«Ontem à noite, enquanto navegava pela Internet, encontrei a história de um homem que, durante anos, plantou uma árvore por mês no seu quintal. A parte estranha é que, depois do momento da plantação, nunca mais as regou. Não é como se não interagisse com elas porque, na verdade, para além de lhes ler poesia diariamente, mais ou menos de duas em duas semanas, quando o tronco começava a ficar suficientemente forte, batia-lhes com força com um jornal.
Aquela atitude, estranha e pouco coerente com o feitio do homem, fazia com que os vizinhos sussurrassem entre si e elaborassem as mais variadas teorias. Até que, um dia, um dos vizinhos mais jovens, incapaz de continuar a conter a curiosidade, interpelou o homem e perguntou-lhe por que razão se dava ao trabalho de plantar árvores se depois não as regava e elas acabavam por crescer de forma muito mais lenta do que o esperado. A resposta foi surpreendente: “Se eu regar as minhas árvores, elas vão habituar-se a ter sempre água disponível à superfície e as suas raízes serão fracas, mas se eu não as regar, as raízes serão forçadas a procurar água em níveis mais profundos do solo e ficarão mais fortes e mais bem implantadas.” Já sobre a poesia e as pancadas com o jornal, a justificação foi que era importante alimentar as árvores com beleza, mas era igualmente importante dar-lhes uns abalos de realidade, de vez em quando, para as tornar mais resilientes.
A história, que tinha mais umas quantas mensagens pelo meio, acabava no dia em que o vizinho, quase meio século depois desta conversa, voltava ao local e encontrava, no antigo quintal do homem, uma espécie de floresta de árvores de tronco forte e copa frondosa com ar de conseguirem resistir a todos os temporais.
Não costumo gostar particularmente de histórias deste género, mas não consegui resistir a esta por falar de um assunto que me diz tanto. Não sei se em termos de botânica (ou será dendrologia?) esta história faz grande sentido. Mas sei que nada nesta vida nos mantém tão seguros como a profundidade das nossas raízes. E o meu coração aperta sempre que vejo alguém negá-las.
Há uns anos, seguramente mais de dez, uma colega confessou-me que a mãe, que todos pensávamos ser professora, era, na verdade, auxiliar numa escola primária. Tal como a minha, por acaso. E quando lhe perguntei por que raio tinha decidido criar uma história fictícia à volta da profissão da mãe, explicou-me que tinha vergonha da pobreza em que a sua família sempre vivera. Naquela altura tive vontade de a abanar e de lhe explicar o óbvio: tirando uma pequena percentagem de famílias muito privilegiadas, a maioria de nós vem da miséria e do campo.
As histórias de um Portugal pobre onde uma sardinha era dividida por dois e onde os caldos de couve com pão eram tudo o que existia para aconchegar o estômago são transversais aos antepassados de uma grande parte da sociedade portuguesa. Avós e bisavós, sem dentes e sem casa de banho em casa, que caminhavam para a escola descalços com uma lata com brasas na mão para suportarem o frio da madrugada. Avós que nunca sequer tiveram a sorte de poder sentar-se num banco escolar. Avós que aos sete anos já trabalhavam de sol a sol na agricultura ou que, se meninas, eram enviadas para a casa de famílias ricas onde se tornavam “criadas de servir”. Avós e bisavós da esmagadora maioria dos portugueses.
Nós somos os netos do analfabetismo, da exploração infantil, do lume de chão e da fome. Somos os netos dos banhos tomados em alguidares e dos bacios debaixo das camas. Somos netos do trabalho duro, das casas minúsculas e dos quatro irmãos na mesma cama. E foram esses avós que nos fizeram fortes.
Desprovidos de liberdade, no escuro, com a censura a decidir o que podiam e não podiam ouvir. Lutaram para que os filhos pudessem caminhar ainda que não soubessem qual o destino. Viram acontecer Abril e foram avós dos filhos da madrugada. Pobres e analfabetos, eles de pele curtida pelo sol e elas de lenço na cabeça. Vestidos de preto porque o luto era longo e integral. Marcados pela fome que, já dizia o meu avô, é muito diferente da vontade de comer que hoje conhecemos. Foram as raízes que buscaram a água nos níveis mais profundos do solo. São as raízes que seguram a floresta que somos.
Contou-me uma vizinha que no dia em que o meu pai voltou de Moçambique, depois de mais de trinta meses na Guerra Colonial, a minha avó paterna correu do tanque público do chafariz até casa para ver o seu menino, o filho mais novo, de quem há meses nada sabia. Deixou a roupa, largou tudo, e simplesmente correu como se a idade não lhe pesasse e como se os acidentes isquémicos transitórios não se fossem já sucedendo com uma frequência assustadora.
E a minha avó materna, que, sem conhecer uma única letra, juntou tudo o que conseguiu durante um ano e partiu de autocarro, com uma alcofa de verga em cada mão, até Lisboa, para visitar o filho mais velho que uma tuberculose pulmonar tinha empurrado para o Sanatório do Lumiar? E que quando tentava entrar para a carruagem do metro, coisa monstruosa que nunca tinha visto, empurrada pela confusão, acabou por cair de costas enquanto sentia que outros pés a pisavam sem hesitar. Sabem uma coisa? Tudo aquilo em que conseguiu pensar quando a esmagavam era que não podia largar aquelas alcofas que com tanto sacrifício tinha preparado para o filho. Ficou pisada, com a pele repleta de equimoses e cheia de dores no corpo, mas o meu tio João recebeu os queijos, o pão, o bolo, as azeitonas e as linguiças do Alentejo.
As minhas avós, que para o mundo nunca fizeram nada de extraordinário, foram mulheres extraordinárias. Transformá-las em professoras ou em enfermeiras por uma questão de estatuto seria matar-lhes metade da história e, pior do que isso, apagar uma parte importante do que sou.
Quando deixamos de saber de onde viemos, perdemos a noção de quem somos e do lugar para onde vamos. No dia em que perdemos as nossas raízes mais profundas ficamos à mercê do vento e das tempestades. No dia em que renegamos aquilo que nos sustenta tornamo-nos frágeis.
Não gosto da narrativa de que Portugal é e sempre será um país de pobres porque me parece existir nela um conformismo que me recuso a aceitar. Mas é inegável que, de alguma forma, a pobreza nos moldou o carácter. Fingir que não é verdade e que nunca aconteceu é o pior que podemos fazer pelos que nos antecederam, por nós mesmos e pelos que nos sucederão.
Os avós e bisavós de Portugal caminharam na escuridão para que hoje pudéssemos ter luz. E depois transformaram-se num bosque com árvores como as do quintal do homem da história. Cada um deles está vivo nas raízes que nos prendem profundamente à terra. Ignorar isso é ignorar um país. Ignorar isso é ignorar quem somos.»
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