17.8.23

Arábia Saudita: o dinheiro tudo lava

 


«Sportswashing é o nome dado à utilização do desporto como meio de melhorar a reputação de um Estado ou instituição, associados a injustiças como a violação sistemática de direitos humanos. O termo entrou no vocabulário corrente das discussões sobre política e futebol durante o Campeonato do Mundo de 2022, realizado no Catar, em estádios construídos por trabalhadores migrantes sujeitos a condições sub-humanas, muitos dos quais falecidos durante essa tarefa. Mas parece ter sido rapidamente esquecido.

Ao invés, o que tem ocorrido é a normalização e banalização da utilização do desporto para mascarar atrocidades. O exemplo mais evidente é o da Arábia Saudita, que financia milionariamente, através do seu fundo soberano, uma liga de futebol energizada com contratações a peso de ouro das maiores estrelas do desporto-rei. A mais recente foi a contratação de Neymar, por pouco menos de cem milhões de dólares.

Pouco se discute, a propósito destas e de outras contratações, como Benzema e o nosso Cristiano Ronaldo, o facto de na Arábia Saudita a pena de morte ser aplicada sistematicamente, na sequência de processos judiciais sem as mínimas garantias de defesa, inclusive por crimes praticados durante a menoridade dos arguidos. Que a liberdade de expressão e de protesto, mesmo se apenas exercida online, como no Twitter, seja punida com penas de prisão entre os quinze e os quarenta e cinco anos. Que as organizações de defesa dos direitos humanos estejam legalmente banidas, e os ativistas sejam perseguidos, impedidos de se deslocar livremente, e condenados a penas de prisão de vários anos. Que migrantes, incluindo mulheres e crianças, sejam submetidos a tortura e condições degradantes apenas por se encontrarem no território em situação irregular. Que a legislação estabeleça que apenas os homens podem ser tutores legais, impondo a obrigatoriedade de as mulheres terem um tutor masculino para se casarem, sendo depois obrigadas a obedecer ao marido. Que homossexuais sejam decapitados, sob alegadas confissões de sexo com outros homens, pois a homossexualidade é banida por lei.

A tudo isto poderia a imprensa e a opinião pública, sobretudo ocidentais, fechar os olhos se o futebol na Arábia Saudita fosse um assunto privado, gerido por entidades privadas apenas condicionadas pelas práticas repressivas de um Estado cujo líder, sabemo-lo com pouca margem para dúvidas, é o responsável direto pelo assassinato do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em outubro de 2018.

Mas a utilização do desporto, nomeadamente do futebol, como estratégia de soft power faz parte do Vision 2030, um grande programa desenhado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman para diversificar a economia saudita, impulsionar o turismo, diminuir a dependência do petróleo e modernizar o país.

Soube-se há poucos dias que o Instituto Tony Blair continuou a ser financiado pelo Vision 2030 mesmo após o assassinato de Kashoggi. Segundo o The Guardian, o próprio Blair considerou que, não obstante aquele “crime terrível”, se justificava manter a cooperação, dado o interesse estratégico para a região do programa.

Esta cínica troca de valores por dinheiro pode chocar, mas o certo é que as várias potências ocidentais se têm vindo a reaproximar de Riade, não obstante os públicos e generalizados atropelos aos direitos humanos praticados pelo regime. O Canadá decidiu, em maio, restabelecer relações diplomáticas com a Arábia Saudita, interrompidas em 2018. O Reino Unido e os Estados Unidos são os principais fornecedores de armas da Arábia Saudita, que por sua vez são usadas em ataques devastadores ao Iémen, causando a morte a milhares de civis e originando aquela que é a maior catástrofe humanitária do mundo.

Não é só o desporto, portanto. Também a política se move por caminhos tortuosos, onde os direitos humanos e a vida são sempre colocados num patamar inferior se do outro lado da balança pesam fortes interesses económicos.

E 2018, e a indignação internacional que aquele assassinato gerou, já vão longe. Hoje lemos e ouvimos as notícias destas transferências milionárias do futebol sem que as peças, provavelmente por fadiga ou esquecimento, nomeiem Khashoggi, o seu algoz, Mohammed bin Salman, ou o facto de a violação dos direitos humanos, na Arábia Saudita, ser prática corrente e, até, política de Estado.

Assistimos, indiferentes, à normalização do regime saudita na cena internacional, com Biden a cumprimentar Mohammed bin Salman em enorme familiaridade, e Rishi Sunak a convidá-lo para uma visita oficial ao Reino Unido no próximo outono. No desporto e na política, o dinheiro lava tudo.»

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1 comments:

septuagenário disse...

Os árabes já aceitam "cristianos" e até "Jesus" se passeia livremente entre os muçulmanos.