«Em 2016, nos Estados Unidos, quase ninguém acreditava que Donald Trump venceria as eleições presidenciais de Novembro. Hillary Clinton partira como a grande favorita. As sondagens apontavam nesse sentido.
O candidato republicano, que eliminara nas "primárias" todas as velhas e novas glórias do partido, não tinha nem curriculum nem preparação política, estava a milhas do establishement, era bastante grosseiro, tinha um discurso errático e desbocado. Hillary era exactamente o oposto: bem preparada, reconhecida, com uma longa história política, senadora pelo estado de Nova Iorque, mulher de um dos Presidentes mais amados do século XX. Uma digna sucessora de Barack Obama. Sabemos o que se passou. Hillary até obteve mais três milhões de votos do que Trump, mas o colégio eleitoral ditou outra coisa. O impensável aconteceu. Tivemos quatro anos de Trump, o tempo suficiente para agitar as águas internacionais, quase sempre no mau sentido.
As sondagens não captam o "voto envergonhado"
Perguntará, caro leitor, cara leitora, a que propósito vêm estas reminiscências. Talvez já tenha intuído que são provocadas por aquilo que aconteceu, no domingo, no Brasil. Todas as sondagens davam a Lula da Silva uma vantagem, no mínimo, de dez pontos sobre Jair Bolsonaro. Algumas alimentaram a possibilidade de Lula ganhar logo à primeira volta. Ao contrário dos Estados Unidos, há uma segunda volta, no caso de nenhum dos candidatos obter mais de 50% dos votos na primeira. No domingo à noite, tal como nos Estados Unidos, as sondagens revelaram-se erradas. Não tanto em relação ao ex-Presidente, que ficou dentro das previsões, mas em relação ao actual, que obteve quase mais 10% do que as sondagens previam.
Já nos habituámos aos erros nas sondagens também em algumas eleições europeias, embora não numa dimensão tão ampla. Porque erraram? Porque nos EUA, como no Brasil, há um voto a que alguns analistas chamam "envergonhado", que não confessa a sua intenção de voto quando inquirido pelas empresas de sondagens. Não há outra explicação para o que aconteceu no Brasil ou nos Estados Unidos há seis anos. O que quer dizer que há fenómenos sociológicos novos nas nossas sociedades que nem os políticos nem os analistas conseguem captar. E que explicam a ascensão acelerada de uma direita radical ou extrema, populista e nacionalista, que consegue aproveitar um sentimento de cansaço dos eleitores relativamente aos partidos centristas. É um sentimento que os académicos e analistas começam a designar por "ressentimento" e que exprime a revolta de largas camadas da população perante o abandono a que se sentem votadas por uma elite que não leva em conta os seus problemas.
Nas democracias desenvolvidas, aquele sentimento até pode não ter a ver directamente com os baixos rendimentos. Terá mais a ver, muitas vezes, com a perda de estatuto social de sectores como os operários industriais, vítimas da deslocalização industrial das décadas passadas. Em momentos de crise como o que vivemos, esses sentimentos são ainda mais exacerbados. Entretanto, três décadas de neoliberalismo e uma crise financeira aumentaram as desigualdades até nas sociedades mais igualitárias.
Estamos a ver isso na Europa, com as eleições recentes em Itália e na Suécia. Já vimos em França e em vários países da Europa Central e de Leste.
O choque da desigualdade
O Brasil não é um país desenvolvido, embora seja a 10.ª economia mundial, graças à sua extensão e a alguns sectores maia avançados, como o agro-alimentar. É, em contrapartida, um país em que a desigualdade social é chocante – uma das maiores do mundo.
No Rio de Janeiro, cidade que conheço bem, os bairros mais ricos da zona sul vivem paredes meias com as favelas mais pobres. Passear pelas ruas do Leblon, entre prédios e moradias luxuosos que não vemos com frequência na Europa, releva-nos até que ponto a classe média-alta brasileira vive muito melhor do que as próprias classes médias europeias. É chocante, mas continua a ser assim, apesar do progresso extraordinário que aconteceu nos dois mandatos de Lula, entre Janeiro de 2003 e Janeiro de 2011, que conseguiram retirar da pobreza extrema mais de 30 milhões de brasileiros. Não foi um milagre. Foi o resultado dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que permitiram a Lula fazer o que fez. Nessa altura, governou com moderação, tranquilizando os mercados e fazendo do Brasil uma esperança para o mundo inteiro.
Ainda temos presente o que aconteceu a seguir. A eleição e Dilma, com uma visão política mais radical e mais ideológica do que Lula, e o impeachement. O impacte da crise financeira. Os gigantescos escândalos de corrupção que envolveram alguns dos ministros e conselheiros próximos do anterior Presidente. O próprio Lula foi acusado e condenado, esteve preso e, depois, foi libertado por decisão do Supremo Tribunal. Não se pôde candidatar nas presidenciais de 2018. Bolsonaro ganhou, com muitos votos vindos das classes mais pobres das grandes cidades. Lula transformou-se numa decepção.
O "Trump dos trópicos"
Há quem chame a Bolsonaro o "Trump dos trópicos". A expressão é adequada. Trump veio do entertainment, Bolsonaro era capitão do exército com um curriculum medíocre. Ambos se apresentaram contra o establishment, com um discurso populista contra as elites. Ambos negam as alterações climáticas, vendo-as como um entrave ao desenvolvimento económico. Trump abandonou os Acordos de Paris sobre o clima. Bolsonaro ignora a importância da floresta da Amazónia enquanto pulmão do planeta. Ambos são proteccionistas e não conseguem ter uma visão da economia global. Os dois recorrem a uma linguagem chocante e grosseira. Ambos são conservadores nos costumes – contra o aborto, contra as mulheres, contra os homossexuais. Os dois têm uma forte implantação entre as igrejas evangélicas, que, no Brasil, ganham terreno em relação à até agora muito poderosa Igreja Católica. Ambos admiram os líderes autoritários, como ficou provado pelo seu apoio mais ou menos directo a Vladimir Putin. Ambos contornaram a animosidade dos media tradicionais com uma extensa expressão nas redes sociais.
Para uma mente normal, parecem representar um retrocesso civilizacional. E, no entanto, têm uma imensa base de apoiantes ou, pelo menos, de votantes. A questão é, precisamente, como conseguem atrair tantos votos.
Finalmente, ambos não são fenómenos passageiros. Vieram para ficar.
Uma ameaça para a democracia
Ouvi muitos analistas brasileiros afiançarem que Bolsonaro não constitui uma ameaça à democracia brasileira, que é suficientemente sólida para lhe resistir. Argumentam com a Constituição de 1998, que já deu provas, com a independência dos tribunais e dos media, que são poderosos, com uma sociedade dinâmica.
Nos Estados Unidos, cujas instituições são ainda mais sólidas, não faltam hoje vozes a alertar para que Trump é uma ameaça à democracia. Antes do assalto ao Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021, era impensável o recurso à violência política para impedir a transição de poderes entre dois presidentes. Hoje, passou a ser um dado a considerar, já nas próximas eleições de meio-mandato, em Novembro. Há candidatos republicanos ao Congresso que têm o apoio de Trump e que dizem sem qualquer pudor que podem não aceitar os resultados.
Finalmente, Trump está envolvido em numerosos processos judiciais, acusado de crimes que vão da sonegação de documentos confidenciais e secretos a que teve acesso na Casa Branca e que não entregou aos Arquivos Nacionais, até fraudes no IRS e outras ilegalidades financeiras. E, no entanto, há 35% de eleitores americanos que não hesitam em votar nele, se vier a ser de novo candidato. Podem ser mais, se levarmos em conta o "voto escondido" ou "envergonhado". Não é exagero dizer que o seu regresso ao poder, ou de alguém como ele, ameaça a democracia americana.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Brasil, por maioria de razões.
O dever de Lula
Parece-me pouco provável que Bolsonaro possa vencer as eleições, na segunda volta, a 30 de Outubro. Muita coisa vai depender da campanha. Lula da Silva tem de falar para o centro, se quer captar os votos que lhe faltam e que estão aí. Terá de afastar-se dos sectores mais radicais do PT, hoje aparentemente dominantes, e de apresentar uma equipa económica que tranquilize as classes médias. Continua a ter um enorme carisma. Sabe falar com as pessoas. E tem uma vontade imensa de "ressuscitar" aos olhos do povo, para tentar "limpar" os tempos conturbados por que passou.
Tudo isto, caros leitores, para dizer que, seja qual for a avaliação que façamos de Lula, a sua eleição é fundamental para a defesa da democracia brasileira.
O que parece haver também de comum e de perigoso entre a democracia brasileira e as democracias desenvolvidas é o esvaziamento do centro político, sobretudo à direita. O PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, quase desapareceu nas eleições para a Câmara e o Senado. O Partido Liberal de Bolsonaro obteve o maior grupo parlamentar; o PT, o segundo.
A eleição improvável de Bolsonaro será negativa para o mundo e para a América Latina, mas não é uma catástrofe. É lamentável que ambos os candidatos tenham uma posição ambígua sobre a guerra de Putin na Ucrânia. O Brasil absteve-se no Conselho de Segurança na votação da resolução que condenava a anexação ilegal de território ucraniano pela Rússia.
É esta a grande diferença em relação aos Estados Unidos, onde a eleição de Trump seria uma tremenda catástrofe para a ordem internacional.»
Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 04.10.2022