19.8.23

O grande êxodo

 


«Interroga-se o economista Branko Milanovic se o desejo de emigração levará ao desaparecimento de povos, culturas e línguas. Estamos habituados a centrar o problema das migrações nas fronteiras da Europa e nas tragédias do Mediterrâneo. Mas há outra dimensão menos falada.

Um grande inquérito do instituto Gallup, publicado em Janeiro passado, revela que 900 milhões de pessoas desejavam abandonar os seus países em 2021, o segundo ano da pandemia da covid. Significavam 16% da população mundial. Hoje, esse número terá crescido. Mil milhões? É um êxodo. Os europeus xenófobos pensam o fenómeno como uma invasão.

O inquérito foi realizado em 122 países e abrangeu 127 mil adultos. Note-se que similar sondagem feita dez anos antes (2011) "apenas" registava a vontade de êxodo de 12% dos habitantes. As migrações sofreram uma quebra durante os dois anos da pandemia, cerca de 30% em 2020, o ano mais baixo desde 2003.

Há casos alarmantes. Na Serra Leoa, 76% dos habitantes querem emigrar. Inesperadamente, em segundo lugar surgia o Líbano, em que a vontade de sair passava de 26%, em 2018, para 63% em 2021.

Mais de metade da população desejava emigrar em países como Honduras, Gabão, Afeganistão, República do Congo (Brazzaville), Gana ou Nigéria. Na Europa destacava-se a Albânia, com 50%. Por grandes áreas e durante a década: na América Latina e Caraíbas, esse número subiu de 18% para 37% dos adultos; na África subsariana passou de 29% para 37%. Em compensação, a Ásia Oriental não mostra propensão para emigrar: a taxa passou de 7% para 4%.

Os destinos preferidos são, sem surpresa, os Estados Unidos (18%), Canadá (8%), Alemanha (7%), seguidos da Espanha, França, Reino Unido ou Austrália, todos na casa dos 4%.

Se a África continuar estagnada, aumentará a propensão para emigrar. Do ponto de vista das nações pode vir a ser dramático, mas do ponto de vista dos cidadãos seria um comportamento racional. Observa Milanovic que um tunisino de salário médio que emigra para França, mesmo recebendo aqui um salário baixo, triplicará, no mínimo, o seu rendimento e terá melhores condições para educar os filhos.

A abundância de recursos naturais, combinada com a pobreza endémica e governos fracos, suscita a competição entre as grandes potências pelas riquezas do solo e não ajuda a África a sair do círculo vicioso. A incapacidade de resposta das economias vai fazer crescer a pressão migratória e, provavelmente, fortalecer os partidos xenófobos nos países ricos, em especial na Europa.

Milanovic é um estudioso da "desigualdade global" (A Desigualdade no Mundo, 2017). Argumentou há anos que a melhor forma de ajudar o mundo pobre seria encorajar a mobilidade dos trabalhadores e conseguir que os países prósperos abram as fronteiras. Falou no antigo modelo alemão da imigração temporária. Chegou a propor uma troca entre a liberdade de movimento e a renúncia a direitos políticos e algumas regalias sociais. Mas isso conduziria a uma nova modalidade de apartheid. Reconheceu: "Se não houver um meio para que essas pessoas se tornem cidadãos, isto terá fundas repercussões na democracia." E continua a sua reflexão na última Foreign Affairs.

Mas este é o problema dos países ricos. Milanovic insiste nos países pobres. "A diferença do PIB entra a UE dos 15 e a África subsariana passou de 7 para 1 em 1980, para 11 contra 1 na actualidade. (…) E, se aumentou o desequilíbrio de rendimentos reais, aumentou ainda mais a diferença entre as taxas de crescimento demográfico. Em 1980, a EU dos 15 tinha uma população maior do que a África subsariana. Hoje, a África subsariana tem 2,5 vezes a população da UE dos 15. Nas próximas gerações, alcançará 2500 milhões de habitantes." Com estas duas abissais diferenças, de rendimentos e população, será impossível evitar uma explosiva pressão migratória.

Mas vislumbra-se outro drama em que não estamos habituados a pensar. Pergunta Milanovic se alguns países e povos não estarão destinados a desaparecer.

Segundo a Gallup, há países em risco de perderem a maioria ou até 90% da sua população. "Podem deixar de existir."

E então? "Significaria isto o desaparecimento de diferentes culturas, línguas e religiões? Sim, mas se as pessoas não se preocuparem com essas culturas, línguas e religiões, por que deverão elas manter-se? (…) A conservação da variedade das línguas e culturas não é menos importante do que a variedade da flora e da fauna no mundo."

A Europa perdeu os marcomanos, os sármatas, os hunos, os visigodos, os alanos, os vândalos, os ávaros e tantos outros povos. Conclui o nosso economista, com alguma crueldade: "Desapareceram com as suas línguas, culturas e tradições. Quem sente hoje a sua falta?"»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 18.08.2023
.

0 comments: