3.10.22

No Brasil, o mês de todos os perigos

 


«O ódio torna a democracia inviável. Porque a política não pode ser o mata-mata. E Bolsonaro, como os seus pares europeus e Trump, trepou o ódio – ele está sempre disponível para qualquer político que o queira usar, sobretudo quando as crises se abatem sobre as nações –, chegou ao poder e construiu um fosso intransponível entre brasileiros que se espalhou por cada rua, por cada pequena cidade, por cada perfil de cada rede social. Ódio aos "esquerdopatas", ódio ao "ex-presidiário", ódio ao "jornalixo", ódio aos "bandidos", ódio aos artistas, ódio aos ambientalistas, ódio, ódio, ódio. Claro que o recebeu de volta. Para a sua estratégia, era essencial que o recebesse. A figuras como Bolsonaro não chega o ódio aos outros. É preciso que a incomunicabilidade entre as pessoas crie realidades paralelas sem concessões.

As condições para a uma polarização na segunda volta são muito maiores do que se imaginava. Primeiro, porque apesar de Bolsonaro ter ficado a léguas dos 60% que garantia que iria ter se não houvesse fraude, as sondagens não previram esta proximidade de 5,2 pontos percentuais e mais de seis milhões de votos. O resultado de Lula está dentro da margem de erro prevista nas pesquisas. Mas falharam em Bolsonaro. Pensa-se que isso pode resultar da recusa em muitos dos seus eleitores a reponderem às empresas de sondagens, um fenómeno que aconteceu nos Estados Unidos, ou na incapacidade de perceber o que aconteceu, por exemplo, em São Paulo. Seja como for, será fácil desacreditar as sondagens. Já a acusação de fraude, com a forma como decorreram as eleições, será muito mais difícil.

A polarização foi tão extrema que a primeira volta se assemelhou a uma segunda. Os dois candidatos concentraram mais de 90% dos votos (48,4% para Lula, 43,2% para Bolsonaro). Tudo se resume a conquistar menos de um décimo dos eleitores. E, apesar de não haver histórico de uma vitória na primeira volta e derrota na segunda, tudo é mais imprevisível do que se esperava. Será mesmo o tudo ou nada para os dois lados. E a campanha será feita ao milímetro.

Se Bolsonaro se conteve – sim, esta campanha ainda foi Bolsonaro contido – enquanto sabia que a votação de hoje podia ser apenas uma etapa destas eleições e que o excesso de polarização poderia levar mais gente a querer encerrar isto já na primeira volta, com medo do que as coisas se descontrolassem, agora não tem nada a perder. Este será o mês de todos os perigos para o Brasil. Até porque a Lula chega conquistar menos de 2 pontos percentuais dos votos, que estarão algures pousados entre os eleitores de Simone Tebet ou Ciro Gomes. Jair Bolsonario tem de arriscar muito mais. Sobretudo na demonização de Lula e do seu passado. Vai ser essa a sua campanha.

A evidente corrupção no seu mandato – sobretudo dos seus filhos – não teve os mesmos efeitos judiciais do que no tempo do PT porque Bolsonaro conseguiu controlar as investigações policiais e impor regras de sigilo de cem anos em alguns casos polémicos que envolveram o presidente ou os seus filhos. Bolsonaro sabe que se perder tudo isso será revertido. Foi ele que disse, há um ano, que só tinha três alternativas para o futuro: “estar preso, ser morto ou a vitória”. Deixa claro que a alternativa à vitória só pode ser o confronto e a violência. E esse é o perigo que nos espera este mês.

Ao ódio viral, que o Presidente promoveu e protegeu, juntou-se a liberalização da compra de armas. Nunca houve tantas no Brasil – estima-se que, sem a liberalização da venda de armas, se teriam evitadas seis mil mortes por ano. São importadas mais de 1200 armas de fogo por dia, maior volume em 25 anos de contabilização. Em imitando a direta norte-americana, Bolsonaro sempre argumentou que a corrida às armas era a única forma do povo defender a liberdade. Como já se percebeu, tudo o que não seja a sua vitória põe em causa a liberdade do povo. Como com Trump, só que num país com instituições muito mais frágeis.

Este mês, o Brasil caminhará no fio da navalha. Mesmo que chegue ao dia 30 de outubro sem ter caído na violência, mesmo que no fim, depois do que será um mês de brutal desinformação, os bolsonaristas sejam derrotados e aceitem o resultado, as marcas desta campanha prevalecerão, como prevaleceram as da derrota de Trump. Porque este tipo de políticos não passa pelo poder sem deixar a democracia mais fraca. Deixam estragos para sempre.

Se Lula vencer na segunda volta, terá um Congresso, um Senado e os principais governadores do centrão e da direita. Aliás, é evidente uma divisão territorial no apoio a um ou outro lado, com o Nordeste, que vale 27% dos votos e onde Lula esmaga, a ser essencial para a vitória nesta primeira volta. E as figuras próximas de Bolsonaro conseguiram ser eleitas. O bolsonarismo para além de Bolsonaro consolidou-se. Como o trumpismo, veio para ficar. Como o PT, e enquanto o PMDB e PSDB vão perdendo consistência, o bolsonarismo será uma força nacional. Se Lula vencer, terá de contar com esta oposição agressiva.

Como nota quase necrológica, a triste história de um homem que não compreendeu o seu tempo histórico. Ciro Gomes, que já teve sete filiações partidárias, ficou em quarto, teve 3% a nível nacional e teve 7% no seu próprio estado (o Ceará), era o candidato com as melhores propostas e até mais à esquerda do que as de Lula, que as teve de as manter difusas para não assustar ninguém. Mas foi incapaz de perceber, como não percebeu na segunda volta das eleições de 2018, o momento histórico que o Brasil atravessa. O seu ego não deixou. E para ser bom presidente não basta ter boa propostas, é preciso ter um apurado sentido da história. Veremos se não se suicidou definitivamente. O seu futuro político, se existe, depende do derradeiro gesto nesta segunda volta. Também é dele e de Simone Tebet que dependerá se Bolsonaro é derrotado.»

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