir do âmago do Governo, foi Hugo Mendes, o secretário de Estado que António Costa teria demitido se tivesse conhecido este email, em quem ele aconselhava a CEO da TAP a alterar uma viagem para agradar ao Presidente da República.

António Costa não aceitou a demissão de João Galamba e, consequentemente, o aliado político de ontem será certamente um pesadelo recorrente de Costa para os próximos tempos. O primeiro-ministro achou que este era o momento para se separar de alguém que, vale a pena recordar, o PS deixou ser reeleito sem apresentar um candidato próprio às presidenciais.

Fê-lo como um gesto de afirmação da sua autoridade, com uma encenação que não deixa de ser lamentável, ao permitir que o seu ministro apresentasse uma demissão que não era para levar a sério, porque logo a seguir não seria aceite. Fê-lo para contrariar claramente Marcelo, cansado de tanto o ouvir falar de dissolução – o que objectivamente enfraquece o Governo –, mostrando alguma vontade de ir a jogo quando, neste mesmo fim-de-semana, deu notícia ao Expresso, através de fontes próximas, de que, se houvesse eleições antecipadas, o candidato do PS seria ele.

É pouco provável que Marcelo Rebelo de Sousa lhe faça a vontade. Os riscos são imensos. Desde logo, porque ele falou tanto de dissolução que seria sempre não só o autor material, como o autor moral dessa decisão. Para quem anda a pregar a necessidade de estabilidade, especialmente durante este ano, seria muito complicado explicar, mesmo com tanta trapalhada governamental, porque derrubava uma maioria absoluta eleita há pouco mais de um ano.

Mas mais trágico, na perspectiva presidencial, é a hipótese real de que do sufrágio saísse ou um PS vencedor (não restaria muito mais ao Presidente do que demitir-se de seguida), ou um PSD a precisar muito do apoio de um partido como o Chega, um ponto baixo na história do regime a que certamente um democrata como Marcelo não gostaria de ficar associado.

O Presidente tem tido, na maior parte dos momentos, uma atitude responsável e de necessária vigilância do Governo, quando a oposição, tão débil, não representa essa garantia de equilíbrio do sistema. É nessa linha que se espera que ele continue, mesmo que isso possa ser confundido com o célebre adágio de que a vingança se serve fria.»

3.5.23

Vichyssoise

 


Quem gosta de cozinhar bem pode ir coleccionando receitas de vichyssoise, para identificar qual será a primeira que Marcelo irá servir e em que tipo de baixela.
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Georges Moustaki, seriam 89

 


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03.05.1919 – Pete Seeger

 


Chegaria hoje aos 104 e morreu em 2014 com 94.

Na década de 60, tornou-se um dos ícones da música de protesto contra a guerra e na defesa dos direitos civis. Transpirava força e optimismo, ajudou muitos a lutar para que que este mundo viesse um dia a ser melhor.

Sobre a vida de Pete, um texto: La vida en un puñado de versos

Alguns vídeos:








E depois do fim:


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O 3 de Maio na Sorbonne como nunca o esqueceremos

 


Foi numa 6ª feira da primeira semana de Maio de 1968 que o mítico movimento estudantil francês, que arrancara em 22 de Março com a ocupação da Universidade de Nanterre e chegara ao Quartier Latin na véspera, 2 de Maio, tomou maiores proporções. Depois de reuniões várias e de confrontos entre grupos de estudantes rivais, o reitor da Sorbonne ordenou a evacuação desta pela polícia e seguiram-se horas de verdadeira batalha campal, com barricadas, cocktails Molotov, pedradas, matracas e gases lacrimogéneos. Tudo resultou em dezenas de feridos e mais de 500 prisões e os distúrbios continuaram nos dias que se seguiram.

Depois, o movimento extravasou para o mundo do trabalho, a nível de operários, de camponeses e do sector terciário, reuniu-se numa gigantesca manifestação em 13 de Maio e esteve na origem de uma longa greve geral incontrolada.

Foram-se acalmando as hostes, foi dissolvida a Assembleia Nacional em 30 de Maio e realizaram-se eleições legislativas (que os gaulistas ganharam por larga maioria) no mês de Junho. Mas nada ficaria na mesma e não só em França.

A recordar:

A célebre intervenção de Daniel Cohn-Bendit no pátio da Sorbonne e a evacuação pela polícia:



E uma canção da época, pela emblemática Dominique Grange:


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Costa paga para ver o jogo de Marcelo

 


«Não me vou dedicar aos deprimentes episódios do filme do Ministério das Infraestruturas, até porque conheço demasiado bem os dois principais envolvidos. Tenho as minhas convicções, mas elas são irrelevantes. A parte que não é política deste caso será decidida por um juiz e eu não sou juiz. Nem António Costa.

Uma das questões politicamente relevantes ficou resolvida: seja porque o ministro o quis, apesar do adjunto querer “sonegar” durante três meses um documento embaraçoso para o governo e indiferente para ele próprio, seja porque o adjunto avisou que se fosse chamado à CPI teria de falar da sua existência, as notas da reunião entre o grupo parlamentar do PS e a CEO da TAP foram entregues à Comissão de Inquérito. Não tivesse chegado à imprensa, seria um mero desentendimento dentro do gabinete. O que não se resolveu foi o facto de, mesmo assim, o ministro ter deixado escalar o caso até o levar, ele mesmo, para a comunicação social.

A segunda questão é o envolvimento do SIS num conflito interno de um gabinete. Se verá mais à frente se a lei dá cobertura ao que foi feito. Difícil é defender a proporcionalidade nesta decisão perante um adjunto que ficou mais umas horas com documentos classificados que estavam no seu computador há anos e que não só ele conhecia de trás para a frente como terá proposto a sua classificação. E uma coisa não está sujeita a debate: foi o ministro que, em conferência de imprensa, divulgou a utilização do SIS que, como explicou o Presidente, deveria estar sujeita a alguma descrição. Pior: fê-lo envolvendo o primeiro-ministro e ministra da Justiça.

A terceira questão é o facto de, na conferência de imprensa, o ministro ter acabado por desmentir a tese até agora veiculada pelo governo (pelo seu Ministério, portanto) sobre a ida da CEO da TAP a uma reunião com o grupo parlamentar do PS, assumindo que a sugestão fora sua, coisa que, rios de tinta depois, desmente a tese do governo.

Por fim, João Galamba foi incapaz de resolver uma crise no seu gabinete, até se chegar ao que tem sido descrito a um país atónito. A forma como lidou com a pequena crise interna não foi a de baixar a intensidade e resolver as coisas com a descrição possível, foi a de atirar tudo para a ventoinha, parecendo que a prioridade era descredibilizar ou denunciar (cada um escolhe o termo que entender) o adjunto, não era preservar o governo e as instituições da República. A gestão do conflito, primeiro, e de comunicação, depois, foi para lá de desastrosa. Quem não consegue resolver crises num gabinete de poucas pessoas dificilmente as resolverá em várias das enormes empresas que tutela.

Enquanto tudo isto acontecia, os números confirmavam que Portugal liderou o crescimento económico europeu no primeiro trimestre, com poupanças extraordinárias nos cofres públicos. Claro que a festa ignora o estado dos serviços públicos. Claro que este crescimento não se sente na vida das pessoas massacradas pela inflação, salários que não a acompanham e crise da habitação. Repete-se aquela máxima de Luís Montenegro durante a troika, reveladora da forma como se olha para a política e para a economia: “A vida das pessoas não está melhor, mas a do País está muito melhor". Mas, nos critérios ideológicos dominantes, seria um momento extraordinário para o governo.

Desta vez o governo não se pode queixar da imprensa, que só liga a “casos e casinhos”. A fonte inicial de quase todos os episódios caricatos deste caso, no dia das boas notícias económicas, foi o governo. Foi ele que estragou a sua própria festa.

A demissão de João Galamba era tão evidente que nem os mais próximos de António Costa disfarçaram que estava por horas. Não o demitir, perante esta semana louca, seria uma provocação ao Presidente da República. E foi isso mesmo que salvou João Galamba.

Estava convencido que António Costa convenceria, com a dignidade possível, o ministro a demitir-se. Convenceu-o a fingir que se demitia para recusar, repetiu todos os argumentos da desastrosa conferência de imprensa, apontou as baterias para um adjunto sem instrumentos de defesa e, por fim, assumiu um desafio frontal ao Presidente.

Marcelo contribuiu para tudo isto, ao fazer ameaças vazias de dissolução, transformando qualquer cedência do governo numa insuportável derrota. Como João Galamba encostou a cabeça de Costa ao cotelo de Marcelo, o primeiro-ministro tinha de se libertar.

António Costa sabe que João Galamba é e será um problema para si. Como se viu neste episódio. E como ter um ministro neste estado fragiliza ainda mais o dossier da TAP, sempre na berlinda por causa da comissão de inquérito. Não acredito que acredite que isto é sustentável. Mas essa não é a sua prioridade.

Costa quer o tudo ou nada para que, de alguma forma, Marcelo o tem o empurrado: ou o deixa em paz ou marca novas eleições antecipadas, coisa que já tinha dado a entender quando disse que se recandidataria. Está a fazer com Marcelo o que fez com Catarina e Jerónimo: ou baixam a cabeça ou têm uma crise política. A resposta de Marcelo ainda não deixou claro se se fica, mas deu essa impressão. Se se ficar, é ele que fica fragilizado. Se reagir, é ele que provoca uma crise política. E estamos nisto, num país que precisava de adultos a liderá-lo.»

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2.5.23

Governo

 

Hoje foi o primeiro dia não sei exactamente de quê.

Nota do Presidente da República
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Fachadas

 


Detalhe da fachada da «La Casa de los Lirios», Buenos Aires, 1903-1905.
Design pelo engenheiro Eduardo S. Rodríguez Ortega.

[Mais informação sobre «La Casa de los Lirios» aqui.]


Daqui.
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Eis, eis...

 


Ainda não sabemos se haverá um ex-ministro, mas já há um «eis»-adjunto. Querido jornalismo…
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02.05.1968 – Nanterre

 


Foi em Nanterre que se deu o pontapé de saída para o 3 de Maio na Sorbonne.
55 anos depois, a França está como sabemos, mas sem que se veja uma qualquer utopia no horizonte.
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Hipocrisia ou a beleza de alimentar fascistas (*)

 


«É impossível evitar o nascimento de populistas. São tão antigos como as sociedades políticas. Em todas as comunidades há sempre um stock suficiente de oportunistas amorais prontos a defender tudo e o seu contrário. Em todas as sociedades há sempre candidatos a governantes, sem quaisquer escrúpulos, disponíveis para explorar o medo, o ressentimento, a frustração. Em todas as sociedades há sempre quem acredite que a luta política se pode e deve fazer sem regras, sem urbanidade, sem decoro e sobretudo dispensando, de forma ignara, pensamento ou ideias.

Como os últimos tempos têm provado, é também muito difícil encontrar uma fórmula eficaz para lidar com populistas. Não há, infelizmente, receitas perfeitas. Ignorá-los não é uma opção realista. Da mesma maneira que o presidente da Assembleia da República não podia fingir não ver a deplorável figura que a bancada do Chega entendeu fazer na receção a Lula da Silva, é evidentemente pouco sério sugerir que caberia à comunicação social higienizar a cobertura dos incidentes. O problema é que, não sendo o simples assobiar para o lado uma opção realista, a estratégia da confrontação permanente ou de tratamento condescendente e paternalista (de que também muito gosta o presidente da Assembleia da República) não parece ser mais eficaz. Não há nada de que um populista mais goste do que um bom confronto (se possível, em registo histriónico) ou de uma oportunidade para vitimização. George Bernard Shaw já tinha, aliás, chegado a essa conclusão quando, lapidar, declarou: “Nunca lutes com um porco; ficas todo sujo e ainda por cima o porco gosta.”

Mas se é impossível evitar o aparecimento de populistas, se é muito difícil lidar com populistas, é relativamente simples cortar-lhes a ração.

Ora, de que se alimenta um populista? Convenhamos que é possível, com razoável facilidade, enumerar alguns ingredientes principais. O primeiro, e porventura o mais importante para a sua dieta, é um país sem esperança. Um cidadão sem real possibilidade para singrar e subir na vida, amputado de futuro para si próprio e, mais angustiante, para os seus descendentes, e, portanto, com muito pouco a perder, está obviamente mais disponível para embarcar num aventureirismo sem rumo nem destino do que um eleitor de uma sociedade capaz de gerar crescimento e oportunidades. Infelizmente, somos hoje, com o nosso crescimento anémico, com a dívida que hipoteca o futuro dos nossos filhos, com os nossos bloqueios institucionais e económicos, com a decadência acelerada do nosso Estado, com uma parte crescente dos nossos compatriotas obrigados a sobreviver de apoios sociais, um prado fértil de desesperança. E é de desesperança que, antes de qualquer outra coisa, se alimentam populistas.

O segundo ingrediente é a degradação do exercício do poder. Os populistas, sempre disponíveis para vincar o fosso entre o “nós” e o “eles”, implacáveis e particularmente eficazes quando se trata de disparar contra as “elites”, ganham evidentemente vigor e pujança quando estas lhes servem, de mão beijada, motivos eloquentes para que defendam a ideia de que estão todas, completa e irremediavelmente, corrompidas. Ora, o cortejo de profundas indignidades no exercício do poder a que temos assistido em Portugal desde que tomou posse o novo Governo de maioria absoluta é, também ele, evidentemente, um pasto irresistível para populistas.

Falta falar do ingrediente mais pérfido: a deliberada instrumentalização dos populistas para, da sua existência e ação, tirar dividendos na luta política. Como já aqui escrevi, como ficou claro nas últimas eleições legislativas, como desde então se tem tornado progressivamente evidente, como já não se dá ao trabalho de esconder, o PS sabe exatamente o que faz e que objetivos prossegue ao comprar toda e qualquer disputa, ao rasgar as vestes a propósito de todo e qualquer incidente, ao usar e abusar de um paternalismo militante e de uma retórica beligerante, em suma, ao amplificar, deliberadamente, a voz dos mesmíssimos populistas que diz querer combater. A tudo isto se chama hipocrisia. E de tudo isto, mais uma vez, se alimenta com prazer e crescente proveito o nosso populismo caseiro.

Todos, na esquerda e na direita democráticas, serão poucos para travar este combate existencial para as nossas democracias. Se queremos ganhá-lo, está na altura de travá-lo com um mínimo de inteligência e de honestidade intelectual.

(*) Na sua obra Autos-de-fé, a Arte de Destruir Livros, o filósofo e escritor francês Michel Onfray distingue, com ironia, o fascismo histórico do fascismo histérico. Utilizo aqui o termo nesta sua segunda aceção

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1.5.23

Portas

 


Porta da Casa Ferrán, Teruel, Espanha, 1910.
Arquitecto: Pau Monguió.


Daqui.
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Lisboa, 1911

 


Operários da panificação, em greve, pelo descanso semanal.

Fotografia de Joshua Benoliel.
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01.05.1973 - Uma «despedida» do 1º de Maio em ditadura



Às 2:50 minutos do 1º de Maio de 1973, as Brigadas Revolucionárias executaram uma das suas acções mais espectaculares, da qual resultou a destruição de dois andares do Ministério das Corporações (actual Ministério do Trabalho e da Segurança Social), na Praça de Londres em Lisboa.

Explicaram mais tarde em comunicado (que pode ser lido AQUI, na íntegra): «O Ministério das Corporações é, por um lado, o instrumento mais directo dos patrões portugueses e estrangeiros, que através dele fixam as condições de trabalho do proletariado – salários, horários – enfim, exploração e repressão (…); e, por outro, um instrumento de exploração directa dos trabalhadores, através da Previdência (…) que fornece serviços de Saúde e Previdência miseráveis.»

Durante a tarde, foram recebidos telefonemas com falsos alertas de bomba em várias grandes empresas de Lisboa. Veio a saber-se depois que se tratara também de uma iniciativa ligada às Brigadas Revolucionárias, cujo objectivo era «libertar» mais cedo os trabalhadores para que pudessem participar na manifestação.

Facto demasiado grave e espectacular para que a censura o silenciasse, foi noticiado nos meios de comunicação social e objecto de todas as conversas, num dia em que se preparavam manifestações proibidíssimas, precedidas por largas dezenas de detenções, como a CNSPP (Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos), de 09.05.1973 veio a relatar:

«Tem-se verificado, nas últimas semanas, um acentuado agravamento da repressão política no nosso país: com o pretexto de impedir quaisquer manifestações públicas por ocasião do 1.º de Maio, procedeu a Direcção-Geral de Segurança à prisão indiscriminada de um elevado número de pessoas, em várias localidades e pertencendo aos mais diversos sectores de actividade profissional. Só durante o período que decorreu de 7 de Abril a 7 de Maio tem a CNSPP conhecimento de terem sido presas 91 pessoas, cujos elementos de identificação se possuem já. Sabe-se, no entanto, que muitas outras dezenas de pessoas foram detidas (...)
As forças policiais desencadearam, nos primeiros dias deste mês, uma desusada onda de violência. No 1.° de Maio, as zonas centrais da cidade de Lisboa e Porto foram teatro de grandes concentrações por parte das forças das diversas corporações policias e parapoliciais (com agentes fardados e à paisana). No Rossio e em toda a área circundante essa presença não se limitou ao papel de intimidação ou de repressão, mas adquiriu características de verdadeira agressão: espancamentos brutais e indiscriminados, grande número de feridos, dezenas de prisões. Dessa agressão, foram vítimas muitos trabalhadores, assim como estudantes e outras pessoas que se limitavam a passar pelo local».
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Isto

 


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Pelo dia em que se festeje o fim do Dia do Trabalhador!

 


«O primeiro dia de Maio é, praticamente desde o 25 de Abril de 1974, em Portugal, uma data de festa e um dia marcado pela “luta dos trabalhadores”, através do exercício da manifestação, associação e reunião.

Este dia teve origem nas lutas operárias norte-americanas, nomeadamente, na cidade extremamente industrial de Chicago em 1886, onde se iniciou um movimento contínuo de reconhecimento de direitos laborais e onde se reconheceu a importância de um sistema universal de educação básica.

Uma das mais notórias conquistas deste movimento foi a redução da jornada de trabalho. A conquista das oito horas diárias como regra adveio deste movimento. Onde existia uma exploração superior, talvez, a metade do dia, como dia de trabalho.

Claramente que esta conquista é hoje, praticamente, transversal. Mas, no sector primário, essa conquista veio depois — e mais pela sofisticação de processos do que, propriamente, pela conquista operária.

Em Portugal, transitaram desde 1974 até 2022, de 35% para 3% dos trabalhadores no sector primário, 34% para 25% no sector secundário e de 31% para 71% no sector terciário. Isto significa que, de uma força de trabalho equilibrada entre sectores, adveio uma terciarização decorrente de vários factores, destacando a globalização e europeização e o desenvolvimento tecnológico.

Com os últimos tempos marcados quer pela crescente desafectação ao actual modelo socioeconómico ocidental, quer pelo reaparecimento de movimentos de extrema-direita, movimentos sociais e profissionais em manifestação e greve, quer em Portugal como na Europa (ex: França) e, simultaneamente, marcados pela maravilha tecnológica das vacinas RNA, das fabricas robotizadas e da Inteligência Artificial (IA), como o Chat GPT 4, será de rever a lição que nos ensinaram os corajosos grevistas e manifestantes de Chicago.

Ora, esta sociedade que trabalha cerca de oito horas por dia, cinco dias por semana, maioritariamente no sector dos serviços, está extremamente insatisfeita. O que chocaria qualquer um dos presentes no primeiro 1.º de Maio.

Mas ainda bem que o está! Estas insatisfações, tal como o eram as do final do século XIX, são resultado de vermos que é possível termos mais e melhor. A desumanidade da procura do lucro fez com que a exploração humana do período industrial resultasse no início da ponderação do trabalhador como essência da sociedade moderna. Ora, já passou mais do que tempo para passar ao próximo avanço.

Existem já ideias, consideradas utópicas, algumas compiladas num livro chamado até Utopia para Realistas, que parecem vir para fazer, por este momento, o que o movimento operário do 1.º de Maio veio fazer na sua altura.

Este livro, e outros, concordam que este status social não nos serve e que podemos utilizar da nossa tecnologia, como a robótica e, principalmente, a IA para conseguir algo mais compatível com a nossa existência, arguindo em muitos casos que é a única alternativa sustentável pois o crescimento infinito económico num planeta finito é (ou só pode ser) catastrófico.

As ideias como a semana de quatro dias de trabalho e um rendimento básico incondicional já têm muito estudo e evidências de serem possíveis soluções para libertar as pessoas. Deixamos de associar quem somos ao nosso emprego, passando a poder ser indivíduos que vivem, complementando a sua existência básica com um rendimento do trabalho que nos destaca economicamente pelo esforço realmente útil à sociedade.

Por outro lado, enquanto não largarmos a bitola do pleno emprego não poderemos impulsionar a robótica e IA porque leva ao aumento do desemprego e, consequentemente, à pobreza de grandes camadas sociais.

Assim, há que ansiar pelo dia em que rendidos pelas evidências e sobre a nossa tacanha forma de não aceitar nada contra intuitivo, como a ideia de que podemos produzir o mesmo em quatro dias que produzimos em cinco, ou que se dermos todos um rendimento para sobreviver, ainda assim, vamos ter mais gente a ser produtiva do que a não o fazer, e resultados económicos, relativa e absolutamente, melhores. Eliminando, directamente, a pobreza.

Há que sonhar. Sonhar pelo dia em que se festeje o fim do Dia do Trabalhador.»

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Em 74 foi assim

 

No dia em que o futuro não tinha impossíveis.
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30.4.23

Janelas

 


Janela com vitrais, Museu Mazoviano em Plock, Polónia, 1821, restaurado no início do séc. XX.

[Mais informação sobre este museu aqui.]

Daqui.
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Andam todos nervosos, é o que é

 


«Recuando às últimas cerimónias do 25 de Abril, é possível comprovar que a câmara que captou o vídeo polémico de Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva e António Costa na sala das visitas do Parlamento está lá todos os anos. E com som. A diferença é que as conversas costumam ser mais mundanas e menos politizadas. O presidente da Assembleia da República disse ser ilegal e abriu uma investigação a uma gravação que os documentos oficiais mostram que estava autorizada pelos próprios serviços e que acontece todos os anos.

As declarações de Santos Silva, sabe o Observador, irritaram profundamente os serviços da Assembleia da República, com os funcionários ouvidos pelo Observador a considerarem “altamente injusta” a posição do presidente da AR, que “sabia perfeitamente” que “a câmara estava ali e captava som”.»

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30.04.1975 – O dia em que terminou a Guerra do Vietname

 


No dia 30 de Abril de 1975, a rendição de Saigão (actual Ho Chi Minh) pôs fim à Guerra do Vietname que durou quase duas décadas e se saldou, como se sabe, por uma estrondosa derrota dos norte-americanos.

Ver, neste post do ano passado, mais informação e dois vídeos, um sobre o War Remnants Museum, outro sobre os túneis de Cu Chi, que tive ocasião de visitar há alguns anos.
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Raízes

 


«Ontem à noite, enquanto navegava pela Internet, encontrei a história de um homem que, durante anos, plantou uma árvore por mês no seu quintal. A parte estranha é que, depois do momento da plantação, nunca mais as regou. Não é como se não interagisse com elas porque, na verdade, para além de lhes ler poesia diariamente, mais ou menos de duas em duas semanas, quando o tronco começava a ficar suficientemente forte, batia-lhes com força com um jornal.

Aquela atitude, estranha e pouco coerente com o feitio do homem, fazia com que os vizinhos sussurrassem entre si e elaborassem as mais variadas teorias. Até que, um dia, um dos vizinhos mais jovens, incapaz de continuar a conter a curiosidade, interpelou o homem e perguntou-lhe por que razão se dava ao trabalho de plantar árvores se depois não as regava e elas acabavam por crescer de forma muito mais lenta do que o esperado. A resposta foi surpreendente: “Se eu regar as minhas árvores, elas vão habituar-se a ter sempre água disponível à superfície e as suas raízes serão fracas, mas se eu não as regar, as raízes serão forçadas a procurar água em níveis mais profundos do solo e ficarão mais fortes e mais bem implantadas.” Já sobre a poesia e as pancadas com o jornal, a justificação foi que era importante alimentar as árvores com beleza, mas era igualmente importante dar-lhes uns abalos de realidade, de vez em quando, para as tornar mais resilientes.

A história, que tinha mais umas quantas mensagens pelo meio, acabava no dia em que o vizinho, quase meio século depois desta conversa, voltava ao local e encontrava, no antigo quintal do homem, uma espécie de floresta de árvores de tronco forte e copa frondosa com ar de conseguirem resistir a todos os temporais.

Não costumo gostar particularmente de histórias deste género, mas não consegui resistir a esta por falar de um assunto que me diz tanto. Não sei se em termos de botânica (ou será dendrologia?) esta história faz grande sentido. Mas sei que nada nesta vida nos mantém tão seguros como a profundidade das nossas raízes. E o meu coração aperta sempre que vejo alguém negá-las.

Há uns anos, seguramente mais de dez, uma colega confessou-me que a mãe, que todos pensávamos ser professora, era, na verdade, auxiliar numa escola primária. Tal como a minha, por acaso. E quando lhe perguntei por que raio tinha decidido criar uma história fictícia à volta da profissão da mãe, explicou-me que tinha vergonha da pobreza em que a sua família sempre vivera. Naquela altura tive vontade de a abanar e de lhe explicar o óbvio: tirando uma pequena percentagem de famílias muito privilegiadas, a maioria de nós vem da miséria e do campo.

As histórias de um Portugal pobre onde uma sardinha era dividida por dois e onde os caldos de couve com pão eram tudo o que existia para aconchegar o estômago são transversais aos antepassados de uma grande parte da sociedade portuguesa. Avós e bisavós, sem dentes e sem casa de banho em casa, que caminhavam para a escola descalços com uma lata com brasas na mão para suportarem o frio da madrugada. Avós que nunca sequer tiveram a sorte de poder sentar-se num banco escolar. Avós que aos sete anos já trabalhavam de sol a sol na agricultura ou que, se meninas, eram enviadas para a casa de famílias ricas onde se tornavam “criadas de servir”. Avós e bisavós da esmagadora maioria dos portugueses.

Nós somos os netos do analfabetismo, da exploração infantil, do lume de chão e da fome. Somos os netos dos banhos tomados em alguidares e dos bacios debaixo das camas. Somos netos do trabalho duro, das casas minúsculas e dos quatro irmãos na mesma cama. E foram esses avós que nos fizeram fortes.

Desprovidos de liberdade, no escuro, com a censura a decidir o que podiam e não podiam ouvir. Lutaram para que os filhos pudessem caminhar ainda que não soubessem qual o destino. Viram acontecer Abril e foram avós dos filhos da madrugada. Pobres e analfabetos, eles de pele curtida pelo sol e elas de lenço na cabeça. Vestidos de preto porque o luto era longo e integral. Marcados pela fome que, já dizia o meu avô, é muito diferente da vontade de comer que hoje conhecemos. Foram as raízes que buscaram a água nos níveis mais profundos do solo. São as raízes que seguram a floresta que somos.

Contou-me uma vizinha que no dia em que o meu pai voltou de Moçambique, depois de mais de trinta meses na Guerra Colonial, a minha avó paterna correu do tanque público do chafariz até casa para ver o seu menino, o filho mais novo, de quem há meses nada sabia. Deixou a roupa, largou tudo, e simplesmente correu como se a idade não lhe pesasse e como se os acidentes isquémicos transitórios não se fossem já sucedendo com uma frequência assustadora.

E a minha avó materna, que, sem conhecer uma única letra, juntou tudo o que conseguiu durante um ano e partiu de autocarro, com uma alcofa de verga em cada mão, até Lisboa, para visitar o filho mais velho que uma tuberculose pulmonar tinha empurrado para o Sanatório do Lumiar? E que quando tentava entrar para a carruagem do metro, coisa monstruosa que nunca tinha visto, empurrada pela confusão, acabou por cair de costas enquanto sentia que outros pés a pisavam sem hesitar. Sabem uma coisa? Tudo aquilo em que conseguiu pensar quando a esmagavam era que não podia largar aquelas alcofas que com tanto sacrifício tinha preparado para o filho. Ficou pisada, com a pele repleta de equimoses e cheia de dores no corpo, mas o meu tio João recebeu os queijos, o pão, o bolo, as azeitonas e as linguiças do Alentejo.

As minhas avós, que para o mundo nunca fizeram nada de extraordinário, foram mulheres extraordinárias. Transformá-las em professoras ou em enfermeiras por uma questão de estatuto seria matar-lhes metade da história e, pior do que isso, apagar uma parte importante do que sou.

Quando deixamos de saber de onde viemos, perdemos a noção de quem somos e do lugar para onde vamos. No dia em que perdemos as nossas raízes mais profundas ficamos à mercê do vento e das tempestades. No dia em que renegamos aquilo que nos sustenta tornamo-nos frágeis.

Não gosto da narrativa de que Portugal é e sempre será um país de pobres porque me parece existir nela um conformismo que me recuso a aceitar. Mas é inegável que, de alguma forma, a pobreza nos moldou o carácter. Fingir que não é verdade e que nunca aconteceu é o pior que podemos fazer pelos que nos antecederam, por nós mesmos e pelos que nos sucederão.

Os avós e bisavós de Portugal caminharam na escuridão para que hoje pudéssemos ter luz. E depois transformaram-se num bosque com árvores como as do quintal do homem da história. Cada um deles está vivo nas raízes que nos prendem profundamente à terra. Ignorar isso é ignorar um país. Ignorar isso é ignorar quem somos.»

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