«É impossível evitar o nascimento de populistas. São tão antigos como as sociedades políticas. Em todas as comunidades há sempre um stock suficiente de oportunistas amorais prontos a defender tudo e o seu contrário. Em todas as sociedades há sempre candidatos a governantes, sem quaisquer escrúpulos, disponíveis para explorar o medo, o ressentimento, a frustração. Em todas as sociedades há sempre quem acredite que a luta política se pode e deve fazer sem regras, sem urbanidade, sem decoro e sobretudo dispensando, de forma ignara, pensamento ou ideias.
Como os últimos tempos têm provado, é também muito difícil encontrar uma fórmula eficaz para lidar com populistas. Não há, infelizmente, receitas perfeitas. Ignorá-los não é uma opção realista. Da mesma maneira que o presidente da Assembleia da República não podia fingir não ver a deplorável figura que a bancada do Chega entendeu fazer na receção a Lula da Silva, é evidentemente pouco sério sugerir que caberia à comunicação social higienizar a cobertura dos incidentes. O problema é que, não sendo o simples assobiar para o lado uma opção realista, a estratégia da confrontação permanente ou de tratamento condescendente e paternalista (de que também muito gosta o presidente da Assembleia da República) não parece ser mais eficaz. Não há nada de que um populista mais goste do que um bom confronto (se possível, em registo histriónico) ou de uma oportunidade para vitimização. George Bernard Shaw já tinha, aliás, chegado a essa conclusão quando, lapidar, declarou: “Nunca lutes com um porco; ficas todo sujo e ainda por cima o porco gosta.”
Mas se é impossível evitar o aparecimento de populistas, se é muito difícil lidar com populistas, é relativamente simples cortar-lhes a ração.
Ora, de que se alimenta um populista? Convenhamos que é possível, com razoável facilidade, enumerar alguns ingredientes principais. O primeiro, e porventura o mais importante para a sua dieta, é um país sem esperança. Um cidadão sem real possibilidade para singrar e subir na vida, amputado de futuro para si próprio e, mais angustiante, para os seus descendentes, e, portanto, com muito pouco a perder, está obviamente mais disponível para embarcar num aventureirismo sem rumo nem destino do que um eleitor de uma sociedade capaz de gerar crescimento e oportunidades. Infelizmente, somos hoje, com o nosso crescimento anémico, com a dívida que hipoteca o futuro dos nossos filhos, com os nossos bloqueios institucionais e económicos, com a decadência acelerada do nosso Estado, com uma parte crescente dos nossos compatriotas obrigados a sobreviver de apoios sociais, um prado fértil de desesperança. E é de desesperança que, antes de qualquer outra coisa, se alimentam populistas.
O segundo ingrediente é a degradação do exercício do poder. Os populistas, sempre disponíveis para vincar o fosso entre o “nós” e o “eles”, implacáveis e particularmente eficazes quando se trata de disparar contra as “elites”, ganham evidentemente vigor e pujança quando estas lhes servem, de mão beijada, motivos eloquentes para que defendam a ideia de que estão todas, completa e irremediavelmente, corrompidas. Ora, o cortejo de profundas indignidades no exercício do poder a que temos assistido em Portugal desde que tomou posse o novo Governo de maioria absoluta é, também ele, evidentemente, um pasto irresistível para populistas.
Falta falar do ingrediente mais pérfido: a deliberada instrumentalização dos populistas para, da sua existência e ação, tirar dividendos na luta política. Como já aqui escrevi, como ficou claro nas últimas eleições legislativas, como desde então se tem tornado progressivamente evidente, como já não se dá ao trabalho de esconder, o PS sabe exatamente o que faz e que objetivos prossegue ao comprar toda e qualquer disputa, ao rasgar as vestes a propósito de todo e qualquer incidente, ao usar e abusar de um paternalismo militante e de uma retórica beligerante, em suma, ao amplificar, deliberadamente, a voz dos mesmíssimos populistas que diz querer combater. A tudo isto se chama hipocrisia. E de tudo isto, mais uma vez, se alimenta com prazer e crescente proveito o nosso populismo caseiro.
Todos, na esquerda e na direita democráticas, serão poucos para travar este combate existencial para as nossas democracias. Se queremos ganhá-lo, está na altura de travá-lo com um mínimo de inteligência e de honestidade intelectual.
(*) Na sua obra Autos-de-fé, a Arte de Destruir Livros, o filósofo e escritor francês Michel Onfray distingue, com ironia, o fascismo histórico do fascismo histérico. Utilizo aqui o termo nesta sua segunda aceção.»
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