«As tiranias começam muitas vezes a arder em pequenos focos que se transformam em incontroláveis incêndios. A morte da jovem Mahsa Amini, depois de ter sido presa pela "polícia da moralidade", por usar o hijab (lenço islâmico) de forma incorrecta, talvez deixando à mostra parte do cabelo, foi o pretexto da revolta das jovens iranianas, no maior movimento desde a revolta de 2009 contra a falsificação das eleições. A média de idade destes jovens e adolescentes, que são a força de choque do protesto, é de 15 anos, dizem as autoridades. O tema é o lenço islâmico, questão muito mais "política" do que parece. A ele voltaremos.
O Irão era uma espécie de democracia teocrática, sujeita a normas religiosas, mas dispondo de mecanismos de equilíbrio. As eleições presidenciais, mesmo com candidaturas controladas, eram competitivas e permitiam aos cidadãos fazerem uma escolha, designadamente entre "conservadores" e "progressistas". Isto acabou nas eleições de 2021, quando foram excluídos não só os chamados progressistas como os conservadores históricos, caso de Ali Larijani e outros. Resta ao regime a força bruta.
Apesar da aparência de uma estabilidade autocrática, o Irão é um país de protestos, manifestações e greves. Na maioria dos casos, por razões económico-sociais, mas que frequentemente se politizam, com gritos de "morte a Khamenei". O Governo responde cada vez mais brutalmente porque pressente que os protestos põem em causa a sua legitimidade. Deixou de perceber que é a mera repressão que destrói os vestígios da antiga legitimidade. Hoje, a teocracia começa a devorar-se a si mesma.
Note-se que o estatuto da mulher na sociedade iraniana é elevado e não tem comparação com a maioria das sociedades árabes. Um exemplo: em 1978, as mulheres representavam 37% da população do ensino secundário e 29% do universitário. Em 2004, elas representavam 57% da universidade e uma taxa mais alta nos ramos científicos.
O uso do lenço islâmico tem uma longa tradição e foi sempre usado por mulheres. O que é novo é a sua obrigatoriedade, imposta pelo regime em 1983. A universalidade do hijab tornou-se no símbolo quotidiano da tutela da teocracia sobre a sociedade, neste caso, sobre as mulheres. Quando as jovens hoje queimam o lenço nas ruas e "libertam os seus cabelos" fazem um gesto político. À tragédia de Amini, seguiu-se o desaparecimento de Nina Shakarami, de 16 anos, depois de uma manifestação em que teria cantado sem o hijab. O seu cadáver foi encontrado pela família na morgue da polícia.
"Ao longo destes dias de raiva, os slogans evoluíram", escreve no Monde o editorialista Alain Frachon. "Da denúncia do lenço ‘islâmico’, passou-se à condenação do regime ‘islâmico’. Nunca um movimento de contestação tinha durado tanto tempo, desde a revolução iraniana de há 43 anos. (…) Foi das mulheres que veio a faísca. No Irão de 2022, a obrigação do lenço islâmico é mais do que nunca insuportável, é uma violência absurda e humilhante. Mas o Guia Ali Khamenei e o Presidente Ibrahim Raissi não transigem. Temem que o fim do lenço, um dos pilares de sustentação do regime, assinale o princípio do fim da República Islâmica."»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público (excerto), 06.10.2022
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