«O relatório do Comité de Prevenção da Tortura do Conselho da Europa sobre Portugal, em particular sobre o comportamento das autoridades policiais e a atuação do Governo relativamente aos fenómenos de violência policial, de que somos o pior caso na Europa Ocidental, e os abusos praticados contra os afrodescendentes e os estrangeiros, foi divulgado numa semana que fechará com umas eleições italianas no centro das quais está o avanço do racismo. Estes dois casos relançam a discussão sobre a qualidade da democracia, da nossa e daquelas às quais, com pouquíssima seriedade intelectual, se tem chamado "democracias consolidadas".
Desde o 11 de Setembro, assistimos à escala internacional a um processo de transição autoritária em que, a pretexto da segurança e da "guerra contra o terror", se abrem duas etapas: na 1.ª, excluem-se os outros (imigrantes, refugiados, minorias étnicas) do âmbito de reconhecimento da cidadania democrática, empurrados para o limbo do arbítrio do Estado e dos poderosos; numa 2.ª etapa, caminha-se inevitavelmente para a ampliação do arbítrio para as áreas de atividade social, política e cultural de todos aqueles que se oponham à nova ordem securitária, sujeitando-os a regras de controlo típicas das ditaduras mas sem nunca se prescindir da aparência de democracia.
Vamos a alguns exemplos europeus. Bem antes dos atentados de 2015, a França equipou-se em 2008 com legislação que permite prorrogar a detenção para lá da pena a pretexto da "perigosidade" do detido. Em Portugal, "medidas de segurança" desta natureza existiam sob a ditadura e eram geridas pela PIDE. Submetida a um estado de emergência desde 2015, que Macron decidiu "legalizar" transpondo para a lei comum muitas das normas excecionais previstas naquele, limitou-se a liberdade de informação e de manifestação e sucedem-se os abusos praticados pelos serviços de informações e pelas polícias, que afetam os suspeitos de terrorismo ou de "colaboração" ou "auxílio" em atos como tal designados, mas também ativistas sociais e políticos, jornalistas, cidadãos de todo o tipo. Em 2015, o Governo francês acionou o art. 15.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que permite a um Estado aderente cessar a aplicação da convenção "em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da nação", juntando-se a um grupo de bons exemplos, como a Albânia, a Geórgia, o Reino Unido, a Ucrânia ou a Turquia de Erdogan (a qual, aliás, só o fez sete meses depois da França).
É ao abrigo deste estado de emergência tornado regra, desta normalização da exceção, que temos vindo a assistir em algumas das chamadas democracias "consolidadas" à criminalização da opinião, do humor e de manifestações artísticas. Exatamente como em qualquer ditadura. A Espanha é das recordistas de abusos neste campo — para já não falar da prisão dos independentistas catalães. O último dos exemplos é o do rapper espanhol Valtònyc, detido em 2012 pelos crimes de "apologia do terrorismo e do ódio ideológico", "incitação à violência" e "injúrias" ao rei de Espanha deduzidos das letras das suas músicas. Em 2017 foi condenado a 3,5 anos de cadeia, que, depois de recurso, acabam de ser confirmados há uma semana pelo Tribunal Supremo. Que no meio disto Rajoy tenha marchado nas ruas de Paris sob o lema de Je suis Charlie diz tudo da sinceridade dos princípios democráticos de algumas das democracias "consolidadas"...
Vive-se por todo o Ocidente um ambiente generalizado de paranóia controladora que, desjudicializando o controlo dos processos de vigilância que, por definição, deveriam ser muito restritos, viola descaradamente os direitos dos cidadãos, promove o "Estado securitário dentro do Estado", "institucionaliza o arbítrio" e torna a democracia um puro simulacro. Como diz William Bourdon (Les dérives de l'état d'urgence, 2017), pretende-se fazer crer aos cidadãos "que as liberdades estão mais bem protegidas se a elas renunciarmos". Toda esta ambiência autoritária tem sido sacudida pelo discurso político e mediático dominante para cima de Erdogan, de Putin ou de Maduro mas nunca aparece descrita para países como a França ou a Espanha, raramente os EUA. É como se a "democracia iliberal" de que há anos fala o tão elogiado Fareed Zakaria se limitasse a parceiros menores na Europa pós-comunista (Hungria, Polónia, Eslováquia...) e não se tivesse instalado no coração das democracias que se julgam "consolidadas".»
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